sexta-feira, 26 de abril de 2024

OLHAR AS CAPAS


Diário de Uma Revolução

Orlando Neves

Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978

- O New York Times e a Pravda são os primeiros jornais do mundo a anunciar e a felicitar o povo português pela sua libertação.

- Do Brasil, o então embaixador, Dr. José Hermano Saraiva diz que «em Portugal se vivem momentos graves e para que todos os portugueses se mantenham calmos.

- Não se realiza, em Lisboa, a procissão de Nossa Senhora da Saúde. 

OS DIAS LEVANTADOS

O 25 de Abril é um dia e são dias,

meses, anos. É daquelas datas

que se  constelam, que estão

antes de hoje, que hoje ecoam ainda,

e que tremulizarão no depois de hoje

como a memória de uma outra

possibilidade no conflito dos reais.

Porque foi um processo de irrupção

de imensas vozes e corpos

no teatro da história

tal como a fazemos.

Porque foi um processo de

transformação do nosso espaço-tempo

e das nossas formas de habitar.

Porque foi a liberdade e a

democracia como emancipação

Porque foi a política como poiesis.

 

Manuel Gusmão, autor do libreto para a ópera Os Dias Levantados de António Pinho Vargas sobre o 25 de Abril, estreada no Teatro São Carlos em 25 de Abril de 1998.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

VIAGENS POR ABRIL


As Viagens por Abril não têm fim.

Como perguntaria o Baptista- Bastos:

 «Onde estavas no 25 de Abril?»

É, andei por aí.

Com gente, procurando gente, pontes e vales, tem sido assim esta vida.

E houve aquele dia, 25 de Abril de 1974.

Dizem que por um Abril houve uma revolução, outros dizem que houve um golpe de estado, outros ainda que houve uma abrilada, sucederam coisas gritadas nas ruas, outras soavam nas sombras clandestinas.

Na escola disseram aos miúdos que tinham que ir para casa, estava a acontecer qualquer coisa em Lisboa.

Que comemoramos hoje? Que resta daquele dia?

O chefe de redacção telefonou ao repórter, gritou-lhe: Salta da cama. A Revolução está na rua e é precisos escrevê-la!

Isso é passado, é tão passado que eu já não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer coisa de que hoje não posso ver nenhum sinal, daquilo que o 25 de Abril trouxe.

Podemos saudar o desespero que nos invadiu perante algo que falhou?

Estragaram a tua festa pá!, cantaram no outro lado do Atlântico.

Houve quem dissesse que as revoluções são sonhadas por idealistas e realizadas por fanáticos, e quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as espécies.

O 25 de Abril é um dia e são dias. É daquelas datas que se constelam que estão antes de hoje, que hoje ecoam ainda, e que tremeluzirão no depois de hoje.

Quase sem darmos por isso, milhares de pessoas invadiram as ruas, ofereceram pão e cravos aos soldados, deram as mãos, sorriram, dos olhos saltavam sonhos e esperanças.

Alguém perguntou como era possível tanta e tanta gente quando meses antes, semanas antes, dias antes, eram tão poucos aqueles que apareciam para escrever palavras de ordem nas paredes da cidade, colar cartazes, distribuir uns panfletos impressos a stencil…

Será a memória curta? Apaga-se com facilidade?

 O apagamento de memória é chocante.

 Deste dia até ao 1º de Maio, é provável que muitos devem ter dormido, mas não se lembram bem. Uma semana de loucura já ninguém me tira, posso não ser feliz mas poucos chegaram tão perto disso a que chamam felicidade.

 É preciso ter vivido os anos terríveis, o tempo do desprezo, um tempo de ratazanas, para que aquele dia tivesse sido o que foi, um navio de sonho, uma nave de loucos, protagonistas duma enorme esperança, depois figurantes de um grande desencanto.

Terá sido assim há tanto tempo?

A ditadura acabou por ser derrubada por militares que antes desprezávamos.

Dezassete horas e 45 minutos bastaram para abater um regime que oprimiu um povo durante 47 anos, 10 meses, 34 dias e algumas horas.

Teremos feito tudo para que as novas gerações fossem mais felizes?

 Vale a pena assinalar a data quando nos esquecemos de ensinar a importância que aquele dia nos trouxe? Olham-se as pessoas de hoje, os jovens de hoje, formam um grupo largo e variado mas, olhando bem, estamos todos muito mal no retrato de conjunto…

Algures, numa dobra da história, alguma coisa falhou. O cantor, de viola às costas, acabou por dizer que houve alguém que se enganou.

A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém.

Naqueles dias, quase poderíamos dizer que a paisagem mudara para sempre.

As paisagens até podem mudar, o resto… o resto… o resto… é uma chatice… um busílis de questão…

O escritor perguntava e respondia: para que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar.

Um dia voltaremos a encontrar-nos todos no imponderável azul celeste.

E recomeçamos a busca dum país liberto, duma vida limpa e dum tempo justo.

Mas será que ainda verei alguém desenhar os nomes daqueles que, na sombra, nos lixaram a festa?

 

Montagem concebida com textos de:

Jorge Silva Melo, Virgílio Martinho, Baptista-Bastos, José Saramago, Rui Cardoso Martins, Chico Buarque, Manuel António Pina, Manuel Gusmão, Rodrigues da Silva, João Gobern, José Mário Branco, Eduardo Galeano, Mário Dionísio, Cristina Carvalho, Sophia de Mello Breyner Andresen.


Legenda: ilustração de António Pimentel para o livro As Portas Que Abril Abriu de José Carlos Ary dos Santos. 

EI-LA A CIDADE


Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor

Daniel Filipe em  A Invenção do Amor e Outros Poemas

Legenda: fotografia de Filipe Jorge em Lisboa Vista do Céu

quarta-feira, 24 de abril de 2024

POSTAIS SEM SELO


Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres.

José Saramago

Legenda: imagem cedida por Aida Santos

VIAGENS POR ABRIL


              Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                       João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 24 de Abril de 1974

Quando o país bocejante se deitou, só alguns dos seus habitantes, muito poucos, sabiam que esta não seria uma noite igual a tantas outras, seria mesmo uma noite invulgar.
Quando os espectadores que assistiram à “Traviata”, começaram a sair do Coliseu, já João Paulo Dinis, na emissão do Rádio Peninsular dos Emissores Associados, tinha enviado o primeiro sinal para os militares: “Faltam cinco minutos para as 23,00 horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74 – E Depois do Adeus”.
          

O “Diário de Notícias” há-de escrever que um Coliseu, repleto de público, assistiu a uma récita da “Traviata” com Alfred Kraus e que consagrou Joan Sutherland e que a récita terminou em delírio colectivo, com ovações intermináveis e inúmeros cravos atirados das frisas.

 O MESMO DIÁRIO DE NOTÍCIAS, publica na 1ª página um editorial com o título: “Balas de Papel”. Terminava assim:
“Só nós, Portugueses, somos senhores do nosso destino. E estamos tão estoicamente empenhados na defesa dos lusos territórios ultramarinos, como preparados para enfrentar as batalhas de opinião, desencadeadas – sabe-se lá – por que interesses feridos ou conveniências não acauteladas…
Parece-nos, entretanto, oportuno prevenir os franco-atiradores dispersos pelos países amigos, de que não receamos as balas de papel – como não tememos as outras. Elas não conseguirão desalojar-nos das atitudes assumidas e das posições tomadas.”

LOGO PELA MANHÃ, Otelo Saraiva de Carvalho desloca-se à estação dos CTT da Estefânia, fronteira à Academia Militar, de onde envia para os Açores o telegrama codificado que combinara com Melo Antunes, com a data e a hora do golpe:

 “Tia Aurora parte Estados Unidos 250300. Primo António.”

EM CONVERSA TELEFÓNICA com um dos seus ministros, que lhe dá conta dá conta de movimentações militares, Marcelo Caetano terá dito:

 “Isso é mais um boato desgastante”
Marcelo Caetano no seu “Depoimento”, publicado no exílio no Brasil, escreve que “a
Revolução veio efectivamente de surpresa.”

O chefe de Estado, almirante Américo Tomás deslocou-se à Feira Internacional de Lisboa para uma visita ao Salão de Antiguidades. Será este o último acto oficial como mestre-corta-fitas da ditadura.

FORAM ESTAS AS últimas determinações, dos serviços de censura do reino, para os jornais que se publicavam no Porto.

PARA O DIA 25, os serviços de meteorologia previam: “Céu pouco nublado, por vezes muito nublado; vento fraco de norte; possibilidade de trovoada e aguaceiros”

NOS PRIMEIROS VINTE MINUTOS DO NOVO DIA, no programa “Limite”, transmitido pelos emissores da Rádio Renascença, o locutor Leite de Vasconcelos dirá a primeira quadra de “Grândola, Vila Morena” e começam a ouvir-se aqueles passos cadenciados na estrada que anunciam que “o povo é quem mais ordena, dentro de ti ó cidade.”

O navio de sonhos largara do cais de silêncio rumo à estrela polar.

Chegara o Dia das Surpresas.

Como nos anos 60, ouvindo Beethoven, poetisara José Saramago.

OLHAR AS CAPAS


MFA e Luta de Classes

Ramiro Correia, Pedro Soldado, João Marujo

Biblioteca Ulmeiro nº 2

Editora Ulmeiro, Lisboa s/d

Vasco Gonçalves, a defesa lúcida dos trabalhadores, o democrata que não pactuava com manobras palacianas, que não aceitava pressões externas humilhantes, que sabia bem como a divisão dos militares progressistas enfraquecia perigosamente a Revolução, é objecto de uma das mais demagógicas campanhas de difamação de que há memória neste País (período fascista incluído), campanha que, por vezes, atingiu a vileza, pela mentira, pelo despudor, pela ausência de ética, pela irresponsabilidade. 

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?



 O Luís Miguel Mira apresenta hoje, pelas 15,00 horas na Nova Atena, Universidade Senior,  na Rua Almeida Garrett, 20, em Linda-a-Velha, «O Inimigo Público» de Woody Allen:

                                                    O INIMIGO PÚBLICO (1969)

                                                      (Take the Money and Run)

 

Realização: Woody Allen

Argumento: Woody Allen e Mickey Rose

Montagem: Ralph Rosenblum, James T. Heckert, Paul Jordan e  Ron Kalish

Fotografia: Lester Shorr

Música: Marvin Hamlisch e Felix Giglio

Direção Artística: Fred Harpman

Interpretação:  Woody Allen (Virgil Starkwell), Janet Margolin (Louise), Ethel Sokolow (a mãe de Virgil), Henry Leff (o pai de Virgil), Don Frazier (o psiquiatra), Jacquelyn Hyde (mademoisele Blair), James Anderson (o guarda prisional), Marcel Hillaire (Fritz), Lonny Chapman (Jake),  Louisse Lasser (Kay Lewis), Jackson Beck (a voz do narrador), etc 

Produção: Sidney Glazier, Charles H. Joffe e Jack Grossberg, para a Palomar Pictures International

Duração: 85 mn

No que respeita ao “Riso”, já por aqui passaram pela mão do Prof. Jorge Barata Preto, no âmbito deste recente ciclo “O Riso e as Lágrimas”, alguns dos principais vultos da Comédia Americana: Charles Chaplin, Buster Keaton, os Irmãos Marx, Jerry Lewis, Mel Brooks. 

Dos grandes “Clássicos”, julgo que só faltaram Harold Lloyd, Harry Langdon, Stan Laurel e Oliver Hardy (o Bucha e o Estica…), W. C. Fields e talvez Woody Allen, embora não esteja certo de que ele não tenha por aqui passado noutro ciclo…

Para além destes, houve uma série de comediantes americanos de grande sucesso no seu tempo, mas para os quais a memória dos cinéfilos não foi tão generosa como em relação aos outros que mencionei: falo-vos de nomes como Eddie Cantor, Bob Hope, Bud Abbot e Lou Costello (o Gordo e o Magro), Danny Kaye e, muito mais recentemente, Jim Carrey, “o novo Jerry Lewis”.

Embora tenha com ele uma relação de Amor/Ódio, escolhi para concluir a minha intervenção neste ciclo um filme de Woody Allen, porque ele merece estar ao lado dos maiores.

Mas porquê esse Amor/Ódio, perguntar-me-ão vocês, talvez intrigados, tal a unanimidade que o autor de “Annie Hall” habitualmente suscita…?

Amor, porque gosto muito de muitos dos filmes de Woody Allen.

Ódio (a palavra é excessiva, confesso…), porque a ascensão de Allen correspondeu ao declínio de Jerry Lewis, que era o meu ídolo de infância, de adolescência e até de juventude, através dos filmes dele que frequentemente via na televisão e das saudosas retrospetivas mais tarde organizadas nos anos 70 por Lauro António, no Apolo 70 e no Caleidoscópio. 

É que, na verdade, entre 1969 (data do primeiro filme de Allen) e 1983 (data do último filme de Lewis), o autor de “O Homem das Mulheres” apenas teve oportunidade de realizar cinco filmes (um dos quais, “Le Jour oú le Clown Pleura”, realizado em França e na Suécia em 1972, ainda hoje se mantém inédito…), enquanto o autor de “Manhattan” realizou dez. E, a partir de então e até hoje, Allen realizaria pelo menos um todos os anos, só falhando em 2018, 2021 e 2022.  

E é claro que culpei Woody Allen pela caída em desgraça de Jerry Lewis… 

Antes de entrar em força no Cinema já Allen era um nome sobejamente conhecido no meio cultural americano, e sobretudo na cena nova-iorquina.

Começou a trabalhar nos anos 50, ainda adolescente, escrevendo diálogos para a televisão.

O sucesso que teve levou-o a ser chamado a colaborar com comediantes de cada vez maior nomeada, para os quais escrevia sketches para shows, peças de teatro e revistas da Boadway que viriam a obter grande sucesso.

Farto de ficar na sombra e de ver os outros beneficiarem, em fama e proveito, do seu próprio trabalho, Allen, embora já na altura muito bem pago para a sua idade, decidiu ultrapassar a sua timidez natural e subir sozinho ao palco em 1961, vindo a tornar-se um dos principais vultos da chamada stand-up comedy americana, com digressões por teatros e night clubs de todo o país e presença assídua na televisão. E o seu sucesso não se iria limitar aos “monólogos” que fazia em palco, porque também já começara a escrever para diversas publicações de prestígio, como era o caso da “New Yorker”, e as gravações em disco de alguns dos seus espetáculos também obtiveram êxito, levando-o, até, a ganhar um Grammy por uma delas em 1964.  

Allen viria a estrear-se no cinema em 1963, escrevendo o argumento e desempenhando um papel secundário em “O Que Há de Novo Gatinha” (“What’s New Pussycat”), de Clive Donner, que alguns de vós provavelmente se recordarão de ter visto no antigo cinema São Jorge, já que por cá obteve um grande sucesso, com a inesquecível música do Tom Jones.

Seguir-se-ia, em 1967, “Casino Royale”, muito maltratado por diversos realizadores, entre eles John Huston, do qual foi coargumentista, para além de ter, igualmente, um pequeno papel como ator.


Cansado da maneira, que considerava desajustada, como os seus argumentos eram postos em cena (em 1969 estreara-se, também, “Don’t Drink the Water”, realizado por Howard Morris e baseado numa peça sua), Allen começou a acalentar a ideia de ser ele próprio a realizar os filmes que escrevia.

Mas ainda antes disso, lançou-se numa obra bizarra: pegar num anónimo filme japonês, misto de policial e de “kung-fu”, retirar-lhe a banda sonora original e substituí-la por uma inteiramente concebida por si, tanto na escolha da música como na escrita dos diálogos. O resultado deu pelo nome de “What’s Up Tiger Lily” e foi lançado nos Estados Unidos em 1966. O DVD que tenho na minha coleção chama-se “O Que se Passa, Tigresa?”, mas não tenho qualquer memória da estreia deste filme em Portugal.

É só por isso que “O Inimigo Público”, o nosso filme de hoje, surge em segundo lugar na filmografia de Woody Allen enquanto realizador, apesar de ter sido, na verdade, o primeiro filme escrito, realizado e interpretado por si. E esse sim, lembro-me muito bem onde se estreou em Lisboa: no saudoso Cinema Berna, que ficava nas Avenidas Novas, mesmo ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.

Oito anos e quatro comédias mais ou menos burlescas depois (para além de participação, como ator principal, em dois outros filmes não por si realizados), Allen obteria, em 1977, o maior dos seus êxitos na América, com os quatro Óscares recebidos por “Annie Hall”.

A partir daqui o cinema de Woody Allen não mais seria o mesmo, mas a sua carreira não é o principal objeto deste texto.

Fiquemo-nos, pois, por “O Inimigo Público”, realizado em 1969. 

Em tom sério de documentário, com a voz “off” de um narrador, excertos de entrevistas ao próprio Virgil e a outras pessoas que lhe são próximas ou que com ele se relacionaram pontualmente (o pai e a mãe, devidamente disfarçados para não passarem a vergonham de se verem associados ao filho, a mulher, o psiquiatra que o acompanhou, o juiz que o condenou, colegas de prisão, vizinhos e amigos de infância, etc), o filme conta-nos a história de Virgil Starkwell, considerado um dos mais perigosos criminosos daquela época, desde os primeiros tempos de delinquência juvenil no bairro desfavorecido de Baltimore onde nascera, até à sua derradeira e mais penosa condenação.

Pelo meio são evocadas outras peripécias da sua vida: os primeiros assaltos, as primeiras vivências na prisão, as primeiras tentativas de fuga, a libertação que conseguiu por se ter oferecido como cobaia para experiências com uma nova vacina nunca antes testada num Ser Humano, a forma como conheceu a sua mulher, ternamente contada pelo próprio Virgil, que nos confessa tê-la visto deitada na relva de um jardim e lhe pretender roubar a mala, mas que lhe bastaram 15 minutos de conversa com ela para se aperceber que era essa a mulher dos seus sonhos com quem se desejaria casar, e que 30 minutos depois já tinha desistido, em definitivo, da ideia de lhe roubar a carteira...

Casado e com novas responsabilidades familiares no horizonte, Virgil, como todo o bom criminoso que se preza, sonha em dar o último e definitivo golpe que lhe assegurará, para sempre, a subsistência da família, mas a coisa corre-lhe mal. É condenado a trabalhos forçados numa prisão de alta segurança, mas, persistente como é, dela também se consegue libertar, na companhia de outros reclusos.

De novo ao lado da mulher e do filho, Virgil tenta seguir caminhos mais honestos, mas não se consegue adaptar a essa vida. Uma nova tentativa de assalto volta a correr-lhe mal e vamos encontrá-lo, no final, condenado a 800 anos de prisão por 52 assaltos, embora, otimista como sempre, ele esteja esperançado de que, se tiver um comportamento exemplar, essa pena lhe possa ser reduzida a metade. Mas nem por isso deixa de se preocupar em construir, artificialmente, uma pistola…

Quanto à profissão que escolheu, diz que não se arrepende de nada… “Somos o nosso próprio patrão, tem -se liberdade de horário, viaja-se imenso, conhece-se muita gente interessante”… Que mais se pode desejar…? Uma única tristeza lhe ficou, certamente: apesar de tão badalado e de ter sido nomeado “Gangster do Ano”, nunca ter integrado o “Top 10” dos maiores criminosos…

Nas suas “Memórias”, publicadas em 2020, Woody Allen não se alonga demasiado acerca deste filme e só parece dar importância a duas coisas: o gozo que lhe deu ter conseguido filmar no interior da célebre prisão de San Quentin e a preciosa ajuda que recebeu de Ralph Rosenblum, chamado à última hora para o apoiar na montagem do filme.

Em relação à primeira escreve mesmo o seguinte: “o primeiro dia de filmagens seria na Penitenciária de San Quentin. Todo o meu entusiasmo se prendia com o facto de ir a uma prisão e ali estarem reclusos e eu veria uma gigantesca casa icónica, sobre a qual apenas tinha lido ou visto versões em velhos filmes a preto e branco. Queria lá saber que me estava a estrear como realizador. Era pela prisão que eu estava fascinado” (1) 

Quanto à segunda, tenho de me deter mais algum vagar, porque é essencial para a compreensão do próprio filme.

Na sua total ignorância do que era a realização de um filme, Allen não se preocupou demasiado com a montagem final nem com a forma como a escolha da música poderia condicionar, em muito, o próprio ritmo do seu filme.

Preocupou-se, unicamente e com o apoio dos técnicos que tinha ao seus dispor, em rodar corretamente cenas cómicas umas atrás das outras, e nisto até se revelou um bom aluno porque não só acabou as filmagens antes da data prevista, como também conseguiu ficar aquém do orçamento previsto.

O grande problema foi que, após realizada a preview screening (2), toda a produção deitou as mãos à cabeça. O filme era um autêntico desastre. A pouca música escolhida era desadequada, a montagem não fazia muito sentido, era evidente a falta de ritmo de toda a obra e estava à vista de todos, incluindo a de Allen, um verdadeiro descalabro.

Fez-se então apelo a Ralph Rosenblum, um montador experiente que fez tábua rasa dessa primeira versão de montagem, visionou todas as bobinas que haviam sido filmadas e chegou à versão final que hoje conhecemos, à qual juntou música diversificada, incluindo algumas peças de jazz de New Orleans para fazer acelerar o ritmo de algumas cenas. Foi considerado o verdadeiro salvador do filme, que viria a ter algum êxito nos Estados Unidos.    

Apesar de tudo isto, “O Inimigo Público” não deixa de ser um filme algo desequilibrado, como desenvolverei no final. 


Quando estamos perante a primeira obra de um realizador, sobretudo quando se trata, como no caso de Woody Allen, de um “Autor” consagrado e detentor de uma vasta Obra, existe sempre a tendência de nele procurarmos encontrar os primeiros sinais do “Universo do Autor”, ou seja, o seu estilo, os seus temas prediletos, as suas obsessões, a sua visão do Mundo, os seus “tiques”…

Ora no caso de “O Inimigo Público” não será difícil descortinar um esboço daquilo que viria a ser o trabalho futuro do seu realizador.

Vejamos, seguidamente, alguns exemplos.

  1. Allen sempre incorporou em muitos dos seus filmes aspetos autobiográficos. Na primeira versão do guião deste filme, Virgil chamava-se … Woody Allen!; depois, a forma como retrata os pais de Virgil é muito semelhante àquela como, ao longo da sua vida artística, nos foi falando dos seus próprios pais, com uma ligeira diferença: ao contrário do que sucede no filme, era o seu pai, e não a sua mãe, o mais tolerante em relação a ele (acerca da sua mãe, Allen chegou a escrever o seguinte: “a teoria edipiana de Freud de que todos os homens querem, inconscientemente, matar os pais para casarem com as mães choca com uma parede de tijolo no que diz respeito à minha mãe…” (3)); por outro lado, o bairro desfavorecido de Baltimore onde Virgil passa a sua infância também parece ter alguns traços de semelhança com o de Midwood, em Brooklyn, onde o próprio Allen deu os primeiros passos e que tão bem nos mostrou em “Os Dias da Rádio”; tal como Allen, Virgil também parece gostar de música, mas não ter lá muito jeito para o seu instrumento favorito; e que me dirão vocês se vos disser que Allen escolheu para data de nascimento de Virgil (1 de Dezembro de 1935) … o dia seguinte ao do seu próprio nascimento…; mas a mais deliciosa das private jokes de Allen parece-me ser a de ter dado à sua mulher Louisse Lasser, com quem então já estava em acelerado processo de divórcio, aquela hilariante tirada final, qualquer coisa como isto (cito de memória): “Acho que ele era um génio. Quando descobri que ele era um criminoso, não pude acreditar, porque nunca vi ninguém que dissimulasse algo tão bem. Excelente trabalho de ator. E eu que pensava que ele era um idiota…!”;

2.                  Tal como Vigil Starkwell, muitos dos personagens principais dos filmes de Allen são homens (quase sempre, mas também há mulheres…) torturados e inseguros, com alguma timidez e complexo de inferioridade resultante, por vezes, de uma infância castradora, todos estes problemas confluindo numa enorme insegurança no relacionamento com as mulheres. E, em relação, a Allen, isto também terá qualquer coisa de autobiográfico…;

3.                  Pelos motivos que referi no ponto anterior, muitos dos personagens dos seus filmes recorrem, ou já recorreram no passado à psicanálise, e isso é sempre mencionado em tom jocoso. Ora referências à psicanálise são coisas que abundam no filme de hoje, em especial na hilariante cena em que o seu psicanalista é satirizado, explicando-nos o papel do violoncelo na mente tortuosa de Virgil… E é também evidente que, subjacente a todo o filme, está a teoria determinista, então muito em voga naqueles tempos na Psicologia e na Sociologia, de que é a família, a educação e o meio envolvente quem mais determina a formação de uma personalidade. E foi o próprio Allen quem, na altura, afirmou que Virgil poderia muito bem ter sido ele próprio, se em momentos-chave da sua adolescência tivesse enveredado por outros caminhos, como alguns dos seus companheiros do passado o fizeram;  

4.                  Um certo fatalismo, quase que ilustrando a Lei de Murphy (se algo pode correr mal, é certo que irá correr (mesmo) mal…) parece acompanhar a vida e a “carreira” do pobre Virgil, como também a de muitos dos personagens do cinema de Allen;

5.                  É sabido que Woody Allen estudou cinema na sua juventude e frequentou avidamente as salas de cinema, primeiro levado pela mão de uma sua prima 5 anos mais velha e, mais tarde, por conta própria. Esta cinefilia é algo que se torna evidente em muitos dos seus filmes. Os seus personagens são, muitas vezes, pessoas ligadas ao cinema e/ou à televisão, o seu cinema homenageia e cita frequentemente realizadores como Bergman, Fellini e Antonioni, muitas são as cenas dos seus filmes que decorrem no interior ou à porta de cinemas ditos “de Arte e Ensaio”, em cujos letreiros luminosos se anunciam clássicos do cinema americano e europeu, etc. No filme de hoje, que Allen pretendia realizar a preto e branco e a Produtora recusou, para além da memória dos velhos documentários que no passado abriam as sessões de cinema e aos quais me refiro no ponto seguinte, a inspiração veio-lhe dos velhos filmes de “gangsters” com fundo social, bem como dos “filmes de prisão” dos anos 30 e 40, em particular “Anjos de Cara Suja” e “I’m a Fugitive From a Chain Gang”, do qual chega a copiar uma cena inteira. E as “delicodoces” cenas nos parques e à beira-mar, que aqui surgem claramente como sátira, eram coisas que abundavam no cinema americano dos anos 60…; como homenagem à cena final de “Bonnie and Clyde”, Allen chegou a filmar um final diferente para este filme, no qual Virgil era apanhado numa emboscada e fuzilado, como no filme de Arthur Penn, cena esta que foi abandonada na remontagem de que atrás vos falei; mas, para os cinéfilos mais inveterados, a cereja no topo do bolo das “homenagens” é Allen ter filmado uma cena no interior do célebre Restaurante Ernie’s, em São Francisco, onde Hitchcock também havia rodado duas cenas capitais em “Vertigo / A Mulher que Viveu Duas Vezes”, hoje um verdadeiro “filme de culto”

6.                  Indiscutivelmente, um dos motivos de atração deste filme é o tom de documentário no qual ele é estruturado, e uma boa parte do seu humor reside no profundo contraste entre a seriedade da locução e a comicidade das imagens que, em contraponto, nos são mostradas. Allen tinha na memória, como vos disse atrás, os velhos documentários do passado e levou esta homenagem a um tal ponto de perfeccionismo que quem foi convidar para locutor foi Jackson Beck, a própria voz dos documentários da Paramount dos anos 40. E essa mesma estrutura em documentário, aqui e além acompanhada por imagens da época, acabou por ser um esboço para “Zelig”, um dos grandes filmes de Allen realizado 14 anos depois, e esse sim, inteiramente baseado em documentários de época;

Mais exemplos haveria para salientar, mas creio que já vos macei demasiado…

E se comecei falando-vos de Jerry Lewis, com ele irei terminar. É que este filme era para ter sido realizado por Lewis, e não por Woody Allen. Suspeitando (e, pelos vistos, com alguma razão…) da capacidade e da experiência deste como realizador, a Produtora começou por dar o seu acordo ao filme, mas na condição de este ser realizado por Lewis, e Allen concordou, embora com alguma relutância. 

Seguiram-se contactos entre Allen e Lewis, mas este acabou por declinar a oferta por não se sentir muito convencido do projeto, em especial devido à estrutura do guião demasiado baseada em sucessivos sketches, que Allen se recusava a alterar significativamente. Esta recusa de Lewis deve ter sido recebida com grande alívio por parte Allen, em cujo ego não cairia, certamente, muito bem o facto de, num projeto tão pessoal, se ver dirigido pelo seu maior rival, com quem poderia, fatalmente, entrar em conflito, como sucedeu com Peter Sellers no “Casino Royale”.  

Curiosamente, nem Lewis nem Allen se referem a este facto nas respetivas autobiografias, mas quem o relata com algum detalhe é John Baxter, na sua obra de referência sobre o autor de “Manhattan” (4).

Disse-vos atrás que, em minha opinião, este é um filme algo desequilibrado, com evidentes problemas de ritmo na sua parte final, em contraste com a forma frenética como o filme se inicia. Por exemplo, a cena dos prisioneiros acorrentados uns aos outros, se no início tem a sua graça, a partir de determinada altura torna-se algo penosa, tantas foram as vezes que foi repetida. E o mesmo se diga das sucessivas cenas do bilhete com os supostos erros ortográficos no assalto ao banco, que de tanto serem repetidas acabam por perder alguma eficácia.

Nada disso altera, porém, o interesse que tem o visionamento deste filme histórico, o qual contém, certamente, muitas cenas que poderíamos selecionar para uma antologia do humor de Woody Allen: as impagáveis cenas em que intervêm os pais de Virgil, disfarçados de Groucho Marx; as diversas cenas de assaltos e de fugas fracassadas, com os gags das pistolas; a cena ao espelho com a toalha é cintura; a teoria do psiquiatra em relação ao violoncelo; as hilariantes tiradas de humor judaico… 

Woody Allen é, indiscutivelmente, um dos grandes realizadores do nosso tempo. Ao contrário de outros grandes realizadores clássicos, de quem não chegámos a ser contemporâneos, enquanto cinéfilos, com Allen tivemos a oportunidade de acompanhar a construção de todo o edifício da sua Obra, tijolo após tijolo, e julgo ser imperdível ver este momento inicial em que, timidamente, começou a dar os primeiros passos. 

Espero que estejam de acordo comigo e se divirtam.

Sendo esta a minha última intervenção, mais uma vez os meus agradecimentos a quem me convidou e a quem teve a paciência de me ler e de me ouvir.


LUÍS MIGUEL MIRA


  1. ALLEN, Woody, “A Propósito de Nada”, Ediçoes 70, 2020, pág. 195

2.                   Desde os primórdios da Indústria Cinematográfica era habitual os Estúdios e/ou os produtores dos filmes realizarem, antes da sua estreia oficial, sessões prévias de apresentação para uma audiência selecionada, a fim de testarem a reação do público. Em função desta e dos inquéritos individuais lançados à assistência, os filmes podiam ser modificados, por forma a colmatar as principais insuficiências detetadas. No caso deste primeiro filme de Allen, foram escolhidos como publico um grupo de soldados americanos em licença no país, tendo o filme sido projetado com uma muito reduzida e suave banda sonora. A reação da plateia foi péssima…


3.                  Vd (1), pág. 12


4.                  Vd (1), pág. 12   BAXTER, John, “Woody Allen”, Edição Flammarion, 2000, pág. 207    

BIOGRAFIA

Tive amigos que morriam, amigos que partiam

Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.

Odiei o que era fácil

Procurei-te na luz, no mar, no vento.

Sophia de Mello Breyner Andresen de Mar Novo em Cem Poemas deSophia

terça-feira, 23 de abril de 2024

VIAGENS POR ABRIL


              Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                       João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.


23 de Abril de 1974

 

Dizíamo-nos, citando José Afonso, filhos da madrugada e sabíamos que não podíamos amar serenamente porque muitos dos nossos amigos estavam na prisão, tentávamos o possível e esse possível era sempre tão escasso que, por vezes, o desânimo invadia os dias e as noites. Depois alguém começava: canta amigo canta, vem cantar a nossa canção, tu sozinho não és nada, juntos temos o mundo na mão, um outro, com um entusiasmo sereno, lembrava que há coisas que não têm fim, a esperança num melhor, por exemplo, e a luta por conseguir esse mundo.

Acreditar que num qualquer tempo, um microfone falaria às 4 e tal…

Não falou às 4 e tal, falou antes, mas era o sinal para a madrugada por que tantos esperaram.   

SOB A PRESIDÊNCIA do Prof. Doutro Marcelo Caetano, reuniu, hoje, em São Bento, o Conselho de Ministros.
O Conselho ocupou-se largamente da conjuntura económica do País e da necessidade de acompanhar a marcha da inflação, nos aspectos que não possam ser totalmente travados, de modo a combater a especulação e a moderar quanto possível a alta dos preços.
Iniciou também o estudo de providências sobre a situação do funcionalismo.
Os trabalhos prosseguirão sobre estas matérias em reuniões do Conselho de Ministros para Assuntos Económicos, até estarem prontos os diplomas a aprovar.

FOI TORNADO PÚBLICO um aviso dirigido a todos os mancebos que se apresentem às Juntas de Recrutamento Militar, no ano em curso de que devem fazê-lo acompanhados dos documentos necessários e obrigatórios para a sua identificação e regular funcionamento das Juntas, nomeadamente o bilhete de identidade, a cédula de recenseamento, certificados de habilitações literárias e carteiras profissionais ou sindicais.

O SERVIÇO de Informação Pública das Forças Armadas anuncia a morte de dez militares: quatro na Guiné e três em Moçambique, em combates, e três “por doença” em Angola.

É ADIADO para 15 de Maio, por falta de testemunhas, o julgamento de Maria Helena Vidal, acusada de ter feito parte do comando que assaltou um avião da TAP, em 1961, espalhando panfletos, em Lisboa e Porto, contra o regime.

 EM ESPANHA começa a “Vuelta” com a presença de Joaquim Agostinho mas sem o super-campeão Merckz.

OTELO SARAIVA DE CARVALHO, no seu livro “Alvorada em Abril”:
«Se a gente perder? Vocês digam nos interrogatórios, quando forem presos, que não têm nada a ver com isto. Que houve um major de artilharia chamado Otelo, maluquinho da cabeça, que teimou em deitar o Governo a baixo e vos convenceu a entrar nesta guerra. Digam que ele é o culpado de tudo.»

O OUTRO LADO DAS CAPAS


No seguimento do livro Tarrafal que hoje se apresenta em Olhar as Capas.

 Pelo Decreto-Lei nº 26.539 de 23 de Abril, durante a ditadura de Oliveira Salazar, é criada uma colónia penal para presos políticos e sociais no Tarrafal, na Ilha de Santiago, no Arquipélago de Cabo Verde que ficou conhecido como o «Campo da Morte Lenta». Totalizavam 152 os primeiros presos políticos que entraram no Tarrafal no dia 29 de Outubro de 1936.

Lia-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 26.539 assinado pelo presidente António Óscar de Fragosos Carmona:

«É necessário dar execução imediata ao disposto nos decretos nº 23.203, de 6 de Novembro de 1933, e 24.112, de 29 de Junho de 1934, que prevêem a instalação de uma colónia penal para presos políticos e sociais no ultramar.

Depois de um reconhecimento cuidadosamente feito por técnicos a diferentes ilhas do Arquipélago de cabo Verde, chegou-se à conclusão de que o lugar do Tarrafal, da Ilha de Santiago, reunia as condições necessárias à instalação desta colónia, sob o ponto de vista higiénico, de vigilância e de recursos naturais de comunicações indispensáveis ao seu bom funcionamento.»

Pelo Artº 3º do Decreto, ficava-se a saber que a colónia terá instalações necessárias para uma lotação de 500 presos.

Manuel dos Reis, diretor do campo durante vários anos, recebia os prisioneiros políticos dizendo «Quem vem para o Tarrafal vem para morrer!»

OLHAR AS CAPAS

Tarrafal

Trabalho colectivo de sobreviventes do Tarrafal

Coordenação de Franco de Sousa

Prefácio: Francisco Miguel

Capa: Gil Teixeira Lopes

Editorial Caminho, Lisboa, Fevereiro de 1978

Todos nós que vivemos no Tarrafal, os que morreram e os que ainda estão vivos, sempre pensámos, e muitas vezes o dissemos uns para os outros, que uma vez derrubado o fascismo no nosso país, todos os criminosos com responsabilidade na criação do Tarrafal e nos crimes que aí se praticaram, seriam julgados em tribunais comuns e justamente condenados. Lamentavelmente não tem acontecido assim.

Do prefácio de Francisco Miguel

PARTIR

Eu vou-me embora para além do Tejo,

não posso mais ficar!

 

Já sei de cor os passos de cada dia,

na boca as mesmas palavras

batidas nos meus ouvidos...

-- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...

Abro os olhos e não vejo

já não ando, já não oiço...

Não posso mais...

Grita-me a Vida de longe

e eu vou-me embora para além do Tejo.

 

Passa a ave no céu bebendo azul e diz:    Vem!

O vento envolve-me numa carícia,

envolve-me e murmura: -- Vem!

As ondas estalam nas praias e vão mar fora,

as mãos de espuma a prender-me os sentidos

chamam no fundo dos meus olhos: -- Vem!

 

-- Camaradas, eu vou, esperai um pouco...

Ai, mas a vida nunca espera por ninguém...

E a noite chega vingadora;

o vento rasga-me o fato,

as ondas molham-me a carne

e a ave pia misticamente no ar;

abro os olhos e não vejo,

já não ando, já não oiço

-- e fico, desgraçado de ficar!...

Manuel da Fonseca em Poemas Completos

segunda-feira, 22 de abril de 2024

OLHAR AS CAPAS


M.F.A. e Revolução Socialista

César Oliveira

Capa: Dorindo Carvalho

Colecção Teoria e Prática nº 2

Diabril Editora, Lisboa, Abril de 1975

Ter-se-á clarificado nestas páginas o caminho para o avanço do  socialismo em Portugal.

VIAGENS POR ABRIL



 

                   Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                            João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

22 de Abril de 1974

Os jornais trazem nas suas primeiras páginas, fotografias do almoço íntimo que o chefe de estado Almirante Américo Tomás ofereceu, ontem, no Palácio Nacional de Belém do Chefe do Governo.

Sem protocolo, revestido de cunho de cordialidade, num ambiente extraordinariamente amistoso, escreveram os jornalistas. Não adiantaram os motivos do festim mas, sabe-se por portas travessas que Tomás, com esta reunião, tentou conciliar os ministros que, ouvia-se pelos corredores, andavam às turras, uns com saudades de Salazar, outros por Marcelo andava tropeçar nos próprios passos.

Olha-se a fotografia, publicada pelo ultra-fascista jornal Época, e vemo-los descontraídos e sorridentes.

Desconheciam ainda que almoçavam, todos juntos, pela última vez, tal como desconheciam que poucos dias faltavam para deixarem de sorrir.

O pânico haveria de tomar conta das suas excelsas e distintas pessoas.

O JORNAL REPÚBLICA conseguiu, numa pequena notícia, dar conta que quatrocentos democratas marcaram presença na homenagem a Óscar Lopes.

No mesmo jornal, o jornalista e escritor Álvaro Guerra, encarregado pelos capitães da ligação com a imprensa, no seu habitual Ponto Crítico, abordava a meteorologia e, se pudéssemos ter decifrado as entrelinhas, teríamos ficado a saber que o tempo ia mesmo mudar.

«A Primavera continua chuvosa, um resto de invernia que se arrasta, retardando o sol aquém, de tantos sóis adiados, se vai fartando e chegando ao Inverno da vida com um levíssimo e já frio raio de luz teimando penetrar na floresta desencantada da memória.
Naturalistas, alegóricos, nostálgicos, vamos seguindo os caprichos do clima, mitigando a ausência das palavras primaveris com a decifração de eternos boletins meteorológicos.»

OTELO SARAIVA DE CARVALHO comunica aos seus camaradas que tem pronto o Plano Geral das Operações.

DINIZ DE ALMEIDA, em Origens e Evolução do Movimento de Capitães, conta, que neste dia, «Grândola» de José Afonso foi escolhida como canção-segunda-senha para saída, em todo o país, dos regimentos afectos ao Movimento dos Capitães.

A canção foi escolhida por Almada Contreiras que, mais tarde, justificará a escolha: «em primeiro lugar, porque sou alentejano, depois porque gosto muito da canção. Se fosse minhoto, provavelmente a senha seria um “vira”, não sei».