José Carlos Ary dos Santos escreveu que «Natal é Quando um Homem Quiser». Se formos mais longe que o poeta, tudo será quando um homem quiser.
Já a Primavera corre por aí e pego num recorte do Público,
24 de Dezembro de 2023, uma crónica do Frei Bento Domingues que estive a reler:
Foi num livro do seu grande amigo Frei Pedro Meca,
que viveu entre os marginalizados de Paris, que conheceu um texto de Jean-Paul
Sartre sobre o presépio. Leu o texto na Missa do II Domingo do Advento e teve
tal impacto que não resistiu a transcrevê-lo na sua crónica dominical no
Publico a que chamou «O presépio de um Ateu»
Estamos em 1940, na Alemanha, num campo
de prisioneiros franceses. Alguns padres pedem a Jean-Paul Sartre, recluso há
alguns meses com eles, que redija uma pequena meditação para a véspera de
Natal. Sartre, ateu, aceita. E oferece aos seus camaradas Barioná ou o filho
do trovão, procurando unir crentes e não crentes. Um excerto:
«Como
hoje é Natal, tendes o direito de exigir que vos seja mostrado o presépio.
Ei-lo. Eis a Virgem, eis José e eis o Menino Jesus. O artista colocou todo o
seu amor neste desenho, mas vós talvez o considereis ingénuo. Vede, as
personagens têm belos ornamentos, mas estão rígidas, dir-se-ia que são
marionetas. Não eram certamente assim. Se fordes como eu, que tenho os olhos
fechados... Mas escutai: só tendes de fechar os olhos para me ouvir e eu vos
direi como os vejo dentro de mim.
A Virgem está pálida e observa o menino. O que falta pintar no seu rosto é um
maravilhamento ansioso, que só aparece uma única vez numa figura humana. Pois
Cristo é o seu filho, a carne da sua carne e o fruto das suas entranhas. Ela
carregou-o nove meses e dar-lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á o sangue de
Deus. E em certos momentos a tentação é tão forte que esquece que é Deus.
Ela aperta-o nos seus braços e diz: "Meu pequenino!". Mas noutros
momentos permanece perturbada e pensa: "Deus está ali", e sente-se
tomada por um horror religioso por este Deus mudo, por este menino
terrificante. Pois todas as mães se detêm por instantes diante desse fragmento
rebelde da sua carne que é o seu filho e sentem-se exiladas diante dessa nova
vida que foi feita com a sua vida e que povoam de pensamentos estranhos. Mas nenhum
filho foi mais cruelmente e mais rapidamente arrancado da sua mãe, porque Ele é
Deus e está além de tudo o que ela pode imaginar.
E é uma dura provação para uma mãe ter vergonha de si e da sua condição humana
diante do seu filho.
Mas penso que deve ter havido outros momentos, rápidos e escorregadiços, nos
quais sente ao mesmo tempo que o Cristo é seu filho, o seu pequenino, e que é
Deus. Ela observa-o e pensa: "Este Deus é meu filho! Esta carne divina é a
minha carne. É feito de mim, tem os meus olhos e esta forma da sua boca é a
forma da minha. Parece-se comigo. É Deus e parece-se comigo".
E nenhuma mulher teve da sorte o seu Deus só para si. Um Deus pequenino que se
pode tomar nos braços e cobrir de beijos, um Deus quente que sorri e respira,
um Deus que se pode tocar e que vive. E é nesses momentos que eu pintaria
Maria, se eu fosse pintor, e tentaria representar a expressão de terna audácia
e de timidez com a qual ela avança o dedo para tocar a doce pelezinha deste
menino-Deus, de quem sente sobre os joelhos o peso morno e que lhe sorri.
E eis tudo para Jesus e para a Virgem Maria.
E José? José, não o pintaria. Mostraria apenas uma sombra ao fundo da granja e
dois olhos brilhantes. Pois não sei o que dizer de José e José não sabe o que
dizer de si mesmo. Adora e está feliz por adorar e sente-se um pouco em exílio.
Creio que sofre sem o admitir. Sofre porque vê o quanto a mulher que ama se
parece com Deus, o quanto ela já está perto de Deus. Pois Deus rebentou como
uma bomba na intimidade desta família. José e Maria estão separados para sempre
por esse incêndio de claridade. E toda a vida de José, imagino, será para
aprender a aceitar.»
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