terça-feira, 31 de janeiro de 2012

JANELA DO DIA


1.

Dezenas de trabalhadores da Cerâmica de Valadares, em Gaia, estão desde as 08:00 de hoje a impedir a entrada e saída de camiões até que a administração garanta o pagamento dos salários em atraso.

A Cerâmica de Valadares emprega cerca de 400 trabalhadores.

2.

Portugal chegou ao fim do ano passado com uma taxa de desemprego oficial de 13,6 por cento, o que é um novo recorde desde que há registos e a quarta maior da zona euro.

Os países da zona euro com taxas mais elevadas do que a portuguesa eram a Espanha (22,9%), a Grécia (19,2% em Outubro) e a Irlanda (14,5%).

3.

Cavaco perdeu, para muito tempo, a credibilidade para voltar a falar em nome dos mais desfavorecidos - como fez com frequência nos últimos tempos -, desautorizado pelas suas contradições. Ouvi-lo agora, como ouvimos tantas vezes, exigir justa repartição de sacrifícios entre todos os portugueses soaria a anedota. Isto deixou satisfeito o Governo ou, pelo menos, alguns ministros deste Governo, que viram assim afastado mais um empecilho para o avanço de algumas das suas ideias mais radicais.
As notícias dos últimos dias oficializaram a guerra palaciana, ridícula nestes tempos brutais, entre cavaquistas e passistas. Os primeiros perdem nesta guerra que nada diz ao País. Mas Passos Coelho devia estar preocupado com o óbvio: o fim da credibilidade de Cavaco Silva junto das classes mais desfavorecidas tirou ao Governo, dentro da sua área partidária, o único fator de moderação do sentimento de revolta popular contra a política económica, o único contraponto catártico que as pessoas tinham para se agarrar à lógica de aceitação conformada da austeridade.
Se for maldoso, Cavaco Silva cala-se agora, manda calar os seus, e espera para se rir de Passos Coelho

Pedro Tadeu no Diário de Notícias de hoje


4.

Passos Coelho, no final da cimeira informal, hoje, em Bruxelas:

Portugal não vai pedir mais tempo nem mais dinheiro.


Legenda: imagem do Diário de Notícias.

OLHAR AS CAPAS


Bandolino

Umberto Eco
Tradução: José Colaço Barreiros
Capa: Clementina Cabral
Difel, Lisboa, Setembro 2005

-  Era uma bela história. É uma pena que não venha ninguém a conhecê-la.
-  Não te julgues o único autor de histórias neste mundo. Mais tarde ou mais cedo há de haver alguém, mais mentirosos que Bandolino, que a contará.

DO BAÚ DOS POSTAIS

Castro Urdiales, Cantabria

OLHARES


Há quarenta anos que moro neste bairro.

Enquanto trabalhei nos trapos, utilizada quase sempre as escadinhas dos Baldaques, para me dirigir para a loja.

Lembro-me de sempre olhar para esta casa, entalada entre dois prédios, não como uma habitação, mas como uma daquelas casas de bonecas que, na infância mais ou menos atribulada, que nunca tive.


Hoje tem um novo visual pintada com aquelas cores garridas que agora se vêem muito.

Não consigo imaginar como será por dentro: se grande, pequena. Mesmo sendo a fachada sempre pequena, há casas em que as divisões alargam-se para as traseiras.

Já me deu na cabeça, onde dia bater á porta e falar a quem lá mora dessa curiosidade.

Mas reconheço que, nos tempos que correm, são coisas muito complicadas.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

JANELA DO DIA


1.

A notícia pertence ao Público.

É uma clara sopradela dos assessores de Belém para voltarem a colocar Cavaco Silva, a percorrer o país, em condições de  não ser vaiado.

Lembram-se das escutas em Belém no tempo de José Sócrates?

No fundo, mais um exemplo de algum jornalismo de sarjeta que nos assiste.

É absoluta a discordância de algumas das mais proeminentes personalidades do cavaquismo e do próprio Presidente da República sobre a condução da política orçamental e as prioridades para a organização das finanças públicas, que têm sido adoptadas pelo Governo.

2.

O primeiro-ministro Pedro Passos Coelho negou, esta segunda-feira, em Bruxelas, qualquer contencioso entre o seu Governo e o presidente da República e garantiu que não perde nem um minuto sequer a discutir notícias sem fundamento.

3.

Os portugueses devolveram 6900 casas aos bancos no ano passado. O problema atinge famílias e promotores imobiliários e registou um crescimento de 17%.

QUOTIDIANOS


Lisboa, apartamento de um prédio na freguesia das Mercês, século XXI.

Duas irmãs, de 74 e 80 anos, foram encontradas mortas, em avançado estado de decomposição.

A mais nova morreu com um cancro e deixou de prestar assistência à outra irmã, que, acamada, viu-se, de repente, privada de água, de comida, de tudo.

Não lembro quem disse: às vezes, a maior de todas as viagens, é a distância entre duas pessoas.

Viviam muito isoladas e quase não saíam de casa, disseram as vizinhas.

O presidente da junta de freguesia disse que desconhecia a situação das duas idosas.

Os frios números da estatística da câmara municipal, mostram que há dois anos foram encontradas mortas, por abandono e solidão, 60 pessoas e no ano passado esse número subiu para 71.

Hoje, ser velho é uma estatística e um nome…

Cortados os fios do interesse pela vida, resta a inutilidade, a solidão, a pessoa torna-se um fardo, o pior bocado que nos acontece: doenças, fraquezas, humilhações, uma tristeza sem fim.

Envelhecer é não ser preciso.

Quando encontrar o Zé Gomes Ferreira, hei-de dizer-lhe que aquele desabafo que deixou na Imitação dos Dias: Ah! A pena que os velhos têm de deixar o mundo diferente do que encontraram, já não é bem assim, se é que alguma vez foi…

Que mundo andámos a construir?

Legenda: pintura de Van Gogh

POSTAIS SEM SELO


Hoje olho para a Assembleia da República com algum desencanto: melhoraram as gravatas, mas rareiam as ideias.

domingo, 29 de janeiro de 2012

JANELA DO DIA


Por norma os fins-de-semana são dias parcos em notícias, os políticos os fala-barato, vão arejar e, apenas ficam as outras notícias, normalmente mortes outras tragédias, por vezes, um acontecimento feliz.
É um tempo propício para colocar à janela o que, nos últimos dias fui lendo pela concorrência.
Sara Figueiredo Costa, no seu Cadeirão Voltaire, faz uma bonita evocação, sobre o fecho da Livraria Portugal:

Nunca vi Natália Correia ao vivo, mas tenho dela uma imagem muito nítida, de cigarro na ponta de uma enorme boquilha, cabelo armado e os gestos fulgurantes a pontuarem uma fala segura e sonora. Encostada ao balcão da Livraria Portugal, Natália Correia perorava sobre a poesia portuguesa, enquanto os clientes da casa, muitos deles escritores, ouviam e rebatiam, ou fingiam não ouvir. É uma memória muito definida, tão definida que não é minha, apesar de integrar sem risco de falsidade maior do que tantas outras o meu acervo pessoal de memórias. É uma memória da minha mãe, que eu ouvi tantas vezes e que imaginei com tanta dedicação que passou a ser minha. E era uma memória da minha avó, caixa na Livraria Portugal durante muitos anos. Na verdade, a Livraria Portugal, onde só entrei mais tarde, quando comecei a vir para Lisboa sozinha (é uma espécie de ritual de passagem suburbano, vir a Lisboa de modo independente), forneceu-me muitas memórias como esta, episódios a que não assisti mas que se colaram ao meu imaginário sem nenhuma diferença relativamente àquilo que se consideram memórias realmente experimentadas: Vergílio Ferreira escolhendo livros na estante, David Mourão-Ferreira parando para respirar, entre livros, o sossego que não lhe dariam as suas muitas pretendentes, os recados que se deixavam, a minha tia trabalhando durante um tempo no andar de cima, aquele que tem as janelas para a rua, os livros que pediam à minha avó para esconder debaixo do balcão, não fosse a PIDE aparecer para os apreender, e que mais tarde eram passados a outra pessoa, a minha mãe, miúda, a espreitar as novidades, abrindo os livros com todo o cuidado e lendo de uma ponta à outra os volumes que não podia comprar, as discussões que por vezes estalavam entre gente das letras, umas vezes motivadas por barricadas estético-literárias, outras por histórias de cama mal contadas. Quando eu comecei a ir à Livraria Portugal já nada disto era assim, claro. A minha avó estava reformada, a minha tia trabalhava noutro sítio e a minha mãe já podia comprar alguns livros; Natália Correia aparecia na televisão, num programa chamado Mátria, David Mourão-Ferreira aparecia com o seu cachimbo na mercearia de uma aldeia onde eu também crescia, e a PIDE, felizmente, já tinha acabado há muito, entre tanques cobertos de gente e cravos que também hão-de ter passado pela Rua do Carmo. Agora, setenta anos depois de abrir as portas, a Livraria Portugal vai ter de fechá-las. A notícia vem em vários jornais, nomeadamente no i, onde António Machado, funcionário da livraria há 40 anos, explica que a situação é “insustentável com as grandes alterações no mercado livreiro, a quebra das vendas e a insuficiência de meios para pagar as despesas”. E diz mais: “Os livros vendem-se hoje em todo o lado: nas grandes superfícies, na internet, nos correios, a preços e com condições que não podemos acompanhar“. Suponho que isto seja o progresso, o mundo a funcionar, o inevitável e blá, blá, blá. Pela minha parte, estou muito triste.

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS

PIEDOSA MENTIRA


Eu tenho um prato do Benfica…!

É claro que já estou a ouvir as más-línguas do costume a  dizer:  “lá vem este chato dar-nos cabo do juízo com os seus vómitos… Porque não se cala…?”

Mas garanto-vos que é a pura verdade e que não me estou a preparar para gozar o prato à custa do Benfica…

A imagem comprova que vos falo verdade…

Acredito que estão maravilhados…

Mas, certamente, não tão maravilhados quanto eu próprio fiquei, quando ele me foi oferecido, há muitos, muitos anos atrás. Primeiro, porque era um puto de cinco ou seis anos,  e tudo o que fosse oferta me caia bem; mas, sobretudo,  porque o prato tinha, na altura,  um colorido e um brilho magníficos, que hoje, em parte,  já  se perderam…  Era feito com aqueles pozinhos brilhantes utilizados nas artes manuais e parecia que até no escuro dava luz.

Tem, apenas,duas inscrições: uma que diz  S.L.B. em letras  grandes; outra, Oferta da Piedade escrito de uma forma mais singela.

No meio, dois pequenos losangos, um com um emblema do Benfica e outro com uma fotografia minha de mão dada, ou perto disso, com uma miúda da minha idade, sobrinha da melhor amiga da minha Mãe.

Agora que já acreditam em mim, estou certo de que irão gostar de  conhecer o resto da história… Mas isso irá obrigar-nos a um longo flash-back de mais de 50 anos.


Na altura (1957, 1958…) morávamos numa grande casa  entre o Campo Pequeno e Entrecampos, no local onde se foi instalar, depois, a Feira Popular. A casa tinha dois andares e um grande pátio para a frente e outro para as traseiras (se vos falo nesses pormenores não é por preciosismo, mas por serem importantes para a nossa história…).

Nessa época, que me lembre, não tínhamos nenhuma Empregada residente, mas tínhamos uma – a Piedade – que entrava de manhã cedinho e saia ao final da tarde.

Quem a levava e a ia buscar era o marido, um tipo alto, magro, com ar simpático e bonacheirão, que se chamava Júlio e a quem eu chamava Gungun, não de forma carinhosa, mas por, quando ainda muito miúdo,  não saber dizer o nome de outra maneira. Depois ficou sempre assim, tal como a prima Lena ficou  Bábá  durante muitos anos.

O Júlio/Gungun foi o primeiro da enorme multidão de benfiquistas que se me atravessaram no caminho ao longo da vida.

Mas o Júlio tinha uma particularidade: era um benfiquista talvez ainda mais ferrenho do que todos os outros e meteu-se-lhe na cabeça que haveria de fazer de mim o mais fanático dos benfiquistas à face da Terra, depois dele, claro está…

Desde tenra idade que me  habituei aos nomes dos principais atletas e aos gloriosos feitos do glorioso clube. O nome de Alves Barbosa, por exemplo, era-me bastante mais familiar do que o da maior parte dos meus próprios familiares directos…

O Júlio chegava a casa - recordo-me sempre dessas ao fim da tarde, porque de manhã devia estar a dormir -   e berrava para mim naquele casarão enorme: “LUIS MIGUEL (ou LUISINHO, já não me lembro bem como é que ele me chamava…), QUEM  É O MAIOR…? E eu, estivesse  onde estivesse, tinha de vir a correr para lhe responder, a boca colada  junto aos  joelhos: “É O BENFICA GUNGUN!,  É O BENFICA!,… O BENFICA”…

A cena repetia-se diariamente e, às vezes, entretido nas minhas brincadeiras de criança, apanhava verdadeiros sustos com aquele vozeirão.  Todo o meu nervosismo e, seguramente, a  gaguez que me acompanhou durante muitos anos e ainda se manifesta de quando em vez, tiveram certamente aí a sua origem…

Ultrapassada que foi essa fase de doutrinação na História,  nos nomes e nas palavras-de-ordem, passámos então, digamos assim, a uma fase mais prática. Passei a ir ver os jogos ao vivo no Estádio da Luz, com o bom do Júlio e  com a Piedade, adepta quase tão fervorosa quanto ele…

A primeira vez que me lembro foi um Benfica – Porto, que me parece que o Benfica ganhou por 1 – 0, com um golo de cabeça do Águas. Apesar de puto, tinha sido tão massacrado que já sabia muito bem, nessa altura, que no mundo da bola  não havia cabecinha  como a do José Águas…

A última, já mais crescidote e a única que me lembro de ter sido à noite para a então chamada Taça dos Campeões Europeus, um Benfica – Feyenord que o Benfica ganhou por 3 – 0 ou por 3 – 1, já não me lembro ao certo. Mas três foram, de certeza…

No entretanto, não sei dizer ao certo mas devo ter ido à Luz pelo menos  uma boa dúzia de vezes,  e ficava, quase sempre, de fim-de-semana em casa deles.

Mas  o problema é que o Júlio e a Piedade moravam em Odivelas e, mais tarde, em Camarate e não tinham carro (lá mais para o fim lembro-me que até já tinham um  muito velho, mas não o levavam para o Estádio…). O que significava  que tínhamos de ir de transportes públicos até ao cimo do Campo Grande e depois …  a butes até à Luz . Ida e volta…

E não pensem que a 2ª Circular de então era a beleza que é hoje… No início, nem sequer existia o viaduto  sobre a Estrada das Laranjeiras e tínhamos de descer lá para o fundo e voltar a subir em direcção ao Estádio. Lembro-me de ter feito esse caminho debaixo de chuva e com tudo enlameado à minha volta, provavelmente já resultante das obras do viaduto…

A ideia que tenho, desse tempo, é que ir à bola não me desagradava de todo (devia comer um gelado ou beber  um pirolito…), mas nunca constituiu,  para mim, um prazer muito especial. Muito longe, por exemplo, da magnífica obsessão que já era, na mesma altura, uma ida ao Cinema…

Mas aquela caminhada para a Luz era demasiado cansativa…

E esse  prazer  inicial  transformou-se em obrigação, a obrigação em suplício, o suplício em tortura e tudo isso junto me aguçou o engenho para inventar  enormíssimas dores de barriga ou inadiáveis obrigações escolares de cada vez que se adivinhava um convite para o Paraíso da Luz…

Eles devem ter percebido…

A Piedade, entretanto, deixou de trabalhar para a minha Mãe e assim terminou, de forma inglória, a minha curta carreira de maior benfiquista à face da Terra (depois do Gungun, claro está…)…

A oferta do prato, já o adivinharam, vem desses tempos de doutrinação ideológica.  Não sei de quem  terá partido a ideia de oferecer um prato do Benfica ao miúdo, se da Piedade se do Júlio, mas para o caso pouco interessa. Quem  fez a obra  foi o Júlio, que era o verdadeiro artista…

Mas houve uma coisa que sempre me intrigou neste prato…

Havendo tantas fotografias minhas em nossa casa, e sendo, na altura, o futebol uma  coisa de Homens, porque carga d’água foram eles escolher uma fotografia onde eu apareço acompanhado por uma rapariga…?

Dei comigo a fazer as minhas próprias suposições…

Será que o Júlio quis associar ao Benfica uma ideia de Paixão, assim simbolizada por aqueles dois miúdos de mão dada…?  Até é possível que eles  dissessem  na altura, por brincadeira,  que a Natalinha – assim se chamava a pequena  – era a minha namorada…

Ou será que o prato, assim bonito e reluzente, não simbolizaria mais, afinal,  do que a Paixão do próprio Júlio pela Piedade, e eu e a Natalinha não passássemos de um mero pretexto para a ilustrar…?  No dia-a-dia era, aliás, bem perceptível que o Júlio tinha uma autêntica devoção pela  Piedade, que não ia sem ela para lado nenhum e (isso digo eu agora, claro está…) o simples facto de a ir levar e buscar todos os dias poderá demonstrar grande preocupação da parte dele  em que ela não se perdesse pelo caminho…

Jamais o saberei e, agora, pouco importa. Prefiro pensar que o prato foi feito só para mim,  embora me continue a irritar  o facto de estar acompanhado, e não sozinho, nessa fotografia…

Guardei esse prato religiosamente ao longo dos anos e, perdido que deverá estar, para sempre, o xailinho azul bebé onde me enrolavam em pequenino, ele constitui uma das minhas duas únicas recordações materiais  desses tempos de tenra idade. A outra é o prato onde comia a sopa, bordejado de bonequinhos e que já está, hoje, em poder dos meus netos, seus legítimos herdeiros.

Mas o que eu gostaria hoje, verdadeiramente, era de poder dar um enorme, um enormíssimo abraço à Piedade e ao Gungun…

Há uns anos atrás, ao contar está história, alguém me falou que o Henrique Mendes tinha um programa na SIC cujo objectivo era, precisamente, encontrar pessoas desaparecidas… Mas nem eu teria  lata para aparecer na SIC com um prato na mão, nem eles, certamente ávidos de histórias de ciúmes, traições, vinganças familiares, cenas de faca e alguidar, iriam alguma vez dar importância a esta minha preocupação…

Dei comigo, por isso,  a imaginar a minha própria  história…

Era um Domingo de muito sol, o Estádio da Luz estava  bem composto e, ao intervalo, o Benfica já ganhava por  três a zero (vão perceber que, para a história funcionar bem, o dia tem de estar bom e o Benfica tem de dar uma cabazada…).

Durante o intervalo o simpático Speeker de serviço faz uma pausa no discurso habitual e lança uma desafio à multidão:

“Porventura está entre vós alguém que se chama Júlio,  mora ou morou para as bandas de Camarate,
é ou foi casado com uma Senhora chamada Piedade que trabalhou a dias num lugar que se chamava
Mercado Geral de Gados, ali perto de Entrecampos,  onde depois foi instalada  a Feira Popular…?

Se sim, pede-se a gentileza de se dirigir no final do jogo à estátua do Eusébio,  porque alguém Amigo lhe
deseja fazer uma boa surpresa…

Obrigado!”

(ouvem-se palmas, porque quando o Speeker da Luz fala há sempre palmas, excepto para o árbitro e para os
jogadores da equipa adversária…)

A tarde continuava magnífica, o Benfica ganhara por  7 – 0 e foi sem qualquer tipo de esperança que me dirigi, no final do jogo, para a estátua do Eusébio,  com o meu prato cuidadosamente embrulhado debaixo do braço…

Esperei imenso tempo, bastante mais do que seria razoável… Várias vezes estive para me ir embora,  mas uma voz cá dentro dizia-me sempre para  esperar um bocadinho  mais, que diabo, já que me tinha dado a tanto trabalho…

Já o sol ia baixo  quando vi surgir, ao longe, aquela figura alta e magra, embora um pouco curvada, que parecia andar muito devagarinho apoiada numa bengala. Naquele contraluz, era mais uma sombra que caminhava lentamente,  mas não tive a mais pequena dúvida de que era ele…

Deixei-o avançar um pouco mais e então aproximei-me  e chamei-o pelo nome. Acenou-me que sim com a cabeça e ficou  a olhar para mim com um ar interrogativo.

Disse-lhe quem era e ele lembrava-se de mim, talvez porque tivesse levado aquele tempo todo, desde o intervalo do jogo, a pensar no Mercado Geral de Gados…

Depois de um longo abraço, perguntei-lhe se queria tomar alguma coisa e ele respondeu-me que uma tacinha de branco e uns pastelinhos de bacalhau  o deixariam já muito bem  jantado.

Sentámo-nos no sítio mais sossegado que consegui encontrar e perguntei-lhe, de imediato, pela  Piedade.

Uma lágrima ao canto do olho respondeu por ele, muito antes das suas próprias palavras… Tinha-lhe desaparecido  há vinte anos  anos atrás, numa morte estúpida. Uma queda num alçapão num armazém do Catujal, onde trabalhava. A queda não fora grande, mas a forma como batera com a cabeça e o pescoço fora-lhe fatal… Morte instantânea e sem sofrimento, ao menos isso…

Lamentei a situação e procurei mudar de conversa.

Perguntei-lhe se ainda vinha à bola com frequência e respondeu-me que não, que vinha muito raramente, quando o tempo estava bom e o jogo não fosse de grandes sustos, porque a máquina já não lhe funcionava da mesma maneira… E as pernas sempre foram o seu calcanhar de Aquiles… Usava bengala não por absoluta necessidade, mas por prudência… Andava sempre devagar, mas não necessitava de grande apoio. Mas um dia, na confusão das entradas do estádio, foi empurrado e caiu desamparado no chão… Serviu-lhe de emenda e, a partir daí, foge das confusões … Vê os jogos no café do bairro e quando vem ao estádio, para matar saudades, traz sempre consigo a  bengala para se apoiar melhor. Às vezes embirram com ela à entrada, mas acaba sempre por conseguir passar…

Falava lenta e pausadamente, e comia, também, muito devagar, saboreando com prazer.

Perguntei-lhe o que tinha feito na vida  e contou-me que tinha montado um negócio de serralharia perto de casa, que lhe tinha dado para viverem os dois sem problemas,  já que nunca tinham conseguido ter filhos. O negócio dava o suficiente para a  Piedade não ter necessidade nenhuma de trabalhar, mas ninguém a aguentava parada em casa…

Ele próprio tinha trabalhado até muito tarde porque, sobretudo depois da Piedade lhe ter desaparecido, estar parado era o pior que lhe poderia acontecer.

Mas a partir do momento em que a vista começou a piorar e as pernas a pesarem-lhe ainda mais, passou o negócio e ganhou um dinheirito que lhe vai chegando para as necessidades, que também já não são muitas…

Continua a viver na mesma casa de Camarate que eu conheci, embora lhe tivessem feito grandes obras. É lá que se sente bem e é lá que continua a sentir a companhia da mulher. Acontece-lhe muito ouvi-la na cozinha a arrumar a loiça, mas é sobretudo à noitinha, antes de se deitar, que ela se vem sentar no sofá junto dele para dois dedos de conversa.

Os vizinhos mais antigos já lhe disseram que, qualquer dia, tem de pensar em vender a barraquita e ir para um Lar, para estar mais acompanhado. Mas dali ninguém o tira… Se tivesse de sair de casa morreria mais depressa do que o Cardozo levaria a fazer uma desmarcação dentro da área, disse-me ele, esboçando um ligeiro sorriso…

Deixei-o acabar de comer e percebi  que lhe soube bem.  Café  já não tomava à noite, mas aceitou acompanhar-me num Licor Beirão, para comemoração do nosso encontro.

Confesso que hesitei bastante antes de avançar, atendendo às circunstâncias… Mas convenci-me a mim próprio de que ele haveria de gostar…

Enchi-me então de coragem e, com toda a cautela,  mostrei-lhe o prato e perguntei-lhe se isso o fazia recordar  alguma coisa…

Deixei-o a olhar durante algum tempo e depois pousei a minha  mão sobre o seu braço e agradeci-lhe, comovidamente, o ter feito de mim benfiquista desde  pequenino..

Quanto voltou a levantar o olhar na minha direcção as lágrimas estavam lá, mas também lá estava, estampado  no rosto, o mais belo sorriso com que me brindou durante todo esse  tempo em que estivemos juntos…

E fiquei, então, com a certeza absoluta de que foram essas minhas palavras, e não a exibição e a goleada do Benfica, o que lhe fizera  ganhar verdadeiramente o dia, nessa tarde.


Colaboração de Luís Miguel Mira

IDÍLIO EM BICICLETA


Ainda a conversa de fim de tarde com o Idílio no Salão Nobre do Instituto Nacional de Estatística.

Acabadas as histórias, o Idílio, com aquele seu ar de menino tímido que, por tudo e por nada, pede desculpa por estar a incomodar, pediu-nos um pouco mais de paciência e presenteou-nos, durante cerca de cinco minutos, com uma selecção de fotografias, ao som de A Gente Vai Continuar do Jorge Palma.

Como se não soubéssemos que o Idílio apenas anda a lagartar um pouco ao sol, preparando o próximo salto ele que, quase em surdina, lembrou que o oriente é  vermelho e apostaríamos um milhão de dólares em como será por aí, que a bicicleta-de-bacalhau-com-todos/, voltará a rolar.

É que o  Idílio destrói, por completo, a tese da escritora francesa Sidonie Colette quando disse que viajar só é necessário às imaginações curtas.

Gosto à ufa de findares de tarde felizes.

Tira a mão do queixo não penses mais nisso
O que lá vai já deu o que tinha a dar
Quem ganhou ganhou e usou-se disso
Quem perdeu há-de ter mais cartas pra dar
E enquanto alguns fazem figura
Outros sucumbem á batota
Chega a onde tu quiseres
Mas goza bem a tua rota
Enquanto houver estrada pra andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada pra andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar
Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém
Somos todos escravos do que precisamos
Reduz as necessidades se queres passar bem
Que a dependência é uma besta
Que dá cabo do desejo
A liberdade é uma maluca
Que sabe quanto vale um beijo

POSTAIS SEM SELO


Não só Deus não existe como é difícil encontrar um canalizador ao fim de semana.

 Woody Allen

sábado, 28 de janeiro de 2012

JANELA DO DIA


Por norma os fins-de-semana são dias parcos em notícias, os políticos os fala-barato, vão arejar e, apenas ficam as outras notícias, normalmente mortes outras tragédias, por vezes, um acontecimento feliz.
É um tempo propício para colocar à janela o que, nos últimos dias fui lendo pela concorrência.

1.

Grupos privados arrecadam mais 13% com a saúde em 2011
Os quatro maiores grupos económicos a operar na área da saúde em Portugal facturaram, em 2011, mais de 924 milhões de euros, um crescimento a dois dígitos (13%) face ao ano anterior. Para este ano, com o aumento das taxas moderadoras, e apesar da diminuição do poder de compra, os privados esperam que o negócio continue a crescer.

André Bonirre em A Natureza do Mal

2.

O presidente Cavaco Silva dá-se, como cada um de nós, com os seus amigos. Gente com um percurso de vida semelhante ao seu. É aí que faz a sua socialização. É essa a realidade que ele melhor conhece. E o que vê Aníbal à sua volta? Vê os seus vizinhos e velhos amigos da Quinta da Coelha com dachas maiores que a sua. Vê os seus ex-companheiros de partido saírem de um banco falido melhor do que entraram. Talvez com a exceção de Oliveira e Costa, outro injustiçado. Vê os seus ex-ministros espalhados por empresas privadas e públicas. Todos com salários e rendimentos que fazem dele um reles pelintra.

Será justo que as criaturas vivam melhor que o criador? É aceitável que Eduardo Catroga, Mira Amaral, Ferreira do Amaral, Dias Loureiro, Braga de Macedo e tantos outros vivam como uns nababos e ele ande aos caídos com míseros dez mil euros mensais? Cavaco Silva, que está para os políticos espertalhões como Júlio Isidro esteve para os novos talentos musicais (foi ele que descobriu quase todos), tem ficado para trás. E é agora obrigado a socorrer-se das suas poupanças.

Daniel Oliveira no Arrastão

3.

Acho uma certa piada à onda de indignação que anda por aí porque Alberto João Jardim não se demitiu. Sócrates mentiu e não se demitiu, Pedro Passos Coelho mentiu e fez exactamente o que outros fizeram antes dele, não se demitiu. Não sei qual é a admiração. Neste país ninguém se demite por faltar à sua palavra e mentir vilmente aos portugueses. Deve ser o fado. Admitamos a nossa condição de enganados ou façamos como na Islândia e metamo-los dentro. Diz que o país prospera agora.

Leonor Barros no Delito de Opinião

IDÍLIO EM BICICLETA


Depois de já ter falado da sua aventura, na televisão, na rádio, no Grupo Desportivo do INE,
o Idílio já aprazou uma outra conversa para 12 de Março na Casa das Américas.

Com enorme expectativa, aguardamos que toda esta indomável vontade fique registada em livro.

Antes do desfile das fotografias, que o Idílio tirou na sua aventura pelas Américas, antes da conversa-tu-cá-tu-lá que enceta connosco, contando, ao vivo – tem outro sabor – as histórias ternas e de bom humor que viveu, pudemos admirar, a um canto do Salão Nobre do INE, a sua estimável e elegante companheira de viagem.

Quando dela fala, os olhos do Idílio sorriem.


De quem ama o silêncio e a solidão, a companhia dos amigos, o ficarmos, também, a saber que o rapaz de 45 anos, nascido no Pombal, economista de formação que, em Julho de 2010, beneficiando de uma licença sem vencimento de ano e meio, saiu de Lisboa com o objectivo de atravessar o continente americano de ponta a ponta, desde o norte do Canadá até ao sul da Argentina, não é, necessariamente o mesmo que, em Setembro do ano passado, chegou ao Aeroporto da Portela.  


 Nunca o “nada” e o “tudo” estiveram tão perto de mim como no deserto; nunca o vazio e a plenitude tiveram maior expressão; nunca a vida e a morte se apresentaram tão perfeitas. Nada como o deserto, nada.

“O que estou aqui a fazer? Para onde vou?”

Uma viagem sem relógio, que foi deitado a um lago no Canadá, num momento simbólico de libertação de um outro quotidiano.


 A viagem em números:

15 meses
15 países
30.000 Kms
342 dias a pedalar
87,7 Km/dia (jornada média)
36,1 euros/dia (custo médio)
38 furos, 12 pneus, 11 câmaras de ar, 5 correntes, 1º raios
2 intoxicações alimentares

Bagagem:

50 kilos de bagagem
Tenda, saco-cama, colchão, almofada
Kit de cozinha: fogão, gás, tachos, panelas, talheres
Mala de primeiros socorros
Roupa de inverno e de verão e artigos de higiene
Ferramentas e peças para a bicicleta
Alforge com comida
Computador portátil, máquina fotográfica, carregadores, baterias



 Países pedalados:

Canadá
EUA
México
Guatemala
El Salvador
Honduras
Nicarágua
Costa Rica
Pananá
Colômbia
Equador
Perú
Bolívia
Chile
Argentina



Mais uma subida, mais uma curva, o Cerro Olívia pelas costas, e a baía de Ushuaia vem ao meu encontro de braços estendidos, com a cidade nevada estendida na palma da mão.

Aos lábios afluiu-me um leve sorriso…

Afinal o Ushuaia era já ali e a viagem, por fim, chegou ao fim.

POSTAIS SEM SELO


E disse-me que a pele dela era uma fronteira. Banal. Ao fim de tanto tempo, quando lhe toco regresso a casa. Ainda mais banal. Espera, disse ele. Às vezes fico de fora, sem rockets nem aviões silenciosos. E para onde vais? Para lado nenhum. Vivo na fronteira.
É o que acontece quando se partilha um risco no chão tempo demais.


Filipe Nunes Vicente

Legenda: fotografia de Idílio Freire

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

SARAMAGUEANDO


A Livraria Portugal, de portas abertas há setenta anos, a funcionar na Rua do Carmo, no Chiado,  junto ao elevador de Santa Justa,  vai encerrar.

Esta é uma notícia que dói. Dói porque é mais uma machadada na vida da cidade,  em particular na sua vida cultural.

Os motivos avançados são os do costume: uma boa fatia de leitores deixaram de frequentar as livrarias, passaram a comprar livros na internet, nas grandes superfícies, na Fnac que, digo eu, não é uma livraria, apenas uma outra qualquer grande superfície que vende livros, com a mesma displicência com que vende pilhas para transístores.

A Livraria Portugal chegou a empregar 50 trabalhadores, hoje tem uma dezena, que, segundo os proprietários, receberá as respectivas indemnizações.

Possivelmente irá lugar a mais uma agência bancária, ou uma loja de trapos. Livraria, com toda a certeza, não será.

Foi na Livraria Portugal que comprei, entre tantos outros livros, Os Poemas Possíveis de José Saramago.
 aNesse dia, ao meu lado o peta António Manuel couto Viera sobraçava alguns livros e entre pude ver o livro de Saramago. Era Setembro de 1966 a findar, e lá fora chovia.

Quantas livrarias, em Lisboa já vi fecharem as portas?

Cada uma que fecha, leva-me para aquela ambiência criada pela escritora norte-americana, Helen Hanff, no seu livro 84, Charing Cross Road  em que revela a correspondência que manteve, ao longo de vinte anos, de continente a continente, com os empregados de uma livraria dessa mítica rua londrina.

Nunca li o livro de Helen Haniff, mas vi a adaptação que David Hugh James realizou.

O filme em português chama-se A Rua do Adeus tem interpretação de Anthony Hopkins e Anne Brancoft e dele transborda uma imensa ternura e amor pelos livros, uma livraria, uma porta com um sininho que chocalha cada vez que entra um cliente e que é o único ruído, para além do folhear das páginas dos livros, que rompe o silêncio daquele santuário.

A notícia do encerramento da Livraria Portugal magoa e deixa profundas marcas.

Aos poucos, as livrarias vão morrendo.

Nós, um pouco com elas.

NEM O PASSADO LHES ESCAPA


O acto de censura, por parte da RDP, de que foi alvo o jornalista Pedro Rosa Mendes, foi abordado na Janela do Dia.

Manuel António Pina, na sua crónica no Jornal de Notícias, não deixou de  referir à lamentável ocorrência:

A Antena 1 acabou com a rubrica de opinião "Este Tempo" após, numa crónica de Pedro Rosa Mendes, aí ter sido criticado o servilismo do Governo face ao regime corrupto de Luanda e o tipo de jornalismo que, pago a peso de oiro com dinheiros públicos, sabuja, sob o diáfano manto da "informação", cada poder do momento.

A decisão recorda-me episódios idênticos vividos no JN antes de 1974. Um em que uma crónica de Olga Vasconcelos sobre Indira Ghandi, filha de Nehru (que ordenara a invasão da "Índia Portuguesa"), levou à ordem de encerramento da rubrica onde fora publicada; e um outro que pôs fim ao Suplemento Literário dirigido por Nuno Teixeira Neves por aí não ter sido devidamente louvado um medíocre romance do escritor do regime Joaquim Paço d'Arcos. Os dois jornalistas só não foram despedidos porque tiveram o apoio do então director Pacheco de Miranda e, no primeiro caso, também do chefe de Redacção Costa Carvalho.

As personagens são agora outras, ou as mesmas com outros nomes, mas as semelhanças são inquietantes (só não há na Antena 1 Pachecos de Miranda nem Costas Carvalhos). E vivemos, diz-se, em democracia, regime em que a Velha Senhora, a Censura, não tem, diz-se, lugar.

Mas por algum motivo 64,6% dos portugueses estão hoje, segundo o "Barómetro da Qualidade da Democracia" apresentado há dias, insatisfeitos com a democracia que temos, quando em 1999 mais de 80% a consideravam "boa" ou "muito boa".

POSTAIS SEM SELO


O sentido da vida é procurar qualquer sentido.


Legenda: Paul Giamatti no filme Sideways de Alexander Payne , 2004.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

JANELA DO DIA


Pedro Rosa Mendes, participava, juntamente com António Granado, Raquel Freire, Gonçalo Cadilhe e Rita Matos., num espaço de crónica da Antena 1 denominado Este Tempo.

A rubrica foi agora extinta depois de, na sua última crónica, Pedro Rosa Mendes ter tecido duras críticas ao programa da RTP, emitido a partir de Luanda,, Prós e Contras.

A informação do rompimento do contrato, com o cronista, foi-lhe comunicada, informava o jornal Público, via telefónica, pela administração da RDP.

Foi-me dito que a próxima seria a última porque a administração da casa não tinha gostado da última crónica sobre a RTP e Angola, afirmou Pedro Rosa Mendes, àquele jornal, acrescentando: A ser verdade, esta atitude é um acto de censura pura e dura
.
Luis Marinho, director-geral da RTP, que comanda igualmente a RDP, veio explicar que foi decidido terminar com a série e não apenas com o programa da autoria do Pedro Rosa Mendes. A decisão já estava tomada há algum tempo, antes do referido programa ter sido emitido.

Sobre este a Comissão de Trabalhadores da RTP tomou a seguinte posição:

A decisão de acabar com o programa da Antena 1 “Este Tempo” suscitou generalizadas acusações de censura contra a RTP. O diretor geral da RTP rebateu estas acusações, alegando que o fim do programa já estava previsto e não constitui, portanto, uma retaliação contra as críticas que aí emitiu o colunista Pedro Rosa Mendes (PRM) sobre o programa “Reencontro” de Fátima Campos Ferreira. PRM retorquiu que nas últimas semanas estava em discussão a alteração do formato jurídico do seu contrato, mas nunca se anunciara a intenção de acabar com o programa. E afirma que a decisão de acabar com o mesmo lhe foi comunicada como reação à sua crónica sobre “Reencontro”. No meio desta polémica, um primeiro ponto pode estabelecer-se como coisa certa: a RTP fez uma triste figura e alimentou, no mínimo, uma suspeição de censura que mesmo o desmentido do diretor geral não consegue dissipar inteiramente. Supondo que fosse falso tudo o que diz PRM sobre os preparativos para uma renovação dos contratos de “Este Tempo”, e que o fim do programa estivesse efetivamente previsto, pergunta-se: e ao dar a machadada final no programa não se percebeu como essa decisão, neste momento e neste contexto, só podia ser vista como censória? E não se percebeu como a acusação de censura lesava a imagem da rádio pública? E não se percebeu como esses estragos na imagem da RDP se tornavam duplamente graves na sequência dos estragos que o programa “Reencontro” tinha deixado no prestígio da televisão pública? E este é o segundo ponto que pode considerar-se estabelecido para além de qualquer dúvida razoável: ao escamotear a realidade angolana, o programa “Reencontro” deu, afinal, execução e cumprimento às recomendações de um relatório que a abominação pública parecia ter relegado, merecidamente, para o caixote do lixo da História – o relatório Duque. Nesse documento expendia-se a ideia peregrina de que a RTP devia tornar-se uma agência de comunicação do MNE. O programa “Reencontro” veio mostrar que o defunto relatório continua, por trás dos bastidores, bem mais vivo, perigoso e nefasto do que o clamor de repúdio da opinião pública parecia permitir. Admitindo que sejam certas as explicações dadas pelo diretor geral da RTP, fica ainda uma outra questão por esclarecer: em que conceção de futuro para a rádio e a televisão públicas se inscreve a decisão de acabar com o programa “Este Tempo”? Damos por suposto que não se tomam nesta casa decisões avulsas e que cada passo pontual corresponde a uma estratégia de maior fôlego – ou seria adiado até existir essa estratégia, com a vantagem adicional de ser dado em momento mais oportuno e sem o estigma desta aparência atentatória da liberdade de expressão. Ora, se existe uma estratégia já delineada, então está-se a proceder a uma reestruturação clandestina, evitando chamá-la pelo seu nome e evitando pôr as cartas na mesa. Talvez por isso, esta CT continua sem ser ouvida sobre o dito processo de reestruturação, como a lei determina.

Raquel Freire, que também tinha crónica em Este Tempo, ao despedir-se dos ouvintes, deixou estas palavras:

Como povo, passámos tempos piores do que este e soubemos levantar-nos do chão. Apesar daqueles que nos deviam liderar nos dizerem que nada valemos, somos melhores do que eles pensam. Somos melhores do que nós próprios pensamos. Nós não estamos condenados a esta humilhação. Sim, sairemos da nossa zona de conforto. Não para emigrar, mas para, como, cantava o Sérgio Godinho, fazer outra terra no mesmo lugar. Não será seguramente com esta gente. Será com gente que nos represente. Nós saberemos encontrá-la. Não desanimamos nem desistimos. Porque não há luta sem esperança, nem esperança sem luta.

Por isso 2012 é o ano dos desafios, de apresentar e operacionalizar as alternativas. De ganharmos coragem e responsabilidade. É o ano de perdermos o medo.

É a minha última crónica, não vos digo adeus, digo-vos até já!, vemo-nos nas ruas.

ONDE ESTÃO OS CINÉFILOS?...


Sou uma pessoa pacata e não tenho muito o hábito de exteriorizar a minha indignação. Faço-o, geralmente, para mim próprio ou en passant e se vem a propósito, para algumas das pessoas que me são mais próximas.

É claro que me indignei com o despudor do nosso Presidente da Republica… Mas desde o dia em que foi eleito pela primeira vez fiz a mim próprio o voto de procurar, a todo o custo, ignorar que Portugal tinha um Presidente da República chamado Aníbal Cavaco Silva.

É claro que me indignam muitas das decisões arbitrárias e oportunistas do actual Governo. É o contexto, dizem sempre, parecendo ignorar que existem não apenas uma, mas várias formas de dar volta ao texto….

Cumpri a minha obrigação e não votei neles. Como não votei em nenhum dos outros… Esse voto em branco não me rendeu nada, a não ser uma consciência mais tranquila e uma amolgadela na lateral do meu carro feita por minha exclusiva responsabilidade…

Indignando-me para dentro não me manifesto tanto para fora e há outros que, quase sempre com razão, o fazem em permanência e bem melhor do que eu poderia alguma fez fazer, como é o caso do proprietário deste blogue…

Não me encontrarão, portanto, a marchar na Avª da Liberdade nem a atirar pedras em S. Bento…

Mas a minha indignação de hoje vou ter de a exteriorizar, dê lá por onde der, porque sei que somos muito poucos aqueles que estão em condições de o fazer.

Vou procurar sintetizar.

A Cinemateca Portuguesa começou este mês a passar a totalidade dos sessenta e picos episódios de Cineastes, de Notre Temps, a célebre série documental que se iniciou em meados dos anos sessenta pela mão de Janine Bazin  e André. S. Labarthe.

É uma obra monumental, diria até mítica para a maioria dos cinéfilos que se perguntavam se alguma vez teriam a oportunidade de lhe pôr a vista em cima, tirando os dois ou três episódios que já tinham sido programados, anteriormente, pela Cinemateca.

É uma oportunidade única para vermos e ouvirmos os maiores Cineastas então ainda vivos falarem dos seus filmes: Ford, Stroheim, Sternberg, Walsh, Capra. Cukor, Vidor,  Mamoulian, Kazan, Lewis, Cassavetes, etc, só para dar apenas alguns exemplos  dos americanos ou dos que por lá fizeram uma parte  importante da sua obra.

É a oportunidade para ouvirmos interessantíssimos testemunhos sobre aqueles que já partiram: Vigo, Guitry, Becker, só para falar nos episódios que já vi.

Uma verdadeira preciosidade!

E como é que responderam os cinéfilos desta cidade a esta iniciativa…?

O máximo que contei até agora, nas quatro sessões a que já assisti, foram dezoito  pessoas, o que talvez não chegue para encher uma fila da Sala Félix Ribeiro…

Ontem, contei quatro no início do documentário sobre Jacques Becker e mais duas no final, que devem ter chegado a meio do filme…

André S. Labarthe esteve para vir a Lisboa apresentar alguns episódios desta série, mas acabou por ficar retido em Paris…

Que diria ele se tivesse visto dezoito pessoas sentadas na maior sala da Cinemateca Portuguesa? Que ficaria ele a pensar da Cultura e da Cinéfilia deste País e desta Cidade…?

Onde estão os Cinéfilos…?

Ontem talvez estivessem a ver o Barcelona – Real de Madrid, que admito que também seja um bom espectáculo…

Mas nos outros dias?...

E a malta que se entretem, por vezes com grande conhecimento e competência, a falar de Cinema  nos blogues, no Twiter, no FaceBook, no My Space, onde estão eles…?

E os críticos de Cinema deste País?... Já viram tudo?...

Tenho a certeza que não porque, tirando uma retrospectiva feita em 2011 no Centre Pompidou, esta série é, hoje, pouco mais que invisível…  

A culpa  deve ter sido da Cinemateca… Se os tivesse convidado para um drink e lhes tivesse entregue um Press Book com a papinha toda feita, outro galo cantaria…

Um escândalo e uma vergonha!       

Perguntam-me se digo isto de uma forma totalmente altruísta e estou, em boa verdade, muito preocupado com o futuro da cinéfilia em Portugal…?

Sim e não….

Estou-me completamente nas tintas para os filmes que as pessoas vão ver ou deixam de ir ver, os DVD’s que compram ou deixam de comprar…

Mas sei que paira uma espada de Dâmocles sobre a cabeça da Cinemateca….

Sei que há gente interessada em apertar-lhe ainda mais o pescoço e, se possível, cortar-lhe, de vez, o pio…

Se a Cinemateca Portuguesa for obrigada a reduzir ainda mais as suas sessões ou até, quiçá, fechar de vez as suas portas, aí acreditem que já me preocupo, e muito…

Puro egoísmo, portanto, como podem perceber…

Mas, se calhar, sou demasiado pessimista e não haverá qualquer problema se esse cenário mais negro se concretizar…

Tal como os outros tinham sempre Paris, nós teremos sempre a blogosfera  para poderemos evocar os filmes das nossas vidas, citar cenas e diálogos de cor, lembrar as músicas, numa palavra,  cantar este nosso genuíno e verdadeiro Amor pelo Cinema…

Desculpem lá, mas estou mesmo lixado! Para não dizer outra coisa que, num blogue tão delicado como este, cairia certamente mal…


Coloboração de Luís Miguel Mira