domingo, 28 de fevereiro de 2021

OLHAR AS CAPAS


O Testamento Político de Pablo Neruda

Pablo Neruda

Tradução: Alexandre O’Neill

Agência Portuguesa de Revistas, Lisboa, Dezembro de 1975


A Canção do Castigo

 

Não há que contar com o seu arrependimento,

nem há que esperar do céu estre trabalho;

 

o que trouxe à terra um tal tormento

deve ter os seus juízes aqui em baixo,

pela justiça e também pelo escarmento.

 

Não o aniquilaremos por vingança

mas só pelo que canto e pelo que infundo:

minha razão é a paz e é a esperança.

 

Nossos amores são de todo o mundo.

 

E o insecto voraz não se suicida

mas enrosca-se e crava o seu veneno

até que com a canção insecticida,

soerguendo na aurora o meu tinteiro,

 

todos eu conclamo para apagar

o Chefe ensanguentado e embusteiro,

que mandou, pelo céu e pelo mar,

 

que não vivessem mais povos inteiros,

povos de amor e de sabedoria

que nesse outro extremo do planeta,

 

no Vietnam, nas longínquas terras,

ao pé do arroz, em brancas bicicletas

fundavam o amor e a alegria:

 

povos que Nixon, o analfabeto,

nem sequer de nome conhecia

e que mandou matar com um decreto,

 

esse chacal distante e indiferente.

EM MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA


Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrêlas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que êstes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença,
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns Senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,

As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma côr, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver 
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dêle,
Do camarada raro que lembramos, 
Fiquemos uns momentos a cantar! 

António Botto

PARADISE CAFÉ


Gosta do título que o Eduardo Guerra Carneiro escolheu para aquele livro que, por Janeiro de 1970, publicou, Isto Anda Tudo Ligado, uma garrafa de gin, The London nº 1, original blue gin, que vem do Natal de há dois anos, mas aberta agora – como ele anda tão calminho, tão a portar-se educadamente como a família tanto gosta, um raio de um disco em que não pegava pr’aí há uns 20 anos, talvez mais, que vai demorar perto de 48 minutos a rodar, tempo suficiente para pegar no tal livrinho do Eduardo, a desfazer-se de tão lido, há muito esgotado, tem procurado nos alfarrabistas, na feira dita da ladra, mas nem sombras e apetece-lhe deixar palavras, frases arrancadas às leituras perdidas nas dobras da memória:

as palavras, deixem-nos falar de coisas que podem começar num copo de cerveja clara, súbitos silêncios, a lembrança de uma infância dourada, anos sessenta feitos e desfeitos, a pressa de agarrar as coisas, anos sem pressa, uma rapariga ao longe num pequeno bar junto á estação de Nelas, um corpo como quem recorda um navio ou um poema de Camilo Pessanha, a caderneta de jogadores roída pelos ratos, a cola feita de farinha, os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade, de que cor são os lagos da Suiça?, Ângela: qualquer coisa no teu olhar me fazia bem, mil mulheres ao contrário, algumas coisas nos marcou os gestos e antes de tudo, no meio de tudo, para além de tudo, o som de um long-play dos Beatles ouvido religiosa e solitàriamente na Rua Dona Luísa de Gusmão, à noite, onde está a cifra, a senha e contra-senha, a chave para abrir tudo isto?

sábado, 27 de fevereiro de 2021

OLHAR AS CAPAS


Ele Que Diga S Eu Minto

Antonio Botto

Edições Romero, Lisboa s/d  

Todo este livro é uma infinita camaradagem de vários factos sucedidos. A chamada literatura não tem nele intervenção. Talvez lhe faça falta a mentira de que alguns verdadeiros escritores abusam… Agrada-me ser oposto a essas virtudes de confecção, e sou assim, por natureza. Aqui há só o relato da verdade pura e simples. Podia chamar-lhe memórias ou mais propriamente ainda: um romance original, se às personagens pusesse o nome que as acompanha na vida. Para quê? Vivem. São gente; e entendi que era injustiça esse procedimento pata todas. Se a umas poderia livremente detalhar o que foram e fizeram sem terem de que se envergonhar porque não têm vergonha, a outras seria doloroso apresentar-lhes certos efeitos na biografia do caso pessoal… Mudei a feição ao trabalho: Dou o que é, sem subterfúgio, mas troco o nome à figura. Ninguém me peça explicações. As que se lêem pormenorizadas nas próprias páginas do volume, são as que eu poderia dar ao meu público fiel. Gentes e histórias humanas deste mundo em que vivemos socialmente em desordem: ansiedades em tumulto, o crime, o roubo, a tortura de uma noite de ciúme, o ódio, a ignomínia, o descer, o sacrifício, e o silêncio em que os soluços de uma dor extraordinária se suicidam uns nos outros para evitar o alarme o alarme que seria uma traição! Se oculto a origem e e o lugar é para evitar o acinte de que lhe chamem vingança de um artista sem amor, sem piedade ou consciência… A realidade tem escaninhos de que não saímos nunca.

QUOTIDIANOS


Andam tão escuros estes dias que passam, que a insónia invade a noite e torna tão claras essas noites.

Já não vivemos.

Apenas sobrevivemos.

O Jorge Fallorca tem um poema, chamou-lhe Medo, que começa assim:

«Durante anos, acreditei que o sono mata».

SUAVE SOB O CÔMORO


 

                                                            enterro de José Dias Coelho

Suave sob o cômoro

o corpo entregue enterra-se em a vala

em terra e as balas desfechadas que contêm

no dorso, ou sob os membros

o andar de antes animado.

 

Trazido jaz enquanto

cinde a dura terra e a frescura

da neblina, as alas dos olhares, caules

de arbustos despojados em o mistério inverno

de um cemitério; o inverno

que após os tempos da neblina

se aproxima de nós sem baixar do seu ar ao interior

do ermo que é a morte


Fiama Hasse Pais Brandão em (Este) Rosto

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

POSTAIS SEM SELO


Nascer é inaugurar a solidão.

Álvaro Guerra em O Capitão Nemo e Eu

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OLHAR AS CAPAS


O Ministério do Medo

Graham Greene

Tradução: Maria Lucília Rebocho Filipe

Capa: Antunes

Círculo de Leitores, Lisboa, Novembro de 1985 

Quando uma pessoa apaga uma marca de lápis, deve ter o cuidado de verificar se a linha desapareceu. Porque se um segredo é para guardar, nenhum cuidado é de mais. Se o doutor Forester não tivesse apagado tão mal os traços de lápis, nas margens da obra de Tolstoi, o senhor Rennit nunca teria sabido o que acontecera a Jones, Johns teria permanecido o adorador de heróis e era possível que o major Stone tivesse definhado lentamente para maiores profundidades da loucura, entre as paredes almofadadas do seu quarto, na zona dos doentes. E Digby? Digby teria permanecido Digby.

Porque foram as marcas de lápis, apagado, que mantiveram Digby acordado, a pensar, ao fim de um dia de solidão e aborrecimento. Não se podia respeitar um homem que não se atrevia a sustentar as suas opiniões abertamente e quando o respeito pelo doutor Forester desapareceu, muita coisa desapareceu com ele. O nobre rosto tornou-se menos convincente. Até as suas qualificações se tornaram questionáveis. Que direito tinha ele de proibir os jornais… acima de tudo, que direito tinha de proibir as visitas de Anna Hilfe?

QUOTIDIANOS


Há vacinas?

Não há vacinas?

Chegarão este ano?

Será no próximo?

Chegarão para todos?

Quem tenha o dom da fé, que acredite.

No que quer que seja.

Por ele, coloca aqui uma história que leu numa das crónicas que Ana Cristina Leonardo, publica no Ipsilon do Público, e fica sentado à espera que toque o telefone:

«Um membro do Partido encarregado do controlo da produção agrícola chega a uma aldeia, Dirige-se ao primeiro camponês que encontra e pergunta:

”Camarada, como estamos de batatas?»

O camponês responde, levando as mãos ao alto:

“Oh, este ano, graças a Deus, temos carradas de batatas”.

O membro do Partido franze o sobrolho:

«Deus não existe!”

Diz o camponês:

“Camarada, Deus não existe e batatas também não!”

ELE ANDA POR AÍ...HÁ-DE CHEGAR!...


Quando acordou, disposto a continuar a (des)governar o País, Pedro Passos Coelho ficou a saber que durante a noite das eleições,  António Costa mostrou-se, apesar de vencido, disposto a formar governo.

Jerónimo de Sousa acrescentou que o Partido Socialista «só não será governo se não quiser».

Aconteceu, então, um governo.

Paulo Portas, torcendo-se todo de humor e raiva, chamou-lhe «geringonça».

Cavalgava a geringonça pelos campos fora e Pedro Passos Coelho apressou-se a dizer que «o diabo há-de chegar».

Não apareceu, perdendo por falta de comparência.

Até porque, segundo dizem, o diabo não existe.

Deus também não.

São ambos construções do homem.

Dizem também.

Mas soube-se, agora, que Luís Montenegro, Paulo Rangel, Miguel Pinto da Luz,  mais uns quantos, anseiam para que Pedro Passos Coelho regresse à política e venha salvar a Pátria do Covid-19, do António Costa.

Eles vão rezando e fazendo figas para que esse regresso aconteça.

NÃO IMITA NINGUÉM


Fiel a si mesma, quando lhe perguntavam qual fora o elogio mais importante que recebera, Carmen preferia citar de cor o que sobre ela escrevera um crítico de rádio quando tinha ainda 14 anos: “ Carmen Dolores é uma menina que recita às quarta-feiras. Não imita ninguém. É ela.”

Do jornal Público

Colaboração de Aida Santos

AUSÊNCIA


Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refração de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice

Legenda: fotografia Shorpy

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

QUOTIDIANOS

 

Soube-se hoje que em Nova Iorque foi identificada nova variante do Covi-19.

Quantas variações já apareceram?

Quantas mais se seguirão?

Bertolt Brecht escreveu um Epitáfio para M.:

«Escapei aos tubarões

Abati os tigres

Fui devorado

Pelos percevejos.»

POSTAIS SEM SELO


O mundo é um lugar maravilhoso para se nascer se as pessoas não se preocuparem demasiadamente com o facto de a felicidade nem sempre ser muito divertida.

Lawrence Ferlinghetti em Como Eu Costumava Dizer

OLHAR AS CAPAS


 

Viver Para Matar

Mickey Spillane

Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 245

Livros do Brasil, Lisboa s/d

Saí do caminho de acesso à cave e parei à esquina da rua, com a chuva a bater-me na cara. Era uma chuva fria e batida pelo vento, mas sabia bem. Cheirava a frescura e a limpeza e os regatozinhos que me entravam pelo colarinho pareciam possuir um poder revificante.

Atrás de mim, o homenzinho que estava à porta acenou amigavelmente e disse:

- Até `*a vista!

- Obrigado, Mutt – agradeci, e pisquei-lhe o olho.

- Sempre às ordens – replicou antes de fechar a porta.

IN MEMORIAM


                                                          Requiem aeternam dona reis,

                                                          Domine, et lux perpetua

                                                          luceat eis

 

Que a terra lhe seja pesada.

Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos,

Se lhe soltem os dentes e a fome fique intacta

E a alma, se a tiver, que lha fustigue o vento

E arrase com ela a memória gravada

Na lembrança demente dos que o choram.

 

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,

Cheio de ossos e uivos

E garfos aguçados

E que reparta o medo com o primeiro intruso

E o vento se insinue pelas portas fechadas

E rasteje no quarto

E suba pela cama

E lhe entre no olhar como estiletes de aço

Lhe penetre os ouvidos como agulhas de som,

Lhe emaranhe os cabelos como um nó de soluços,

Lhe desfigure o rosto como um ácido em chama.

 

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,

Que a mulher que foi dele oiça o vento na cama!

 

Que o nome que era o seu o persigam os ecos,

O gritem no deserto as gargantas com sede,

O murmurem no escuro os mendigos com frio,

O clamem na cidade as crianças com fome,

O soluce o amante de súbito impotente,

O maldigam no exílio as almas sem descanso

 

Que o nome que era o seu seja a bandeira negra,

A pálpebra doente,

O vómito de sangue..

 

Que o gesto que era o seu o imitem as mães

Que se torcem de dor quando abortam nas trevas,

O desenhem a lume os braços amputados,

O perpetue o esgar dos jovens mutilados,

O dance o condenado que morre na fogueira.

 

Que o gesto que era o seu seja o punhal do louco

A arma do ladrão

A marca do vencido.

 

Que o sangue que era o seu seja o rictus da tara,

A máscara de sal,

A vingança do pobre.

E que o Exterminadsor, no seu trono de enxofre,

O faça tilintar os guizos da tortura

Até que o mundo o esqueça

E mais ninguém o chore.

 

José Carlos Ary dos Santos de A Liturgia do Sangue em Vinte Anos de Poesia

NOTÍCIAS DO CIRCO

 

Numa informação, avançada por uma fonte da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa vai falar ao país hoje às 20h00, na sequência da aprovação pelo parlamento do diploma que renova o estado de emergência até 16 de março.

Só Marcelo poderia reinventar as Conversas em Família do padrinho Marcelo Caetano.

Estou cansado. Estou agoniado.

Entretanto, soube:

- que Vitor Baía está feliz com o nascimento da filha Matilde,

- que o gato de Georgina e Cristiano Ronaldo, gravemente atropelado numa rua de Turim, viajou, de jacto, para Madrid e está internado numa clínica veterinária de luxo,

-  que Cláudio Ramos cai em directo e protagoniza momento épico,

- que Ruben Rua teme consequências devido à relação com Cristina Ferreira,

- que acontecem as coisas mais mirabolantes a gente, que não conheço de parte nenhuma, mas ocupam larguíssimos espaço nos media,

Não soube:

- que, há dias, morreu o maestro José Atalaya que, na televisão a preto-e-branco-tempo-de-ditadura me prestou ensinamentos sobre música clássica, que juntei aos ensinamentos do meu pai, aos Concertos para Jovens de Leonard Bernstein, na mesma televisão a preto e branco, e só soube da sua morte, através de uma crónica do Pedro Tadeu no Diário de Notícias-online que, por sua vez, a soube através do Facebook do Júlio Isidro.

«Nem uma linha, nem uma voz, nem um excerto musical, para informar ou recordar quem foi este maestro que aos 93 anos partiu num triste adágio.»

Estou cansado. Estou agoniado. Estou…

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

LAWRENCE FERLINGHETTI (1919-1921)


No dia 22 de Fevereiro, vítima de doença pulmonar intersticial, morreu  Lawrence Ferlinghetti morreu anteontem em São Francisco onde vivia- à noite na sua casa em São Francisco.

Faria 102 anos no próximo dia 24 de Março que é celebrado como Dia Lawrence Ferlingheti.

Poeta, escritor, crítico de arte, tradutor, artista plástico, fundou a Livraria City Lights Pocket Book Shop. 

Preso e julgado por obscenidade por ter publicado Uivo — Howl and Other Poems, 1956 —, de Allen Ginsberg, Ferlinghetti acabou  absolvido e o poema tornou-se um bestseller internacional. O livro tinha sido impresso em Londres, enviado para os Estados Unidos e apreendido assim que chegou às livrarias. 

José Palla e Carmo que selecionou e traduziu Como Eu Costumava Dizer, escreveu uma breve nota sobre o autor para o livro que as Publicações Dom Quixote, na excelente Colecção Cadernos de Poesia, publicou em Janeiro de 1972:

«Os poemas reunidos nesta antologia foram colhidos nos volumes de poesia referidos, devendo notar-se que «Estou à Espera», «Autobiografia» e «Cão» se integram numa secção de A Coney Island of the Mind (título que pode traduzir-se por Uma Feira Popular do Espírito) intitulada «Oral Messages», que o autor faz proceder de uma advertência: «Estes poemas foram concebidos especificamente para serem acompanhados por jazz e, como tal, devem ser considerados mais como “mensagens orais” pronunciadas espontaneamente do que como poemas escritos com vista à página impressa. Da sua contínua recitação com acompanhamento de jazz resulta que eles ainda se encontram num estado de mutação.»

«Como eu costumava dizer, o amor é mais difícil de nascer nos mais idosos. Porque já percorreramos mesmos velhos trilhos muitas vezes.»

CRIPTOGRAMA


Não esqueçamos estes dias       não esqueçamos

é imprescindível transmitir

não esqueçamos as nuvens não esqueçamos os nomes

nem os mortos nem os vivos

nem os que há para matar ou morrer

não esqueçamos o traçado das ruas não esqueçamos

as balas      as facas      o lume      o cuspo

não esqueçamos a ira dos inocentes

as longas noites de tragédia subterrânea

com agulhas      punhos      lâminas      covardia

não esqueçamos o significado de determinadas palavras

nem as palavras que significam morte ou violência

que cada poro vosso seja um momento da história

para sempre inesquecível de uma luta pela conquista

da vida dignificada

 

Não seja inútil cada homem voluntariamente sacrificado

ponde os vosso hábito talares de combate

e iniciai o cálculo geométrico do sentimento

não há tempo para a piedade

não há espaço para a solidariedade

não existe eco para as lágrimas que não sejam de raiva

de pura justiça

pois cada homem conhece onde estão o bem e o mal em si próprio

e só têm cumprido os que sucumbem

é o momento portanto de quebrara as estátuas

de rasgar todas as bandeira

de eliminar as palavras por excesso

de destruir as máquinas

e renovar o espírito antes que se dissolva no excremento

 

de pois de nós os túmulos com outra configuração

e as faces pintadas registando o passado

sem boca nem olhos      para sofrer      para estoirar

no gáudio dos dementes

serão o resultado exacto dos nossos pensamentos

 

Não esquecer      não esquecer

nem o tempo nem as armas

nem o sonho nem a verdade

do que por vós passou

e o dia será vosso


Manuel de Castro em Os Cem Melhores Poemas Portugueses

Legenda: pintura de Nikolay Bogdano-Belsky

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

POSTAIS SEM SELO

Apesar de tudo há um caso de amor entre mim e a vida.

Alberto Lacerda

Legenda: pintura de Edward Hopper

IL MAESTRO


Compôs música para mais de 500 bandas sonoras para cinema e televisão, tinha formação clássica, ministrada pelo seu pai, nos anos 40 tocava trompete em diversas bandas de jazz. gostava de futebol e a música que compôs para filmes deu-lhe os primeiros recursos financeiros para sustentar a família.

Gostava de ser tratado como Il Maestro, um imperador como lhe chamou Hans Zimmer, também ele compositor de bandas sonoras.

Morreu aos 91 anos, no dia 6 de Julho do passado ano, na sequência de complicações após uma queda, na sua residência em Roma, em que fracturou o fémur.

Aos 87 anos tornou-se o mais velho vencedor de um Óscar da Academia, com a banda sonora para o filme The Hateful Eight de Quentin Tarantino.  Antes teve seis nomeações, mas aqueles cromos da Academia andam sempre a dormir, ou melhor: andam a tratar das suas vidinhas, das suas vaidades, de tudo, menos de cinema.

Em 2007 recebe um Óscar de Homenagem pelos brilhantes trabalhos que realizou e a que a Academia não ligou puto.

Em Junho de 2020, juntamente com o compositor, John Williams, recebeu o Prémio Princesa das Astúrias das Artes.

A banda sonora de Aconteceu no Oeste, vendeu mais de 10 milhões de cópias em todo o mundo, e Morricone considerou-a o seu melhor trabalho.


Guardo um velho single da canção Here’s To You, infelizmente a capa desapareceu, ficou apenas o disco, cantada por Joan Baez  e composta por Enio Morricone para o filme Sacco & Vanzetti, de 1971, filme de Giuliano Montaldo.

Here's to you, Nicola and Bart

Rest forever here in our hearts

The last and final moment is yours

That agony is your triumph

Em Maio de 2019, no decorrer da digressão «60 Years of Music», que marcou a sua despedida, passou por Portugal.

«O segredo da minha produtividade é não saber fazer mais nada na vida.»

ESCOLHA


Se tivesse de escolher entre música e literatura, escolhia a literatura. Acho que a música é muito importante, mas não é a minha primeira opção.

Patti Smith

OLHAR AS CAPAS


 Polémica Sartre/Camus

Coordenação de Francis Jeanson

Capa: Leandro Hipolito Ragucci

Edição Revista El Escarabajo de Oro, Buenos Aires, Maio de 1964

Meu querido Camus

Nossa amizade não era fácil, lamento-o. Se hoje é quebrada, certamente é porque isso teria que acontecer. Muitas coisas nos aproximaram, poucas nos separaram. Mas esse pouco é muito: a amizade, ela também, tem tendência para ser totalitária; o acordo sobre tudo é necessário, e as mesmas indeterminações tornam-nos militantes de partidos imaginários.

Da carta resposta de Sartre a Camus

MORTE AO MEIO DIA


No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

 O português paga calado cada prestação

Para banhos de sol nem casa se precisa

E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa

E o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

Ruy Belo de O País Possível em Todos os Poemas

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

POSTAIS SEM SELO


Interrogar-me sobre o destino humano não tem resposta. Mas já é uma resposta a importância de o interrogar.

Vergílio Ferreira

Fotografia de Luís Eme

OLHAR AS CAPAS


Filopópolus

Virgílio Martinho

Capa: Mário Henrique Leiria

Colecção Teatro Vivo nº 2

Plátano Editora, Novembro de 1973

Sou a alma de Polónio, o jornalista. Como sabem o meu corpo foi morto pelo veneno de Alice das Maravilhas. Mas não quero mal à cortesã, sei que o amor é tão cego que nem poupa o objecto amado. Em contrapartida, agora que não passo dum véu, que não como, não bebo, nem tenho ambições, resolvi matar Filopópolus por idealismo. Considero-o um cancro que tudo corrói com as suas matreirices de pequeno ladrão. Engana a pobre Mercedes, engana os cúmplices, engana vossas excelências. Tem de ser castigado! E como há sempre lugar para sermos bons e úteis à Humanidade, aqui estou eu…

NA PRIMEIRA NOITE


Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Eduardo Alves da Costa

domingo, 21 de fevereiro de 2021

OLHAR AS CAPAS


A Doença

Gastão Cruz

Colecção Novos Poetas nº 7

Capa: João da Câmara Leme

Portugália Editora, Lisboa, Novembro de 1963


Tudo o que puderes dizer-me

agora que ainda não é noite

enquanto ainda não se espera

a solidão mas talvez já a

morte agora que passamos

o rio sem que a noite

já sem a noite

atravessamos tudo diz-me tudo

o que subitamente se desprende

de tudo diz-me sem que na voz sem

que o sentido do que dizes seja o

que ardidos sentimos na escuridão

do sangue sem que o medo o amor

ou a vida o rio que

passamos a tarde

que sentimos tudo

digam

FUTURO

HISTÓRIAS QUE REMETEM PARA A INFÂNCIA

Tem um grande fascínio por comboios, por estações de caminho-de-ferro, verdadeiros lugares da memória.

O Eduardo Prado Coelho disse que as histórias de comboios remetem sempre para a infância.

Há uma fotografia, não a encontra, que mostra Mário Soares e Maria Barroso, após o 25 de Abril, a regressarem do exílio de comboio. Santa Apolónia era um mar de gente.

Anna Karenina atira-se para debaixo de um comboio, não como fim da sua desgraça, mas como continuação do seu destino.

Agustina Bessa-Luís, em As Estações da Vida, explica: «O seu suicídio, quase automática. Ao lançar-se diante do comboio que avança ma linha, é ainda um modo de ligação com o amante. Ela exerce o seu direito de intervenção já quando a paixão está condenada. Porquê o comboio? Porque ele sugere viagem, fuga, fadiga sob um ângulo de distracção e esquecimento.»

Tolstoi fez de um comboio o seu caixão, morrendo na estação de Astapovo.

A grande viagem de comboio de Lenine, destinada a mudar o mundo, iniciou-se a 9 de Abril de 1917, e durante oito dias preparou a revolução.

Aqueles enormes comboios de mercadorias que percorrem a América profunda, que passam lentamente e onde vagabundos, malta diversa andam à boleia.

 «Durante a depressão eu costumava viajar em comboios de carga pelo menos uma vez por mês. Nesses dias podia ver-se uma centena de homens num vagão, aberto ou fechado, e não eram só vagabundos, mas toda a espécie de desempregados, que iam de um lado para o outro, alguns deles só a vadiar.»

Jack Kerouac em Pela Estrada Fora

No Sweet and Lowdown, filme do WoodyAllen, o Sean Penn enternece-se a ver passar comboios.

O pintor belga Paul Delvaux gostaria de ter sido chefe de estação.

Inveja o anão, apaixonado por comboios, de A Estação, um comovente filme de Thomas McCarthy, que recebe, como herança, um pedaço de terra, em nenhures, que tem uma esquecida estação de comboios e que trabalha numa pequena loja onde desaguam os entusiastas-apaixonados-obessessivos dos caminhos de ferro, que sabem tudo sobre comboios, que podem fazer centenas de quilómetros para tirarem uma fotografia a uma locomotiva, a uma carruagem. 

Finbar já ouviu todas as piadas e observações sobre o seu aspecto físico, apenas quer que o deixem em paz. Durante quanto tempo conseguimos não estar sozinhos? É um prazer raro alguém apenas falar quando o quer fazer. É a solidão que ele procura indo viver para estação desativada que lhe calhou como herança. Não o consegue de todo.

Talvez porque tudo anda ligado, despede-se, por hoje, dos comboios e faz uma incursão pelo livrinho do Eduardo Guerra Carneiro:

«Um pequeno bar junto à estação de Nelas. Verão de 1964, Uma íntima sensação de liberdade (penso nas abelhas). Uma rapariga tão dourada ao longe. Outra vez a estação libertadora, um respirar mais fundo, sorri, segurei uma das tuas mãos, entrámos pouco depois no bar da estação de Nelas. Sim, isto foi serenidade!»

sábado, 20 de fevereiro de 2021

OLHAR AS CAPAS


Memórias do Contencioso

e outros poemas

Fernando Assis Pacheco

Erva Daninha, Dezembro de 1980

não  pude amar mais nada

não pude mais ninguém

e mesmo que te minta

é o contrário disso


e mesmo que te minta

é a verdade seca

posta aliàs avessas;

não pude amar mais claro


POUCAS-VERGONHAS!


 Há muito que tinha o recorte numa pasta, mas quando leu O Caçador de Histórias do Eduardo Galeano, achou um piadão que o escritor uruguaio tivesse caçado a história, lhe chamasse castigos e talvez concluísse que o decreto é mesmo uma aberração, só ao alcance de gente muito pequenina e má, gente que dirigiu os destinos do povo que somos, ou pensamos ser.

Recorda-se que num distante dia, estava na secção de chocolates do Lidl, os chocolates olhavam-no, ele olhava os chocolates, mas desviou completamente os olhares: o colesterol, o sangue grosso, o raio que os parta, caminha um pouco e deu para ouvir a conversa de duas senhoras bem entradotas:

- Uma pouca vergonha! Não há respeito nenhum, só falta coisarem onde calhar…

O alvo da converseta eram dois jovens que se beijavam, no meio das estantes do super quando muito bem lhes apeteceu que isso acontecesse, as senhoras entradotas eram gente que viveu os seus desejos, se é que os viveram…, na clandestinidade do que quer que fosse, no vão de uma escada, como contou  o poeta Manuel da Fonseca «uma vez que chovia até entrámos numa escada, somente um beijo trocámos…»

Afastou-se de imediato, aquele «coisar» soube-lhe ao princípio do mundo e saberia que não tardaria:

- O que faz muita falta é um outro Salazar!...


A portaria da Câmara Municipal de Lisboa determina:

«Verificando-se o aumento de actos atentórios à moral e aos bons costumes, que dia a dia se vêm verificando nos logradouros públicos e jardins, e, em especial, nas zonas florestais de Montes Claros, Parque Silva Porto, Mata da Trafaria, Jardim Botânico, Tapada da Ajuda e outros, determina-se à Policia e Guardas Florestais uma permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de actos que aventem contra a moral e os bons costumes. Assim, e em aditamento àquela Postura nº 69.035, estabelece-se e determina-se que o artº 48 tenha o cumprimento seguinte:
1º) Mão na mão: 2$50
2º) Mão naquilo: 15$00
3º) Aquilo na mão: 30$00
4º ) Aquilo naquilo: 50$00
5º ) Aquilo atrás daquilo: 100$00

Parágrafo único: com a língua naquilo: 150$00 de multa, preso e fotografado.»

Corria o ano de 1953, ele tinha 8 anos, e, hoje, sabe que aquele foi o Portugal em que, muitos outros foram crescendo e sabe que muita daquela gente não conseguiu ver mais além do que foi o seu limitado mundo. Recorda-se que havia, entre rapazes e raparigas, uma distância, uma separação absoluta. As escolas não eram mistas. Havia brincadeiras de rapazes e brincadeiras de raparigas. Na rua os rapazes jogavam à bola, as raparigas espreitavam-nos atrás das cortinas das janelas. As festas de aniversário, quando as havia, eram a única hipótese da possibilidade de um pingo de convívio e, mesmo assim, muito, muito mesmo, rigorosamente vigiado.
Foi este o Portugal de que tentámos escovar-nos e, possivelmente, sem resultados muito claros, ou sem resultados de qualquer espécie. Esse Portugal que o Alexandre O’Neill deixou bem retratado: «às duas por três nascemos, às duas por três morremos e a vida não a vivemos, não somos mais que solidão e mágoa…Ó Portugal, se fosses só três sílabas, linda vista para o mar, meu remorso, meu remorso de todos nós.»

Gentes de moral rígida, de bons comuns terão sido autores daquele decreto, outras gentes, passados uns anos, envolveram a ditadura de Salazar num buraco sem fim, que ficou para a história com os «ballets rose».

Gentes de moral rígida, de bons costumes, pois então!

O escândalo rebentou em 1967, em que muita rapaziada, de diversos cargos da ditadura, participaram em orgias com crianças, também com prostitutas: ministros, empresários, banqueiros, militares, condes, marqueses, padres.

Quando soube, a todo o custo, Salazar tentou ocultar o escândalo.

Em Portugal, mais ou menos, conseguiu, mas Barry O’ Brien, jornalista do Sunday Telegraph, colocou o escândalo na praça pública internacional.

Salazar à beira de um ataque de nervos, fica a saber que Antunes Varela, seu ministro da Justiça, quer que a investigação vá até ao fim, exonera-o e manda a PIDE arranjar um caldinho em que Mário Soares, Francisco Sousa Tavares, Urbano Tavares Rodrigues são presos com a acusação de que terem fornecido as informações ao jornalista inglês.

Posteriormente, Mário Soares é deportado para o exílio em São Tomé e Príncipe.

QUOTIDIANOS


Chove torrencialmente em Lisboa, o vento sopra fortíssimo, uma tempestade desfeita. 

Saiu à rua para comprar pão na frutaria dos amigos nepaleses da rua, abriu o chapéu de chuva, que deu uma volta em cima mesmo e desfez-se, kaput, resultado de comprar material merdoso na loja dos chineses.

Temos a pandemia, temos que ficar em casa, temos quase um tsunami, pelos menos até 4 da tarde, dizem, a percorrer as ruas.

Como dizia o Paulo Rodrigues: «tudo a ajudar o pai que é cego!» 

PAUL ROBESON


Le Chant Du Monde LD – M- 8132

Old Man River – Le Canadien Errant - Oh, No, John – Kevin Barry - Didn’t My Lord Deliver Daniel - Les Bateliers De La Volga – Joe Hill – Loch Lomond – There’s A Man Going Round Taking Names – John Brown’s Body – No More – Les Quatre Generaux – My Curly Headed Baby

É talvez o disco que recorda como sendo o mais antigo da discoteca do Pai, excepção feita aos 78 rpm que se espatifaram todos.

Lembra-se dos tempos em que o Pai, de quando em vez, jantava em casa com amigos, jantares palavrosos e chegada a altura dos cafés e dos cigarros este disco ouvia-se, religiosamente.

Não participava desses jantares, mas noutra sala conseguia ouvi-lo e achava-o monótono, incompreensível, sem graça e que contrastava, flagrantemente, com os discos do Renato Carosone, da Caterina Valente e outros que rodavam lá por casa.

Anos mais tarde foi saber coisas e encontrou alguém que o dava como cantor, escritor, activista americano dos direitos políticos e civis, e citava-se Brecht: «Há homens que lutam umas horas e são bons. Há homens que lutam um ano e são melhores. Há homens que lutam muitos anos e são ainda melhores. Mas há os que lutam, toda uma vida: esses são os imprescindíveis».

Entendeu a religiosidade do Pai e dos amigos ao ouvi-lo cantar, percebeu também por que aqueles jantares eram longos e palavrosos. Sente hoje tudo isso e, volta e meia, põe o disco a rodar e, às primeiras espiras, o Pai aparece-lhe, senta-se bonacheirão, sorridente, cigarro Unic nos dedos e dispara: “não há por aí um whiskynho?”.

RELACIONADOS


ACCiÓN  - AC – 4LP (edição espanhola) 

Lado A

Y Nace El Sol – Los Jinetes – El Hambre – La Ciudadede Goma – El Niño Muerto – La Guerra – La Guerra Que Vendra – Quando Mi Hijo Nacio

Lado B

La Muerte – Me Queda La Palabra – No Nos Dejan Cantar – La Peste – La Niña de Hirosima – Masa – Himno

Três são os poemas de Nazim Hikmet que Manolo Diaz musicou para este disco dos Aguaviva. Um desses poemas é Eles Não Nos Deixam Cantar, Robeson.

Apocalipsis é uma ideia de Jose Antonio Muñoz, com os diversos capítulos pontuados  com poemas de Alfredo Mañas, Gabriel Celaya, um africano anónimo, Bertold Brecht, Nazim Hikmet, Blas de Otero, Cesar Vallego,  para músicas de Manolo Diaz.

«Desde que o mundo é mundo, todas as tardes o dia expira e a morte faz um pacto com a noite.»

ELES NÃO NOS DEIXAM CANTAR


Eles não nos deixam cantar, Robeson,
Meu canário de asas de águia,
Meu irmão negro de dentes de pérola.
Não nos deixam gritar as nossas canções.
Eles têm medo, Robeson,
Medo da aurora, medo de ver,
Medo de ouvir, medo de tocar.
Eles têm medo de amar,
Medo de amar como Ferhat amou, apaixonadamente.
(Decerto também vocês, irmãos negros,
têm um Ferhat, como lhe chamas, Robeson?)
Eles têm medo da semente e da terra,
Medo da água que corre,
Medo de se lembrarem.
A mão de um amigo
Que não queira desconto, nem comissão, nem moratória,
Nunca virá apertar-lhes a mão
Como um pássaro quente.
Eles têm medo da esperança, Robeson, medo da esperança!
Eles têm medo, meu canário de asas de águia,
Têm medo das nossas canções, Robeson...

Nazim Hikmet

(Tradução encontrada no Avante de 24 de Janeiro de 2002)

Legenda: pormenor da capa do LP Apocalipsis dos Agua Viva