Entre a minha vida
e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética
Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio
acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira
como dizes os esses;
vêm de muito longe
e chegam incompletamente
ao pequeno
vulnerável sítio entre
toda a minha vida e
toda a minha morte,
quando a minha
última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado
até a tua respiração
na cama ao meu
lado,
e também tu estás
morta,
duma forma que já
não me importa.
Vamos então os dois
outra vez
ao longo de certas
ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas
alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas,
visitamos
talvez algum último
amigo
sem sabermos que eu
já não estou vivo.
Poderia ter sido de
outro modo?
Poderiam ter sido
outras duas pessoas
vivendo a minha e a
tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador,
poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi
por pouco;
se fosse um pouco
mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse
chegado a casa cansado,
se a louça não
estivesse por lavar
e a janela da sala
de jantar
não estivesse
fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem tu tivesses ido
ao supermercado,
e se eu não
estivesse cheio de medo.
Agora estou voltado
para cima,
para onde cantas
ainda há muito tempo.
Se calhar isto
(alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu e eu,
ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro
sozinho
e conversamos
comigo
como com um
desconhecido.
Que diremos agora
um ao outro?
É tarde. Ainda há
um momento
me apetecia
conversar, agora estou outra vez tão cansado!
Reparaste como o
Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo
lado de dentro?
Manuel António Pina
em Poesia Reunida
Legenda: fotografia
de Edith Claire Gérin
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