O avô paterno tinha o
hábito de se apresentar: Mário Santos, benfiquista, republicano histórico,
anti-clerical.
Ficava depois a
sorrir olhando o efeito produzido.
Deve a este avô uma
série de coisas que lhe marcaram a vida, entre elas o gosto por aeroportos, comboios,
os barcos vieram por outros caminhos.
O avô tinha pela
Estação do Rossio um enorme fascínio. «esse
espaço romanesco por excelência que é uma gare ferroviária», como escreveu
Eduardo Prado Coelho. Dali partiam os comboios para a província litoral, partiam
e chegavam os Sud-Express os vapores fumegantes das locomotivas, «uma noite e meia para Paris, meio dia e uma
noite de regresso a Lisboa», segundo João Bénard da Costa, comboios que transportaram
gente fina, gente anónima, espiões, emigrantes, jovens de mochila às costas.
Um domingo por mês,
quando o Benfica não jogava em casa, visistávamos uma senhora – a Dona Maria
- que vivia numa transversal da Calçada
do Carmo. Ficávamos sentados em redor de uma mesa redonda, a beber chá e a comer
bolos secos sortidos que o avô levara, um murmurar silencioso de conversa e ele
ausente a olhar os retratos de mortos nas paredes, homens com enormes bigodes,
mulheres com grandes vestidos rodados até aos pés. Acabada a visita o avô
deixava um envelope em cima da mesa e íamos até à estação do Rossio. Sentávamos
naqueles bancos de madeira que então por lá havia, e ficávamos a ver partir e chegar comboios, gente que
entrava e saía com grandes cestos, a azáfama dos domingos-tédio dos anos 50.
Depois descíamos até
ao Rossio, à Tendinha onde comeu as mais maravilhosas sandes de presunto. A
Tendinha inda está por lá, mas deixou de ser um tasco, é agora snack-bar para
turistas e, naturalmente, se ainda servirem sandes de presunto, não terão nada a
ver com as daqueles domingos.
Nem ele tão pouco.
O realizador Alain Tanner também ficou impressionado com a estação do Rossio.
No final da Cidade Branca põe
Paul, o marinheiro, a partir de comboio do Rossio para Zurique, em vez de Santa
Apolónia.
Interrogado do
porquê, disse que não resistiu à beleza da estação.
«Volto à superfície, Stop; Rosa partiu não sei para
onde, Stop; o único país de que gosto verdadeiramente é o mar, Stop; amo-vos,
Stop; beijo-te ternamente, Stop; o corpo duma mulher é demasiado grande, Stop;
a recordação e o esquecimento têm a mesma origem, Stop; as mulheres são
demasiado belas, stop; os comboios não partem à tabela, Stop; não sei mais do
que dantes, Stop», escreve
Paul antes de deixar Lisboa, a cidade
branca.
Lá muito para trás a
lembrança de um comboio-de-mercadorias, que do Barreiro até Tavira, o
levou para assentar praça. O som antigo
desse comboio, bancos de pau, o estremecimento do comboio nos carris, o silvo do apitar prolongado na noite, ele olhando as casas, perguntando-se quem viverá dentro daquelas
casas e, quem à janela aberta para o calor da noite desse domingo de Verão, perguntará
quem irá naquele comboio, e sozinho, diante das estrelas, acena, como quem diz olá, boa
noite, boa viagem.
Quase sete horas de viagem
até chegar a Tavira, paragem em todas as estações e apeadeiros.
Ainda mais lá para
trás: nos bancos da escola primária, os miúdos a terem que saber dos ramais, as
linhas férreas do continente e colónias, suas estações seus apeadeiros, os rios
os afluentes, as serras.
Uma fotografia que
agora não encontra: Gerard Castello Lopes a despedir-se da mãe numa estação de
comboios.
«O comboio sempre
me pareceu ter qualquer coisa de profético. Abria-se a portinhola duma
carruagem e imediatamente se abria na imaginaçõa um processo romanesco.
Tratávamos de divisar os passageiros e explorar a réstea de conforto que
podíamos partilhar. Era o prelúdio duma viagem que podia ser o primeiro capítulo
duma história.»
Agustina Bessa-Luís em As Estações da Vida
The City of New Orleans é um comboio de passageiros que
operava entre Chicago e Nova Orleans.
Socorre-se de Luís Miguel Mira nas suas Crónicas da América:
«Deixo-vos com a letra de uma música que sempre me transmitiu essa sensação de um mundo em extinção e da nostalgia desses comboios dos velhos tempos. Conta uma viagem de dois dias em comboio, entre Chicago e New Orleans. Escreveu-a, em 1970, Steve Goodman, que viria a morrer, muito novo, de doença.»
City of New Orleans
Riding on the City
of New Orleans
Illinois Central
Monday morning rail
Fifteen cars and
fifteen restless riders
Three conductors
and twenty-five sacks of mail
All along the
southbound odyssey the train pulls out at Kankakee
And rolls along
past houses, farms and fields
Passin' trains that
have no names and freight yards full of old black men
And the graveyards
of the rusted automobiles
Good morning
America how are you?
See, don't you know
me I'm your native son
I'm the train they
call The City of New Orleans
And I'll be gone
five hundred miles when the day is done
Dealin' card games
with the old men in the club car
Penny a point ain't
no one keepin' score
Pass the paper bag
that holds the bottle
Feel the wheels
rumblin' 'neath the floor
And the sons of
pullman porters and the sons of engineers
Ride their father's
magic carpets made of steel
Mothers with their
babes asleep are rockin' to the gentle beat
And the rhythm of
the rails is all they feel
Good morning
America how are you?
See, don't you know
me I'm your native son
I'm the train they
call The City of New Orleans
I'll be gone five
hundred miles when the day is done
Nighttime on The
City of New Orleans
Changing cars in
Memphis, Tennessee
Half way home,
we'll be there by morning
Through the
Mississippi darkness rolling down to the sea
But all the towns
and people seem to fade into a bad dream
And the steel rails
still ain't heard the news
The conductor sings
his song again, the passengers will please refrain
This train's got
the disappearing railroad blues
Good morning
America how are you?
See, don't you know
me I'm your native son
I'm the train they
call The City of New Orleans
I'll be gone five
hundred miles when the day is done
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