quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

CRIPTOGRAMA


Não esqueçamos estes dias       não esqueçamos

é imprescindível transmitir

não esqueçamos as nuvens não esqueçamos os nomes

nem os mortos nem os vivos

nem os que há para matar ou morrer

não esqueçamos o traçado das ruas não esqueçamos

as balas      as facas      o lume      o cuspo

não esqueçamos a ira dos inocentes

as longas noites de tragédia subterrânea

com agulhas      punhos      lâminas      covardia

não esqueçamos o significado de determinadas palavras

nem as palavras que significam morte ou violência

que cada poro vosso seja um momento da história

para sempre inesquecível de uma luta pela conquista

da vida dignificada

 

Não seja inútil cada homem voluntariamente sacrificado

ponde os vosso hábito talares de combate

e iniciai o cálculo geométrico do sentimento

não há tempo para a piedade

não há espaço para a solidariedade

não existe eco para as lágrimas que não sejam de raiva

de pura justiça

pois cada homem conhece onde estão o bem e o mal em si próprio

e só têm cumprido os que sucumbem

é o momento portanto de quebrara as estátuas

de rasgar todas as bandeira

de eliminar as palavras por excesso

de destruir as máquinas

e renovar o espírito antes que se dissolva no excremento

 

de pois de nós os túmulos com outra configuração

e as faces pintadas registando o passado

sem boca nem olhos      para sofrer      para estoirar

no gáudio dos dementes

serão o resultado exacto dos nossos pensamentos

 

Não esquecer      não esquecer

nem o tempo nem as armas

nem o sonho nem a verdade

do que por vós passou

e o dia será vosso


Manuel de Castro em Os Cem Melhores Poemas Portugueses

Legenda: pintura de Nikolay Bogdano-Belsky

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