domingo, 14 de fevereiro de 2021

PERDER O COMBOIO


«Sem cá fora um fio tímido (eis a um canto da sala um amigo em história se desdobra), ela um novelo sempre fora, nela eufórico me tendo, me fechando, até que um dia, atrasada, o hálito numa nuvem, entre portas me diz “perdi o comboio”, e fica depois ouvindo as palavras que não digo, já de mim ausentes, porque entre portas a Terra dera uma volta, e fora entre as coisas mudando as coisas, os nomes já outros nos lugares dos nomes que então eram. E eis dos meus olhos, assim a ouvindo, irrompe o comboio de sempre, o comboio não habitado por quem o diz ter perdido, o comboio das cinco e cinco, que era o dela, o comboio curto de pequeno cursos, circulando, circulando sempre, mesquinho e amado, qual lágrima descendo na face do Universo…» Ah, sim – digo - , quando alguém diz “perdi o comboio», os comboios circulam, circulam sempre, diariamente, e são encontrados pontuais pelas pessoas ao longo dos cais, e só as pessoas é que nos cais não são eternamente pontuais…» E ele, um vinho na mão, um revérbero, um sinal vermelho, não para mim, mas longe fitando quem assim o deixara: » E só tu perdeste o comboio quando eu à tua espera somava o ruído de todos os horários. So tu dizes “Perdi o comboio”, como quem pede desculpa de não poder dizer 2Já não te amo”. Só tu, assim entre portas, temendo entrar em mim, o novelo lenta desfazes, o novelo que eu pensara sem cá fora um fio tímido…» «Então – lhe digo - , é o trânsito. Soma outras coisas, bebe este vinho, come este pão, ama!, que o passado é sempre subtracção.» De entre as portas, saíra o dia, entre janelas escurecera – e por estas contas nos fomos perdendo sem cá fora um fio tímido que ao longe só tocasse quem o comboio perdera.

Pedro Alvim em Rútilo é o «I»

Legenda: fotografia de Toni Frissell

Sem comentários: