terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

FAREWELL HAPPY FIELDS III


Se eu não morresse

como morreria,

e como responderia

pelo nome que tivesse?

 

E quem me chamaria?

Tu não (nem ninguém antes de mim,

nem depois de mim,

nem a meu lado);

 

ter-te-ias demorado,

as filhas teriam crescido,

os amigos partido,

e quando voltasses estaria tudo acabado.

 

A verdade é que eu já não tinha idade

(nem palavras) para esperar-te,

começava a fazer-se muito tarde

e morria sozinho sem ninguém com quem falar de

 

mim. Os sonhos da infância

vagueavam inúteis pelos cantos

e eu transformava-me entretanto

em algo parecido com eles, da mesma substância.

 

A própria casa era um erro

grosseiro: não tinha paredes.

O jardim onde tantas vezes

florira o meu desespero

 

não era real,

era uma coisa passada;

real era o meu medo, tão real

que mesmo abrindo os olhos não passava.

 

Agora já não tenho medo, estou deitado

em palavras sem artifício e sem esplendor

onde fala passando

uma voz anterior.

 

(Assim morreria

talvez, se não morresse,

mas como o saberia?

E não o sabendo como o ignoraria?)


Manuel António Pina em Poesia Reunida

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