quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

FAREWELL HAPPY FIELDS V


AOS MEUS LIVROS

Chamaram-vos tudo, interessantes, pequenos, grandes,
ou apenas se calaram, ou fecharam os longos ouvidos
à vossa inútil voz passada
em sujos espelhos buscando
o rosto e as lágrimas que (eu é que sei!)
me pertenciam, pois era eu quem chorava.

Um bancário calculava
que tínheis curto saldo
de metáforas; e feitas as contas
(porque os tempos iam para contas)
a questão era outra e ainda menos numerosa
(e seguramente, aliás, em prosa).

Agora, passando ainda para sempre,
olhais-me impacientemente;
como poderíamos, vós e eu, escapar
sem de novo o trair, a esse olhar?
Levai-me então pela mão, como nos levam
os filhos pela mão: sem que se apercebam.

Partiram todos, os salões onde ecoavam
ainda há pouco os risos dos convidados
estão vazios; como vós agora, meus livros:
papéis pelo chão, restos, confusos sentidos.
E só nós sabemos
que morremos sozinhos.
(Ao menos escaparemos
à piedade dos vizinhos)

Manuel António Pina em Poesia Reunida

2 comentários:

Seve disse...

Tenho pena de não ter conhecido pessoalmente este grande ser humano.

Sammy, o paquete disse...

Sinto a mesma pena porque também não o conheci. Fez toda a sua vida no Porto e só muito tarde começou a publicar a sua obra. Para além de poeta e escritor para crianças, era um notável jornalista.
Conhecer a sua obra é um enriquecimento pessoal que nos leva a concluir que, com gente assim, vale a pena acreditar.