terça-feira, 30 de junho de 2020

IRISH LIVES MATTER... TOO!


Quando existe alguma contestação em relação àquilo que escrevemos, estas coisas tornam-se mais engraçadas…

Vem isto a propósito de, na sequência de alguns textos mais recentes onde abordei, de forma muito ligeira, alguns aspetos relacionados com a escravidão nos Estados Unidos, um Amigo meu de longa data me ter enviado um extenso texto recordando a escravidão de que foram vitimas os irlandeses, sobretudo durante os séculos XVII e XVIII.

A encabeçar o dito texto, a única frase que terá saído da pena do meu Amigo foi: “A escravidão não tem cor… O racismo é apenas um álibi para abusar, degradar, explorar e roubar o nosso semelhante”.

E a mensagem termina com a informação de que, em pleno séc. XXI,  400 dólares é o preço que custará um escravo na Líbia...

Como não gosto que coisas destas fiquem sem resposta, enviei-lhe, de imediato, uma curta mensagem, lembrando-lhe que os meus textos se referiam a factos concretos e inquestionáveis que ocorreram nos Estados Unidos no Séc. XIX, e que não pretendiam ser (nem eu teria, sequer, conhecimentos para  tal…) uma História, por ligeira que fosse, da Escravatura no Mundo,  ou  até no mais restrito Mundo anglo-saxónico.

E acrescentei que sabia muito bem que os irlandeses tiveram muitos problemas de integração nos Estados Unidos, sofreram humilhações e discriminações  de diversa natureza e que foram sujeitos a trabalho quase forçado em condições, muitas vezes, degradantes (dei-lhe o exemplo da construção do Caminho de Ferro…), mas que nunca tinha ouvido falar da existência de mercados de vendas de escravos irlandeses nos Estados Unidos, ou de Leis que impusessem a segregação entre os irlandeses e a restante população branca...

Se não conhecesse tão bem o meu Amigo, poderia ter pensado que esta seria, no fundo, uma falsa controvérsia, porque ambos estávamos a falar de  situações completamente distintas, em termos de épocas e de lugares. 

Mas como o conheço de ginjeira há mais de 50 anos,  sei muito bem ao que ele vinha...   

O que ele pretendia era juntar a sua voz àquelas que hoje se indignam com  uma alegada excessiva atenção que é dada ao fenómeno do racismo negro e nos querem fazer recordar, a todos nós, que o racismo branco também existe e existiu durante toda a História da Humanidade.

No limite, é óbvio que “all lives matter” e, assim sendo, “white lives matter, too”, sendo elas irlandesas, ou não...

Mas, por ser tão óbvio e todo o Mundo o saber  tão bem, não é sequer necessário estarmos sempre a recordá-lo a todo o momento.

Em relação aos negros, infelizmente, já o Mundo parece dar sinais de algum esquecimento…

Mas isto foi, apenas, um introito, uma “private joke”,  e vamos então ao que me trás aqui hoje, que acaba por estar, propositadamente, relacionado.

Quando disse que podia fazer toda a História dos Estados Unidos através de “folk songs”, não estava a brincar…

E para mostrar a este meu Amigo que a “Folk Song” não se esqueceu dos seus queridos irlandeses, aqui vos trago, hoje, duas canções, de entre muitas outras que poderia ter escolhido.

Curiosamente, ambas nasceram em Inglaterra em meados do Séc. XIX, foram trazidas para os Estados Unidos e adaptadas às realidades locais, integrando, rapidamente, o  património musical do país.

NO IRISH NEED APPLY

Esta frase surgia, com muita frequência,  nos locais onde se faziam anúncios de ofertas de emprego (jornais, lojas, restaurantes, entradas de estaleiros de obras, etc) e o que significava é que os irlandeses nem sequer se deveriam dar ao trabalho de responder, porque a sua candidatura jamais seria aceite.


Esta discriminação começou por ter lugar na própria Inglaterra, para onde os pobres irlandeses fugiram aos milhares na sequência do “potato blight” ou “peste da batata”, um fungo que lhes dizimou, durante anos, a cultura da batata, que era o principal meio  de subsistência da população e de rendimento no mundo rural.

Estima-se que, por força deste fenómeno, entre meio e um milhão de irlandeses terão morrido de fome e até existe uma outra “folk song” muito conhecida que retrata este acontecimento e que se chama “Irish Famine Song”. Mas não quero lançar aqui a confusão e deixarei isso para outra oportunidade...

Quem tinha possibilidade emigrava para os Estados Unidos, mas quem não a tinha fugia para Inglaterra, a cujas grandes cidades afluíam estes pobres irlandeses com um ar triste, faminto e desmazelado, aí sofrendo humilhações e discriminações de toda a espécie, nomeadamente na busca de habitação e na procura de emprego.

Entre 1845, ano do início da “potato blight”, e 1854, terão entrado nos Estados Unidos mais de 2 milhões de emigrantes irlandeses, e se o período for mais alargado, entre 1820 e 1930 terão sido mais de 4,5 milhões. Ou seja, o curto período do fungo da batata foi responsável por quase metade da volume total da emigração irlandesa na, América...   

E, durante esse mesmo período, a população irlandesa terá regredido entre 20 a 25%.  

Embora haja quem queira branquear a História e afirmar que a discriminação dos irlandeses na América não foi tão acentuada como a pintam, a realidade parece desmenti-lo.

Às irlandesas e aos irlandeses estavam reservados os piores e os mais perigosos trabalhos.

Elas especializaram-se em trabalhos de mulheres-a-dias, empregadas de limpeza e outras atividades menos qualificadas.

Eles, que também viam ser-lhes vedado o acesso às profissões mais qualificadas e de melhores níveis de remuneração, trabalharam duro na abertura de canais, na construção do caminho de ferro e na construção civil, com salários de miséria. 


Já em pleno séc. XX, naquela celebérrima fotografia de Charles C Ebbets tirada em 1932, que nos mostra onze trabalhadores sentados numa barra de ferro a tomar o seu almoço  a uma altura de 69 andares, a maioria deles são irlandeses...

A canção, que alude a esta discriminação, parece ter sido escrita em Inglaterra em 1862, mas as fontes divergem quanto ao seu autor. 

Pete Seeger diz que foi John F. Poole, mas outras fontes afirmam que foi uma jovem rapariga irlandesa, Kathleen O’ Neil de seu nome.

Deixo-vos duas interpretações.

A mais antiga, de Joe Glazier,  segue de perto a adaptação feita por Pete Seeger, que conta ter ido buscar o refrão a uma outra canção irlandesa da mesma época e com o mesmo sentido, “No Irish Wanted Here”.

A mais recente é de Charles Szabo, e escolhia-a pela sobriedade da interpretação e por conter a letra, que é muito semelhante à anterior.  

E passemos à segunda canção…


PADDY WORKS ON THE RAILWAY

Esta canção, cuja autoria parece ser difícil de atribuir com exatidão, surgiu em Inglaterra em meados do Séc. XIX e terá começado por ser uma “sea shanty”, isto é, uma canção marítima.

Ainda em Inglaterra, a canção foi adaptada ao contexto da construção do Caminho de Ferro local e foi sob essa forma que chegaria, mais tarde, aos Estados Unidos, embora com profundas alterações na sua letra. 

O primeiro exemplo de um Caminho de Ferro surge nos Estados Unidos em 1827, através da Baltimore & Ohio Railroad, embora ainda com tração animal.


Dois anos depois, na Delaware & Hudson Railroad, circulava já a primeira locomotiva a vapor, importada da Inglaterra.

A primeira locomotiva concebida nos Estados Unidos, a Tom Thum, seria lançada em 1830, mas começou por perder uma corrida disputada com um cavalo (quantas vezes vimos isto no Cinema…?)! Mas essa resistência não iria durar muito e o Caminho de Ferro haveria, naturalmente, de se impor como um meio de transporte mais barato, mais rápido e mais seguro, não obstante as suas viagens serem interrompidas, de vez em quando, por uns cavaleiros mascarados, tipo Jesse James e tantos outros. Mas as diligências também o eram, e ainda mais…

Lincoln apercebeu-se da importância estratégica do Caminho de Ferro para o povoamento e desenvolvimento dos Estados Unidos e determinou, em 1862, a ligação ferroviária de costa a costa, que se haveria de concretizar no dia 10 de Maio de 1869, em Promontory, no estado de Utah, quando as linhas da Central Pacific Railroad e da Union Pacific Railroad se juntaram, criando a primeira grande linha ferroviária transcontinental.

A mão-de-obra para a construção de todas estas grandes realizações foi constituída, maioritariamente, por emigrantes irlandeses e chineses, que trabalhavam até à exaustão em condições infra-humanas de risco,  sofrimento, alojamento e remuneração.
O Caminho de Ferro tornar-se-ia, de imediato, um terreno fértil para a música tradicional americana.


Desde as dificuldades da construção das próprias linhas, com a necessidade de abertura de túneis e edificação de viadutos,  aos “heróis do povo”, como John Henry, que lá trabalhavam e  aos bandidos que rondavam as imediações, como Sam Bass, passando pela evocação dos grandes desastres ferroviários  e pela glorificação das principais locomotivas, tudo serviu para ser transformado em canção.

“Paddy Works on the Railway” é um bom exemplo da história de um operário anónimo que trabalhou no Caminho de Ferro até cair para o lado, embora haja, igualmente, versões desta canção adaptadas à construção do Erie Canal.

Também vos deixo duas interpretações:

Uma, mais antiga, pelos “Weavers”, que segue a adaptação feita por Pete Seeger.

Para interpretação mais recente, não resisti à exuberância dos “Pogues”, que parece seguir mais à risca a versão original irlandesa.

Notarão que, ao contrário do que sucedeu na canção anterior, aqui as letras são substancialmente distintas, mas que a crítica social e o  lamento pela penosidade do trabalho se mantêm, embora esta última versão faça mais apelo ao orgulho de ser irlandês.

E com todo este esforço em prol dos bons irlandeses terei sido, certamente, perdoado pelo meu Querido Amigo por ter tido a ousadia de falar dos negros…!

Texto de Luís Miguel Mira








ESSES OLHOS


Cesare Pavese tinha escrito:
Virá a morte e terá os teus olhos.
Encontrou-a num hotel de Turim, numa noite de Verão de 1950.
Foi pelos olhos que a reconheceu.

Eduardo Galeano em O Caçador de Histórias

Legenda: Cesare Pavese

MEDO


Durante anos, acreditei que o sono mata.
E como o sono me estimulasse a vontade de morrer, raras foram as noites em que não estreei uma morte nova.
Com a prática, aprendi a prolongar a morte, adiando a agonia do despertar.
Para minha surpresa, ou decepção, a manhã confrontava-me com a extensão da empresa.
Vítima e espectador da minha vítima, acabei por vulgarizar a morte, com prejuízo do repouso que o sono me exigia.
Hoje durmo com uma facilidade espantosa e, raramente, me lembro de adormecer.
Ou sonhar.
Sem que eu ou a morte tenhamos assinado qualquer espécie de tréguas.

Jorge Fallorca em Longe do Mundo

segunda-feira, 29 de junho de 2020

POSTAIS SEM SELO


Ninguém liga nenhuma ao facto de uma certa forma de ignorância agressiva estar a crescer, e a como isso se está a tornar um grave problema social e político.

José Pacheco Pereira

NÃO HÁ SOLIDÃO INEXPUGNÁVEL


Não aprendi nos livros qualquer receita para a composição de um poema; e não deixarei impresso, por meu turno, nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. Se narrei neste discurso alguns sucessos do passado, se revivi um nunca esquecido relato nesta ocasião e neste lugar tão diferentes do sucedido, é porque durante a minha vida encontrei sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para se endurecer nas minhas palavras, mas para me explicar a mim próprio. 

Encontrei, naquela longa jornada, as doses necessárias para a formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e da alma. E penso que a poesia é uma acção passageira ou solene em que entram em doses medidas a solidão e solidariedade, o sentimento e a acção, a intimidade da própria pessoa, a intimidade do homem e a revelação secreta da Natureza. E penso com não menor fé que tudo se apoia - o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia - numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, pois assim os une e confunde. E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao cruzar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio de uma vaca, ao banhar os pés na água purificadora das mais elevadas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para se comunicar depois a muitos outros seres ou era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou embrazamento. Não sei se aquilo o vivi ou escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde.

De tudo aquilo, amigos, surge um ensinamento que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos. E é necessário atravessar a solidão e aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico em que podemos dançar com hesitação ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção acham-se consumados os mais antigos ritos da consciência; da consciência de serem homens e de acreditarem num destino comum.

Pablo Neruda em Nasci para Nascer

POSSIBILIDADES


Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Doistoievski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter abjecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
e outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.

Wislawa Szymborska

Legenda: pintura de Claude Monet

domingo, 28 de junho de 2020

ETECETERA


Fujo de limpar o pó no espaço onde tenho livros, discos, bonecada, fotografias, jornais, revistas, dossiers, recortes, a aparelhagem de som, o gira-discos, o computador onde escrevo. Limpo o pó mas daí a pouco o pó está lá outra vez. Digo isso à Aida, ela noutras partes da casa, queixa-se do mesmo.

Há dias, em viagem pelos blogues do costume, encontrei no BichoRuim, fornecida pelo Rui Manuel Amaral, uma explicação para essa história do pó que vai e vem.

Deixo-a aqui:

«Por mais que limpe o pó, o pó não desaparece. Acumula-se sobre os móveis, os livros, o computador. Avança pelo corredor, entra no quarto, instala-se na sala. Não dá tréguas. Se limpo agora, volta a aparecer daqui a pouco. Ainda mais notório, ainda mais abundante. É como se a casa se revoltasse contra a nossa presença. Como se nos quisesse ver pelas costas. Como se fôssemos o pó que a casa quer limpar.»

1.

A última reunião na Infarmed, para balanço da evolução da pandemia de Covid-19 em Portugal, terminou com António Costa a interromper abruptamente a ministra Marta Temido quando esta falava sobre os efeitos do confinamento no norte do país, lembrando que este tipo de discurso não é útil porque o país nunca esteve em confinamento.

Não sei se terá sido pela Direcção Geral da Saúde ter metido os pés pelas mãos na- quela história da noite de São João no Porto, que provocou a chacota do presidente da câmara do Porto, não sei, mas, fosse o que fosse, a atitude de Costa foi de uma deselegância incompreensível

O episódio mostra que os tempos não estão nada fáceis e nada está tão bem como se vai dizendo.

Está tudo a correr muito mal: presidente da república, governo, deputados, Benfica. Com Junho em dias finais, voltamos aos primeiros dias de Março, e para pior, porque já ninguém liga puto ao que nos dizem.

Já dizia o Jorge de Sena: «O nosso problema não é salvar Portugal, é salvarmo-nos de Portugal».

Daqui por 15 dias haverá outra reunião na Infarmed e até esse dia há que acertar agulhas.

Com carácter de urgência!

2.

Estamos à beira da segunda vaga?

Ninguém tem a resposta mas vamos reparando que estamos à beira de um desastre.

Será pessimismo?

3.

Na sequência de uma denúncia, a Guarda Nacional Republicana pôs termo, esta quinta-feira, a uma festa com quatro dezenas de pessoas numa moradia na Comporta.


O parque de campismo da Galé, no litoral alentejano, foi encerrado na sequência do surto de covid-19 com origem numa festa de jovens que infetou pelo menos 20 pessoas.

Três agentes da PSP foram agredidos na sexta-feira à noite quando dispersavam um grupo de pessoas em Loures, durante uma acção de fiscalização a um estabelecimento.

Entraram ontem em vigor a aplicação das contraordenações por incumprimento das práticas sociais que visam conter a pandemia da covid-19.

Em comunicado, o ministério da Administração Interna relembra que o valor das coimas varia entre os 100 e os 500 euros, para pessoas singulares e, no caso das pessoas coletivas, situa-se entre os 1.000 e os 5.000 euros.

4.

A CMTV desconfia da EDP, está preocupada, mas o regulador só pode actuar no âmbito das suas competências de obrigar à disponibilização da informação e que não tem poderes para avaliar idoneidade dos administradores.

5.


Lia-se na 1ª página do Público de 19 de Junho.

Tem tudo a ver com o juramento de Hipócrates.

Mas a procissão ainda não saiu do adro.

6.

O número de casais em que ambos os cônjuges estão desempregados aumentou pelo terceiro mês consecutivo e atingiu em Maio os 6.722 casos, uma subida de 1.207 casais face ao mesmo mês do ano passado, soube-se também que 60% dos trabalhadores que ficaram desempregados tinham um vínculo precário.

7.

Os Bombeiros profissionais vão ser aumentados 4 euros por dia e passarão a ganhar 54 euros por dia.

8.

Marcelo Rebelo de Sousa repetiu que não vê problemas que um membro do governo passasse a governador de Portugal, enquanto a Assembleia das República vai cozinhando, em lume brando, uma lei que estabeleça um período de nojo para esse tipo de situação e que não apanhará Mário Centeno, futuro governador do banco de Portugal.

9.

O futebol é a política nacional, nada há para além disso, escreveu o jornalista Fernando Sobral no Público.

10.

José Tolentino Mendonça, a rever o filme Round Midnight, lembrou que o filme é sobre o que pode fazer por nós a gentileza dos que nos amam, mesmo uma das frases inesquecíveis do filme é que nos diz: «Não há suficiente gentileza no mundo.»

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

DOMINGO NO PARQUE

Sempre entendi a Feira do Livro como uma festa.

Também oportunidade para encontrar, a bons preços, livros que já temos dificuldade em encontrar nas livrarias, por motivos que só estão ao alcance do oportunismo de editores e livreiros.

Chamam-lhes fundos de catálogo, ou lá o que é.

Neste aspecto a Relógio d’Agua, mais uma vez, dá uma banhada à concorrência.

Facilmente manuseados em caixas que mostram os respectivos preços, estão ali grandes livros, grandes autores, por preços que vão dos 3 aos 10 euros.

Sou rapaz de livros e petiscos.


Este ano a mistura é abrangente e espalhada ao longo de todo o recinto: farturas, churros, bifanas, cachorros, caracóis, gelados, cafés, ginjinha.

Espanto-me como ainda não chegaram as roulottes de sandes de coiratos.

Dêem-lhes tempo…

Como dizia: o poeta: primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Feira do Livro.

Um encontro de cheiros, sejam eles dos petiscos, dos próprios livros – sempre gostei de cheirar os livros – das flores e árvores do parque, a despedida, por este ano, dos jacarandás, um deles apanhado em pleno gozo de sol e que encima o texto.



Experimente comprar um livro e vá folheá-lo para uma das esplanadas que a feira oferece e que, resumidamente, se espraiam por aqui.

Neste ano, a Feira regista a presença de 480 editores espalhados por 240 pavilhões.

Milhares e milhares de livros que, em grande parte, não sei a que públicos se destinam, mas editam-se.

Nada melhor para encerrar o dia, que reler um velho texto que, suponho seja do Fernando Assis Pacheco:


Feira do Livro.

Pratique então você, sozinho e em segredo, a sua subversão. Faça uso do seu tempo, respire fundo, atenda aos seus sentidos, deixe-se apaixonar, ao toque, ao cheiro, por algum livro antigo, manchado por bolores de anónimos invernos. Oculto, disfarçado como um tesouro celta, enigmático e no entanto familiar, está aquele livro que você sempre quis ler ou perdeu em criança e vai encontrar por escolha sua.

Vá-o abrindo devagar, desfrute-o como um ser único que lentamente se desvenda e oferece sucessivas camadas de beleza. Confunda-se com ele, risque, comente, assinale-lhe no corpo o seu percurso. Use-o, gaste-o, comece-o outra vez. Será este um prazer de nossos avoengos a quem a vista de um tornozelo de mulher proporcionava excitações inconcebíveis e a posse de um livro, só por si, legitimava orgulhos genealógicos.

Boa Feira e bons encontros.

Texto publicado em 2 de Junho de 2017

DE TANTO TE IMAGINAR


De tanto te imaginar, de olhos fechados,
sei lá se te perdi!
E se esta sombra com quem voo nos telhados
és tu em vez de ti.

Só sei que quando vieres, real,
a cheirar a pele e a punhal,
com entranhas e caveira...

...terei de coser a tua sombra à minha,
atar o rio à Nuvem da tardinha,
a labareda ao fumo da fogueira.

José Gomes Ferreira em Poesia IV

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia

sábado, 27 de junho de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

SARAMAGUEANDO

Se no dia em que sair daqui sair não tiver ainda (já) outro emprego, começo o ano da estaca zero, completamente desprovido. Mas continuo a ter uma grande consideração por mim mesmo.

Miguéis por baixo deste parágrafo escreveu a seguinte nota:

Bravo! seu Saramago.

Não espantam estas palavras de José Saramago.

Uma integridade, outras coisas mais, agarrada, toda uma vida, à teima dos ossos.

«Que nos importa morrer se não morrermos de rastros?»

Versos de Cantiga de Ódio de Carlos de Oliveira.

«Posso morrer de fome mas não peço esmola.»

 «Só sei que “para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

Palavras de Mário Henrique Leiria em Depoimentos Escritos.

Foi a coragem, outras coisas mais que, em 1975, face ao despedimento do Diário de Notícias, à recusa dos seus pares e camaradas de Partido em que integrasse a equipa de O Diário, que o levou a viver de traduções, de colaborações várias, de arrancar para o Alentejo e do chão levantar um livro que o levaria, anos passados, ao Prémio Nobel da Literatura.

Apenas se conhece a versão de José Saramago sobre a sua substituição, por Natália Correia, à frente da direcção literária da editora Estúdios Cor.

Natália Correia, o que lhe sobrava em talento poético, escasseava-lhe em outros predicados que definem as pessoas.

Uma lindíssima mulher, segundo opinião corrente e variada, mas de uma vaidade cega que a conduzia a becos sem saída.

Luiz Pacheco numa das suas muitas entrevistas-descasca-pessegueiro, chama-lhe
 «degenerasda», e conta a história de que, numa das suas estadias na prisão do Limoeiro, Natália Correia teve lá em casa a mulher de Pacheco mais um filho pequeno, mas tentou assediar a rapariga, Pacheco  avança uns pormenores escabrosos e remata que, quando saiu da prisão, «esclareceu o assunto com a Natália».

Natália Correia não teve qualquer pejo em substituir José Saramago.

O contrário, certamente, não aconteceria.

Não são conhecidas as razões por que o fez mas, provavelmente, não andarão longe de motivos fúteis a roçar lampejos de inveja, porque de dinheiro não precisava Natália para viver dado que, ainda segundo Pacheco, «só «arranjava amantes velhos com massa.»


Legenda: contracapa da Correspondência entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago.

Texto publicado em 23 de Julho de 2017

NA PRIMAVERA TEM INÍCIO O NAMORO


O açor que eu ia buscar fora criado num aviário perto de Belfast. Criar açores não é para fracos. Tive amigos que tentaram e desistiram ao fim de uma época, coçando as cabeças cheias de novos cabelos brancos numa espécie de torpor pós-traumático. «Nunca mais», dizem eles. «A coisa mais stressante que já fiz na vida». Experimen-tem e vão descobrir que há uma linha ténue entre a excitação sexual do açor e a violência terrível e mortal. Temos de vigiar as nossas aves constantemente, supervisionar o seu comportamento, estar a postos para intervir. Não serve de nada pôr um casal de açores num aviário e deixá-los lá. Na maior parte dos casos a fêmea irá matar o companheiro. Por isso, é preferível alojá-los em aviários separados, mas contíguos, de paredes sólidas, com uma grade entre eles para que o casal se possa ver. Quando o inverno der lugar à primavera tem início o namoro, como Píramo e Tisbe, através de uma abertura na parede com chamamentos, exibições, baixando as suas asas azul-pálidas e enfunando as coberturas infracaudais, semelhantes a um par de grandes penas de marabu, e só quando, a fêmea parece pronta – uma avaliação subtil que não admite erro -, se deixa entrar o macho na câmara de acasalamento. Se tudo correr bem, acasalam, a fêmea põe ovos, e uma nova geração de açores criados em cativeiro, crias cobertas por uma penugem branca, com olhos turvos e garras minúsculas, faz a sua entrada no mundo.

Helen Macdonald em A de Açor

QUANDO ALGUÉM PARTE


Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto do vinho que ficou no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato
coração, âncora e cruz
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará.
Quando?
Não perguntes.


Ingeborg Bachmann

Legenda: imagem de Alfonso Gatto

sexta-feira, 26 de junho de 2020

UMA FENOMENOLOGIA DA RESPIRAÇÃO


Fala agora, antes que seja tarde, e depois espera continuar a falar até que não haja mais nada para dizer. Afinal de contas, o tempo está-se a esgotar. Talvez não seja pior pores de lado por agora as tuas histórias e tentares passar em revista o que foi para ti viver dentro deste corpo desde o primeiro dia de que tens memória de estar vivo até ao dia de hoje. Um catálogo de dados sensoriais. Aquilo a que se poderia chamar uma fenomenologia da respiração.

Paul Auster em Diário de Inverno

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Estragar capas de livros com a prensagem ou colocação de auto colantes, é um crime.

Que isso aconteça na Leya, onde o dono daquilo gosta mais de corridas de automóveis do que de livros, agora que aconteça na Relógio D’Água, dirigida por Francisco Vale, alguém que sabe verdadeiramente o que é um livro, torna-se um sacrilégio.

Os tempos pandémicos já são terríveis de viver, pior ficam com crimes destes.

O livro da Hélia Correia destinava-se a oferta. Tentei retirar o auto colante, mas deveriam ter utilizado uma cola de prender cientistas no tecto.

OLHAR AS CAPAS


Lillias Fraser

Hélia Correia
Capa: Fernando Mateus
Relógio D’Água, Lisboa Junho de 2001

Lillias salvou-se da carnificina porque, seis horas antes da batalha, viu o pai morto, como realmente ele haveria de morrer mais tarde. Atravessado por baionetas, de modo que os buracos na barriga vertiam sangue, bílis, e excrementos. Tom Fraser estava em pé, tapando a entrada, espalhando como sempre a escuridão. Ela pensou que aquilo que tanto o feria era o surpreendê-la adormecida na cama de madeira, que se usava somente em três momentos de uma vida: parir ou ser parido, acasalar pela primeira vez e falecer. O pai mostrava o seu desgosto abrindo o corpo, falando pelas fezes arruivadas. Lillias queria esconder-se, mas sabia que um pecado de filha nunca mais desapareceria da visão de um pai. Arremeteu-lhe contra as pernas e passou pelo meio delas, tão pequena e azulada que isso lhe dava qualidades de animal. A sua camisinha esvoaçava como penugem ao sabor da ventania, enquanto ela corria e se afastava cada vez mais, sem se dar conta de que, em verdade, ainda nada sucedera.

APRESENTAÇÃO


Terrível é o homem em quem o senhor
desmaiou o olhar furtivo das searas
ou reclinou a cabeça
ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina
Não há conspiração de folhas que recolha
a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro
quando caminha pela tarde acima
A morte é a grande palavra para esse homem
não há outra que o diga a ele próprio
É terrível ter o destino
da onda anónima morta na praia


Legenda: Ruy Belo

quinta-feira, 25 de junho de 2020

TODAS AS COISAS INTACTAS


Casimira amarra­va o lenço na cabeça, passava para trás e fechava a janela, alisava com as mãos o avental antes de a sentar ao colo, e era sempre Casimira que ainda nessa tarde a levaria á praia com Elisa, ela olharia da praia e poderia distinguir as paredes brancas, a porta, as pequenas janelas — lá estava, lá estava a casa, plantada no Verão. Todas as coisas iguais, recuperadas, porque não havia ainda nenhum intervalo no tempo. Os pés reconheciam as sandálias, como os ouvidos o vento, e o corpo o sabor do mar. Todas as coisas intactas, que de repente voltariam: o nevoeiro entrando pelas fisgas, como um assobio muito fino, o cheiro das manhãs em que chovia, os barcos, todos brancos, sobre o mar. E sobretudo a casa voltaria, idêntica, interior, envolvente, como o peso de dois braços, durante muitos anos voltaria, até que insensivelmente começaria a afastar-se como um barco partindo, e de repente havia uma distância intransponível entre ela e a casa –
O Verão em que chegara o circo e à tarde os acrobatas percorriam as ruas tocando os guizos, no dorsos de elefantes, o homem de boné branco atravessando a praia com uma lata de bolacha americana a tiracolo, um canudo comprido em que se pegava com jeito mas de algum modo se partia sempre, e tinha um sabor a farinha torrada, a mel, a hóstia, durante anos nenhuma coisa teve jamais um sabor assim, havia também os barquilhos, que saíam na roleta, sempre muito menos do que se esperava, de cada vez se jurava a si mesmo que seria a última, mas sempre que o homem perguntava «bolacha ou barquilhos» a tentação era mais forte e girava-se a roleta, e recebiam-se, corando de humilhação, tr~es ou cinco ou apenas um, havia a mulher que passava com um tabuleiro de caramelos embrulhados em papéis de cor e cada cor tinha seu paladar.


Legenda: imagem Shorpy

NÃO É MÚSICA


Não é música o que ouvimos.
Não é de água este brilho de prata.

Eu estou aqui sobre as pontes do rio.
Outros são os que espreitam pela bruma das margens.

Talvez me lembre:
tu vinhas devagar pelo lado das acácias.
Cingias cada árvore e as colunas, os braços de um
deus cruel,  o saber dos templos.

Não é um salmo o que ouvimos.
Não é de harpas este lamento,
não é o ofício de umas mãos esculpindo um rosto.
não é a palavra de deus que ecoa nas escarpas.

Algures te ocultas e não deixas sinais.
Quem és tu
cujo perfil se desvanece, cuja doçura se perde nos
confins da tarde?

Eu estou aqui onde se unem as margens, onde escurecem
as sendas e as sombras,
onde correm as nuvens, as pedras , as águas.

Outros são os que te aguardam pelo lado das acácias.

José Agostinho Baptista

OLHAR AS CAPAS


Na Praia de Chesil

Ian McEwan
Tradução: Ana Falcão Bastos
Capa: Armando Lopes
Gradiva, Lisboa, Novembro de 2007

Quando pensava nela, ficava pasmado por ter deixado partir aquela rapariga com o seu violino. Agora, claro, percebia que a proposta abnegada que ela lhe fizera era irrelevante. Tudo de que ela precisava era da certeza do seu amor e de que lhe garantisse que não havia pressa, quando tinham a vida inteira pela frente. Amor e paciência – se ao menos tivesse possuído os dois ao mesmo tempo – por certo tê-los-iam ajudado aos dois, E então que crianças por nascer teriam tido as suas oportunidades, que menina com uma fita no cabelo se teria tornado a sua filha adorada? É assim, não fazendo nada, que todo o curso de uma vida pode ser alterado. Na praia de Chesil ele poderia ter chamado Florence, poderia ter ido no seu encalço. Não sabia, ou não quis saber que, quando ela fugiu dele, segura na sua angústia de que estava prestes a perdê-lo, ela nunca o amara mais, ou mais desesperadamente, que o som da sua voz teria ido uma libertação, e que ela teria retrocedido. Em vez disso, permaneceu no frio e no silêncio virtuoso do fim daquele dia de Verão, vendo-a caminhar apressada pela praia, com o som do seu avanço penoso abafado pelas pequenas vagas, até se tornar uma mancha indistinta, um ponto a desaparecer contra a imensa estrada de seixos a brilhar na luz pálida do lusco-fusco.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

CONVERSANDO


Em 1966, depois de o seu romance Belos Vencidos, ter sido pontapeado pela crítica, canadiana, foi bater à porta de Juddy Collins que vivia em Nova Iorque.

«Abri-lhe a porta, ofereci-lhe um café, e ele diz-me: “Não sei cantar, não sei tocar guitarra e não tenho a certeza se isto é uma canção”. Tocou-me Suzanne e eu disse-lhe “Podes ter a certeza que é uma canção! E tenho de a gravar imediatamente!»

Escrevia poemas, canções, desenhos, em cadernos de apontamentos, em guardanapos de papel. Quando, em Novembro de 2006, partiu para longe, em entrevista, avisara de que estava preparado para morrer, que deixara as coisas em ordem.

«Deixar tudo em ordem, quando se pode fazê-lo, é uma das atividades mais reconfortantes, e os benefícios são incalculáveis.»

Nas entrelinhas deixara a ideia de quando partisse não se metessem nessas tretas de sentimentalismos que a nada conduzem.

A pena que ele tem que os estupores da Academia Sueca, quando lhes deu a veneta de serem diferentes no Nobel da Literatura, não tivessem escolhido Leonard Cohen, em vez de Bob Dylan, e deve declarar que gosta de Dylan, mas não tanto, como de Cohen.

Em 1966, depois de o seu romance Belos Vencidos, ter sido pontapeado pela crítica, canadiana, foi a Nova Iorque bater à porta de Juddy Collins.

«Abri-lhe a porta, ofereci-lhe um café, e ele diz-me: “Não sei cantar, não sei tocar guitarra e não tenho a certeza se isto é uma canção”. Tocou-me Suzanne e eu disse-lhe “Podes ter a certeza que é uma canção! E tenho de a gravar imediatamente!»

Assim aconteceu: gravou a canção em 1967 para o seu álbum In My Life, que tem outra canção de Cohen, Dress Rechearsal Rag, e também encontramos canções de Richard Fariña, Kurt Weil. Jacques Brel, Donovan, Randy Newman.

O pai dizia-lhe: se o encontro está marcado para as 10,00 horas, apareces dez minutos antes. Um dia, numa velha crítica de televisão, anos 60, do Mário Castrim, leu: Só quem chegou à estação um segundo atrasado, sabe como compensa chegar à estação demasiado cedo.

Chega sempre mais cedo que a hora do encontro. Mas a algumas músicas – e não são poucas… - chegou atrasado. Para atenuar um pouco a amargura, costuma dizer: “mas chegou!”

Está em crer que a primeira canção de Cohen que ouviu foi Suzanne.

Leonard escreveu a canção em 1966. Suzanne tinha um quarto numa rua à beira do porto de Montreal. Era mulher de um amigo seu. Cohen e Suzanne garantiram que nada mais se passou: acendiam velas, bebiam chá e ficavam a olhar um para o outro calados; outras vezes falavam das coisas da vida, trocavam ideias.

É uma bonita canção.

Luís Miguel Mira educou as suas filhas ensinando-as de que deviam desconfiar de quem não gostasse de Leonard Cohen...!

 A tradução utilizada é a de Manuel Cadafaz de Matos:

Suzanne conduz-te para o seu cantinho mesmo perto do rio
Podes ouvir os barcos passando, ficar a noite junto dela
Sabes que é meia tonta mas é por isso que gostas de estar ali
Ela oferece-te chá e laranjas que vêm lá da China
E quando lhe queres dizer que não tens amor para lhe dar
Ela arrasta-te na mesma frequência e deixa o rio responder
Que foste sempre seu amante
Tu desejas viajar com ela desejas viajar cegamente
E sabes que ela confiará em ti
Porque tu tocaste o seu corpo perfeito com o teu espírito.
Jesus era um marinheiro quando caminhava sobre as águas
E passou imenso tempo a viajar da sua torre solitária de madeira
E quando teve a certeza de que só os náufragos o podiam ver
Ele disse: «Todos os homens serão marinheiros até que o mar
Lhes restitua a liberdade».
Mas ele mesmo era despedaçado muito antes que o céu se abrisse
Desamparado, quase humano, ele afundava-se
Na vossa sabedoria como uma pedra
E tu desejas viajar com ele, desejas viajar cegamente
E pensas que é possível confiar nele.
Porque ele tocou o teu corpo perfeito com o seu espírito.
Agora Suzanne segura a tua mão e conduz-te até ao rio
Veste trapos e penas dos balcões do Exército da Salvação
E o sol derrama-se como mel sobre a nossa senhora do cais
Ela indica-te para onde olhares entre o lixo e as flores.
Há heróis pelos sargaços há crianças pela manhã
Elas assomam à procura de amor, inclinar-se-ão sempre assim
Enquanto Suzanne segura o espelho
E tu desejas viajar com ela, desejas viajar cegamente





OLHAR AS CAPAS


A Festa da Enforcada

Anthony Berkeley
Tradução: Mascarenhas Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 178
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Da tripla forca, balouçavam indolentemente três figuras, uma de mulher e duas de homem.
Na noite calma, apenas se ouvia o leve ranger das cordas. Uma lanterna, poisada acima do triângulo das forcas, oscilava sob a brisa suave, projectando no solo uma grotesca dança macabra de três sombras
- Está muito bem – apreciou Roger Sheringham.
- Estupendo, não acha? – concordou o seu anfitrião.
- Dois enforcados e uma enforcada. Você, Ronald, é um tipo mórbido, não é verdade? – perguntou Roger interessadamente.

VELHO CARRO DE UM VELHO


Velho carro de um velho num país de velhos
Um gato a quem falta já a ousadia acrobata dos telhados
E as unhas de aço nas retraídas patas
De veludo puído.

Já foste um gato de muito foles sem contar
Com o da indiferença.
Contigo aprendi a lisonja no regaço e a redobrada vénia
Dos amantes de serviço.

Os dois sentimos as festas
No pêlo e na pele metafórica dos sentidos
Politicamente correctos.
Não houve fogo que nos queimasse o gozo de estar vivos.

Aqui é o sol do frio que nos faz sorrir
Aos pés da escada. Não te debruces em excesso
Nas rochas do Carvoeiro.
O gato e a água juntos não serão a melhor escolha de acabar.

Armando Silva Carvalho

terça-feira, 23 de junho de 2020

CONHECI A CENSURA


Conheci a censura. Mas, não tendo gosto pelas memórias ressentidas, só muito raramente falo dela. Ainda há pouco toquei nesse terror quando reli Os Demónios – não Os Possessos – na tradução do António Pescada, a quem tão grata sou por me ter permitido ler sem desconfiança os meus romances russos. Está nele incluído o capítulo que Dostoievski se viu forçado a retirar aquando da publicação. Escreveu um outro, totalmente diferente. E a chave do enigma respeitante à personagem principal caiu no lodo. «Que nunca mais, que nunca mais isto aconteça», é o voto que faz qualquer leitor. E, no entanto, está a acontecer.
Não pela força de um poder instituído e frequentemente muito estúpido, mas pela força de um poder massificado, igualmente estúpido, igualmente autorizado por um puritanismo executório. É uma polícia da opinião que não parece imposta e que se aloja no interior de cada um para desencorajar a ousadia, sendo que a ousadia não está hoje na infantil libertinagem sexual e sim no dar palavra e dar figura ao que o homem e a natureza têm de terrível, de necessário, de indomesticável. Dar a palavra ao que é inominável, afrontar o tabu, eis a tarefa.
Não podemos deixar que uma cruzada de higienização se estenda à arte.

Hélia Correia

OLHAR AS CAPAS



Gente Feliz Com Lágrimas

João de Melo
Capa: José Antunes
Círculo de Leitores, Lisboa, Novembro de 1988

Aportaram a Lisboa, vindos dos Açores, para seguirem a estrada que dizem levar à difícil graça de Deus. Fugidos e flagelados como os emigrantes continentais que chegavam à Gare de Austerlitz e inundavam Paris com os seus cestos de vime, os sacos de pano contendo as misérias preciosas dum país, e depois choravam e limpavam os olhos às gorras negras ou aos lenços dessa indefinível, terrível palavra «saudade». Chegavam a Lisboa e eram também emigrantes: Amélia era duma palidez suplicante, tinha dezasseis anos e sonhava já poder vir um dia a cursar a enfermagem. Enquanto não cursasse a enfermagem, levaria o destino das irmãzinhas: ia viver esse sonho fechado por dentro dum ovo, crescer nele e depois quebrar-lhe a casca e as membranas que a separavam da transparência do mundo.
– Foi sem dúvida a maior alegria da minha vida, chegar a Lisboa, disse ela. Apesar de chover torrencialmente, o Sol iluminava a chuva e a chuva enchera-se duma coloração azul e irreal, como tudo o que estava a acontecer-me. Encantou-me saber-me ainda mais portuguesa do outro lado daquele mar, longe da humidade, do céu baixo dos Açores, do tempo que havia parado e envenenado a minha vida, e longe da maldição da minha infância na Ilha. Gostei logo, e de paixão, desse firmamento europeu, da sua luminosidade alta e vertical. Gostei tanto de Lisboa, daquele polvo azul sobre as colinas, das ruas planas que vão num grande círculo, desde o fim das docas até à baía de Cascais... Comecei aí a organizar dentro de mim todos os motivos que me levaram a gostar de estar viva, a ser mulher de novo, a recomeçar os meus dias a partir desse segundo nascimento para o mundo...
– Além disso, precisou Nuno, Lisboa pareceu-me logo a Cidade dos domingos, mesmo daqueles em que, pela vida fora, vim a conhecer nela as angústias dos poetas. Quando aqui cheguei, havia em Alcântara um homem de óculos escuros e dedos cabeludos que me sorriu de modo civilizado e me disse vir em nome de Deus...
Perfeitamente natural numa cidade com tantas igrejas, com anjos de pedra, eternos e imobilizados, esculpidos nos seus nichos aéreos, ao cimo dos edifícios dos Ministérios, na Praça do Comércio: viam-se os arcos por caiar, a estátua ao centro com o cavalo do príncipe esticando a pata dianteira na direcção de Marrocos. Vira tudo isso em Roma, onde aliás nunca estive, e em Madrid e em Paris, e nas cidadezinhas gregas à beira do Mediterrâneo, o mundo que eu começava a inventar para a minha futura existência. Só quando o homem de óculos escuros se chegou a mim e me disse ter o nome de Deus despertei para a realidade, lembrando-me de que o meu destino não era Lisboa, e sim o seminário. Viera a mando do papá, com ordem expressa para me tornar padre depressa, regressar aos Açores e ir depois dizer aos náufragos que também eu fora baptizado com o nome de Deus...
– Logo ao atracar em Alcântara, vi toda a gente vestida e calçada como só nos domingos dos Açores.

MUDANÇA DE IDADE


Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.

Mia Couto

Legenda: fotografia de Gerard Bloncourt