quarta-feira, 24 de junho de 2020

CONVERSANDO


Em 1966, depois de o seu romance Belos Vencidos, ter sido pontapeado pela crítica, canadiana, foi bater à porta de Juddy Collins que vivia em Nova Iorque.

«Abri-lhe a porta, ofereci-lhe um café, e ele diz-me: “Não sei cantar, não sei tocar guitarra e não tenho a certeza se isto é uma canção”. Tocou-me Suzanne e eu disse-lhe “Podes ter a certeza que é uma canção! E tenho de a gravar imediatamente!»

Escrevia poemas, canções, desenhos, em cadernos de apontamentos, em guardanapos de papel. Quando, em Novembro de 2006, partiu para longe, em entrevista, avisara de que estava preparado para morrer, que deixara as coisas em ordem.

«Deixar tudo em ordem, quando se pode fazê-lo, é uma das atividades mais reconfortantes, e os benefícios são incalculáveis.»

Nas entrelinhas deixara a ideia de quando partisse não se metessem nessas tretas de sentimentalismos que a nada conduzem.

A pena que ele tem que os estupores da Academia Sueca, quando lhes deu a veneta de serem diferentes no Nobel da Literatura, não tivessem escolhido Leonard Cohen, em vez de Bob Dylan, e deve declarar que gosta de Dylan, mas não tanto, como de Cohen.

Em 1966, depois de o seu romance Belos Vencidos, ter sido pontapeado pela crítica, canadiana, foi a Nova Iorque bater à porta de Juddy Collins.

«Abri-lhe a porta, ofereci-lhe um café, e ele diz-me: “Não sei cantar, não sei tocar guitarra e não tenho a certeza se isto é uma canção”. Tocou-me Suzanne e eu disse-lhe “Podes ter a certeza que é uma canção! E tenho de a gravar imediatamente!»

Assim aconteceu: gravou a canção em 1967 para o seu álbum In My Life, que tem outra canção de Cohen, Dress Rechearsal Rag, e também encontramos canções de Richard Fariña, Kurt Weil. Jacques Brel, Donovan, Randy Newman.

O pai dizia-lhe: se o encontro está marcado para as 10,00 horas, apareces dez minutos antes. Um dia, numa velha crítica de televisão, anos 60, do Mário Castrim, leu: Só quem chegou à estação um segundo atrasado, sabe como compensa chegar à estação demasiado cedo.

Chega sempre mais cedo que a hora do encontro. Mas a algumas músicas – e não são poucas… - chegou atrasado. Para atenuar um pouco a amargura, costuma dizer: “mas chegou!”

Está em crer que a primeira canção de Cohen que ouviu foi Suzanne.

Leonard escreveu a canção em 1966. Suzanne tinha um quarto numa rua à beira do porto de Montreal. Era mulher de um amigo seu. Cohen e Suzanne garantiram que nada mais se passou: acendiam velas, bebiam chá e ficavam a olhar um para o outro calados; outras vezes falavam das coisas da vida, trocavam ideias.

É uma bonita canção.

Luís Miguel Mira educou as suas filhas ensinando-as de que deviam desconfiar de quem não gostasse de Leonard Cohen...!

 A tradução utilizada é a de Manuel Cadafaz de Matos:

Suzanne conduz-te para o seu cantinho mesmo perto do rio
Podes ouvir os barcos passando, ficar a noite junto dela
Sabes que é meia tonta mas é por isso que gostas de estar ali
Ela oferece-te chá e laranjas que vêm lá da China
E quando lhe queres dizer que não tens amor para lhe dar
Ela arrasta-te na mesma frequência e deixa o rio responder
Que foste sempre seu amante
Tu desejas viajar com ela desejas viajar cegamente
E sabes que ela confiará em ti
Porque tu tocaste o seu corpo perfeito com o teu espírito.
Jesus era um marinheiro quando caminhava sobre as águas
E passou imenso tempo a viajar da sua torre solitária de madeira
E quando teve a certeza de que só os náufragos o podiam ver
Ele disse: «Todos os homens serão marinheiros até que o mar
Lhes restitua a liberdade».
Mas ele mesmo era despedaçado muito antes que o céu se abrisse
Desamparado, quase humano, ele afundava-se
Na vossa sabedoria como uma pedra
E tu desejas viajar com ele, desejas viajar cegamente
E pensas que é possível confiar nele.
Porque ele tocou o teu corpo perfeito com o seu espírito.
Agora Suzanne segura a tua mão e conduz-te até ao rio
Veste trapos e penas dos balcões do Exército da Salvação
E o sol derrama-se como mel sobre a nossa senhora do cais
Ela indica-te para onde olhares entre o lixo e as flores.
Há heróis pelos sargaços há crianças pela manhã
Elas assomam à procura de amor, inclinar-se-ão sempre assim
Enquanto Suzanne segura o espelho
E tu desejas viajar com ela, desejas viajar cegamente





Sem comentários: