terça-feira, 23 de junho de 2020

OLHAR AS CAPAS



Gente Feliz Com Lágrimas

João de Melo
Capa: José Antunes
Círculo de Leitores, Lisboa, Novembro de 1988

Aportaram a Lisboa, vindos dos Açores, para seguirem a estrada que dizem levar à difícil graça de Deus. Fugidos e flagelados como os emigrantes continentais que chegavam à Gare de Austerlitz e inundavam Paris com os seus cestos de vime, os sacos de pano contendo as misérias preciosas dum país, e depois choravam e limpavam os olhos às gorras negras ou aos lenços dessa indefinível, terrível palavra «saudade». Chegavam a Lisboa e eram também emigrantes: Amélia era duma palidez suplicante, tinha dezasseis anos e sonhava já poder vir um dia a cursar a enfermagem. Enquanto não cursasse a enfermagem, levaria o destino das irmãzinhas: ia viver esse sonho fechado por dentro dum ovo, crescer nele e depois quebrar-lhe a casca e as membranas que a separavam da transparência do mundo.
– Foi sem dúvida a maior alegria da minha vida, chegar a Lisboa, disse ela. Apesar de chover torrencialmente, o Sol iluminava a chuva e a chuva enchera-se duma coloração azul e irreal, como tudo o que estava a acontecer-me. Encantou-me saber-me ainda mais portuguesa do outro lado daquele mar, longe da humidade, do céu baixo dos Açores, do tempo que havia parado e envenenado a minha vida, e longe da maldição da minha infância na Ilha. Gostei logo, e de paixão, desse firmamento europeu, da sua luminosidade alta e vertical. Gostei tanto de Lisboa, daquele polvo azul sobre as colinas, das ruas planas que vão num grande círculo, desde o fim das docas até à baía de Cascais... Comecei aí a organizar dentro de mim todos os motivos que me levaram a gostar de estar viva, a ser mulher de novo, a recomeçar os meus dias a partir desse segundo nascimento para o mundo...
– Além disso, precisou Nuno, Lisboa pareceu-me logo a Cidade dos domingos, mesmo daqueles em que, pela vida fora, vim a conhecer nela as angústias dos poetas. Quando aqui cheguei, havia em Alcântara um homem de óculos escuros e dedos cabeludos que me sorriu de modo civilizado e me disse vir em nome de Deus...
Perfeitamente natural numa cidade com tantas igrejas, com anjos de pedra, eternos e imobilizados, esculpidos nos seus nichos aéreos, ao cimo dos edifícios dos Ministérios, na Praça do Comércio: viam-se os arcos por caiar, a estátua ao centro com o cavalo do príncipe esticando a pata dianteira na direcção de Marrocos. Vira tudo isso em Roma, onde aliás nunca estive, e em Madrid e em Paris, e nas cidadezinhas gregas à beira do Mediterrâneo, o mundo que eu começava a inventar para a minha futura existência. Só quando o homem de óculos escuros se chegou a mim e me disse ter o nome de Deus despertei para a realidade, lembrando-me de que o meu destino não era Lisboa, e sim o seminário. Viera a mando do papá, com ordem expressa para me tornar padre depressa, regressar aos Açores e ir depois dizer aos náufragos que também eu fora baptizado com o nome de Deus...
– Logo ao atracar em Alcântara, vi toda a gente vestida e calçada como só nos domingos dos Açores.

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