Gente Feliz Com Lágrimas
João de Melo
Capa: José Antunes
Círculo de Leitores,
Lisboa, Novembro de 1988
Aportaram a Lisboa,
vindos dos Açores, para seguirem a estrada que dizem levar à difícil graça de Deus.
Fugidos e flagelados como os emigrantes continentais que chegavam à Gare de
Austerlitz e inundavam Paris com os seus cestos de vime, os sacos de pano
contendo as misérias preciosas dum país, e depois choravam e limpavam os olhos
às gorras negras ou aos lenços dessa indefinível, terrível palavra «saudade».
Chegavam a Lisboa e eram também emigrantes: Amélia era duma palidez suplicante,
tinha dezasseis anos e sonhava já poder vir um dia a cursar a enfermagem.
Enquanto não cursasse a enfermagem, levaria o destino das irmãzinhas: ia viver
esse sonho fechado por dentro dum ovo, crescer nele e depois quebrar-lhe a
casca e as membranas que a separavam da transparência do mundo.
– Foi sem dúvida a
maior alegria da minha vida, chegar a Lisboa, disse ela. Apesar de chover
torrencialmente, o Sol iluminava a chuva e a chuva enchera-se duma coloração
azul e irreal, como tudo o que estava a acontecer-me. Encantou-me saber-me
ainda mais portuguesa do outro lado daquele mar, longe da humidade, do céu
baixo dos Açores, do tempo que havia parado e envenenado a minha vida, e longe
da maldição da minha infância na Ilha. Gostei logo, e de paixão, desse
firmamento europeu, da sua luminosidade alta e vertical. Gostei tanto de
Lisboa, daquele polvo azul sobre as colinas, das ruas planas que vão num grande
círculo, desde o fim das docas até à baía de Cascais... Comecei aí a organizar
dentro de mim todos os motivos que me levaram a gostar de estar viva, a ser
mulher de novo, a recomeçar os meus dias a partir desse segundo nascimento para
o mundo...
– Além disso,
precisou Nuno, Lisboa pareceu-me logo a Cidade dos domingos, mesmo daqueles em
que, pela vida fora, vim a conhecer nela as angústias dos poetas. Quando aqui
cheguei, havia em Alcântara um homem de óculos escuros e dedos cabeludos que me
sorriu de modo civilizado e me disse vir em nome de Deus...
Perfeitamente
natural numa cidade com tantas igrejas, com anjos de pedra, eternos e
imobilizados, esculpidos nos seus nichos aéreos, ao cimo dos edifícios dos
Ministérios, na Praça do Comércio: viam-se os arcos por caiar, a estátua ao
centro com o cavalo do príncipe esticando a pata dianteira na direcção de
Marrocos. Vira tudo isso em Roma, onde aliás nunca estive, e em Madrid e em
Paris, e nas cidadezinhas gregas à beira do Mediterrâneo, o mundo que eu
começava a inventar para a minha futura existência. Só quando o homem de óculos
escuros se chegou a mim e me disse ter o nome de Deus despertei para a
realidade, lembrando-me de que o meu destino não era Lisboa, e sim o seminário.
Viera a mando do papá, com ordem expressa para me tornar padre depressa,
regressar aos Açores e ir depois dizer aos náufragos que também eu fora
baptizado com o nome de Deus...
– Logo ao atracar
em Alcântara, vi toda a gente vestida e calçada como só nos domingos dos
Açores.
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