Conheci a censura.
Mas, não tendo gosto pelas memórias ressentidas, só muito raramente falo dela.
Ainda há pouco toquei nesse terror quando reli Os Demónios –
não Os Possessos – na tradução do António Pescada, a quem tão
grata sou por me ter permitido ler sem desconfiança os meus romances russos.
Está nele incluído o capítulo que Dostoievski se viu forçado a retirar aquando
da publicação. Escreveu um outro, totalmente diferente. E a chave do enigma
respeitante à personagem principal caiu no lodo. «Que nunca mais, que nunca
mais isto aconteça», é o voto que faz qualquer leitor. E, no entanto, está a
acontecer.
Não pela força de um
poder instituído e frequentemente muito estúpido, mas pela força de um poder
massificado, igualmente estúpido, igualmente autorizado por um puritanismo
executório. É uma polícia da opinião que não parece imposta e que se aloja no
interior de cada um para desencorajar a ousadia, sendo que a ousadia não está
hoje na infantil libertinagem sexual e sim no dar palavra e dar figura ao que o
homem e a natureza têm de terrível, de necessário, de indomesticável. Dar a
palavra ao que é inominável, afrontar o tabu, eis a tarefa.
Não podemos deixar
que uma cruzada de higienização se estenda à arte.
Hélia Correia
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