segunda-feira, 15 de junho de 2020

OLHAR AS CAPAS


Não É Preciso Mentir

António Botto

Editôra Educação Nacional, Porto, Dezembro, 1939

Naquele esmorecer do fim do dia, bateu-me à porta um jovem senhor que eu convidara para a minha casa. A sua cortesia era, de facto, a mais gentil; o seu sorriso era o mais encantador; e a sua amabilidade espontânea prendia de tão fina e correcta… Fiquei a pensar se aquela educação subtilmente esmerada seria, em verdade, tão sólida como parecia. Apesar das minhas dúvidas, concebi um certo plano para ver até onde chegava aquela delicadeza. Depois de o conduzir aos aposentos que lhe destinara, pedi-lhe que quando quisesse viesse ao meu encontro para falarmos um pouco sobre o que mais lhe agradasse. No extenso corredor que ligava o seu quarto à pequena sala para onde me dirigi, a claridade fugira porque a noite descia, e nesse corredor algumas cadeiras em desordem não tinham sido arrumadas pelo meu velho criado Manuel. O simpático e jovem convidado, talvez na sua urgência de acudir a satisfazer, sem demora, o meu pedido de conversa, tropeçou numa cadeira e disse uma palavra feia. Logo a seguir, um pouco mais adiante, tropeçou numa segunda cadeira, e, dando-lhe um pontapé, repetiu a mesma palavra. E tinha perdido o domínio quando me vê no extremo do corredor, sorridente, a fumar um cigarro. Atirei-lhe com este saudar: Ó tu, que não eras tu!: muito me agradaram, crê, as tuas bonitas maneiras. Somente, elas acabam nas pessoas antes de chegarem às coisas. Imagina, caro amigo, o que vão dizer as minhas cadeiras da tua excelsa delicadeza! E a conversa decorreu fria, cortada por silêncios largos. Por fim, despediu-se, e foi-se embora, enquanto eu ficava a dizer: o homem perfeitamente educado, em qualquer momento ou circunstância, mostra a sua educação que, até mesmo sem ele dar por isso, estende às coisas o respeito que mantém pelas pessoas com quem trata. O homem fino levanta um objecto pesado com suavidade e um objecto leve com aprumo. E nessa harmoniosa medida de movimentos manifesta, nitidamente, o seu grau de civilizado.

2 comentários:

Seve disse...

Quando caminhando há quem, propositadamente, pise o caracol mas também há, embora minoritariamente, quem desloque o caracol para um sítio onde não possa ser pisado.

Sammy, o paquete disse...

Que variante tão bem encontrada para as palavras de António Botto!