Não É Preciso Mentir
António Botto
Editôra Educação Nacional,
Porto, Dezembro, 1939
Naquele esmorecer do fim do dia, bateu-me à porta um jovem senhor que
eu convidara para a minha casa. A sua cortesia era, de facto, a mais gentil; o
seu sorriso era o mais encantador; e a sua amabilidade espontânea prendia de
tão fina e correcta… Fiquei a pensar se aquela educação subtilmente esmerada
seria, em verdade, tão sólida como parecia. Apesar das minhas dúvidas, concebi
um certo plano para ver até onde chegava aquela delicadeza. Depois de o
conduzir aos aposentos que lhe destinara, pedi-lhe que quando quisesse viesse
ao meu encontro para falarmos um pouco sobre o que mais lhe agradasse. No
extenso corredor que ligava o seu quarto à pequena sala para onde me dirigi, a
claridade fugira porque a noite descia, e nesse corredor algumas cadeiras em
desordem não tinham sido arrumadas pelo meu velho criado Manuel. O simpático e
jovem convidado, talvez na sua urgência de acudir a satisfazer, sem demora, o
meu pedido de conversa, tropeçou numa cadeira e disse uma palavra feia. Logo a
seguir, um pouco mais adiante, tropeçou numa segunda cadeira, e, dando-lhe um
pontapé, repetiu a mesma palavra. E tinha perdido o domínio quando me vê no
extremo do corredor, sorridente, a fumar um cigarro. Atirei-lhe com este
saudar: Ó tu, que não eras tu!: muito me agradaram, crê, as tuas bonitas
maneiras. Somente, elas acabam nas pessoas antes de chegarem às coisas.
Imagina, caro amigo, o que vão dizer as minhas cadeiras da tua excelsa
delicadeza! E a conversa decorreu fria, cortada por silêncios largos. Por fim,
despediu-se, e foi-se embora, enquanto eu ficava a dizer: o homem perfeitamente
educado, em qualquer momento ou circunstância, mostra a sua educação que, até
mesmo sem ele dar por isso, estende às coisas o respeito que mantém pelas
pessoas com quem trata. O homem fino levanta um objecto pesado com suavidade e
um objecto leve com aprumo. E nessa harmoniosa medida de movimentos manifesta,
nitidamente, o seu grau de civilizado.
2 comentários:
Quando caminhando há quem, propositadamente, pise o caracol mas também há, embora minoritariamente, quem desloque o caracol para um sítio onde não possa ser pisado.
Que variante tão bem encontrada para as palavras de António Botto!
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