quinta-feira, 25 de junho de 2020

TODAS AS COISAS INTACTAS


Casimira amarra­va o lenço na cabeça, passava para trás e fechava a janela, alisava com as mãos o avental antes de a sentar ao colo, e era sempre Casimira que ainda nessa tarde a levaria á praia com Elisa, ela olharia da praia e poderia distinguir as paredes brancas, a porta, as pequenas janelas — lá estava, lá estava a casa, plantada no Verão. Todas as coisas iguais, recuperadas, porque não havia ainda nenhum intervalo no tempo. Os pés reconheciam as sandálias, como os ouvidos o vento, e o corpo o sabor do mar. Todas as coisas intactas, que de repente voltariam: o nevoeiro entrando pelas fisgas, como um assobio muito fino, o cheiro das manhãs em que chovia, os barcos, todos brancos, sobre o mar. E sobretudo a casa voltaria, idêntica, interior, envolvente, como o peso de dois braços, durante muitos anos voltaria, até que insensivelmente começaria a afastar-se como um barco partindo, e de repente havia uma distância intransponível entre ela e a casa –
O Verão em que chegara o circo e à tarde os acrobatas percorriam as ruas tocando os guizos, no dorsos de elefantes, o homem de boné branco atravessando a praia com uma lata de bolacha americana a tiracolo, um canudo comprido em que se pegava com jeito mas de algum modo se partia sempre, e tinha um sabor a farinha torrada, a mel, a hóstia, durante anos nenhuma coisa teve jamais um sabor assim, havia também os barquilhos, que saíam na roleta, sempre muito menos do que se esperava, de cada vez se jurava a si mesmo que seria a última, mas sempre que o homem perguntava «bolacha ou barquilhos» a tentação era mais forte e girava-se a roleta, e recebiam-se, corando de humilhação, tr~es ou cinco ou apenas um, havia a mulher que passava com um tabuleiro de caramelos embrulhados em papéis de cor e cada cor tinha seu paladar.


Legenda: imagem Shorpy

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