quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


A vida é demasiado importante para ser levada a sério.

Lawrence Durrell

QUERO VÊ-LA CHEGAR



«Mas não estás com mau aspecto.

Eu nunca esperei acabar nisto.


Nisto, como?

Eh pá: com criadas, auxiliares, assistência médica. Fazem-me a cama, limpam-me o quarto.

Não te sentes sozinho?

Não. Tenho uma memória muito razoável. Já não posso ler, já não posso escrever, de modo que repiso o que vivi. Depois há malta que vem cá e me conta umas coisas de que eu já não me lembrava.

Não escreves, mas podias ditar para um gravador.

Eu cheguei a ter um Diário Falado, gravado para as cassetes.

E onde é que estão essas cassetes?

Algumas deve-as ter o Paulo. Outras perdi-as nas pensões, nos sanatórios, por aí… Um diário, escrito ou falado, torna-se um vício, uma espécie de dependência. Mas depois também passa.


Ouve lá: quais os escritores portugueses actuais que pensas que serão lidos daqui a 50 anos?

Os que vierem nos programas escolares. Achas que os putos agora lêem A Sibila? É uma maravilha aquele livro, mas que miúdos urbanos de hoje é que vão ler aquilo? O Pessoa perdura, de certeza. Não sei se o Saramago e o António Lobo Antunes têm tomates para continuar. Não faço ideia do Herberto. Esse é diferente, é poesia, mas a prosa dele também é muito boa. Mas quem é que lê hoje Os Passos em Volta?

Muita gente, e jovem.

Ai é!? O Herberto é muito complexo. Não será o nosso maior poeta, mas é muito bom.»

Pensas na morte?

Penso, mas não quero que ela me apanhe a dormir. Quero vê-la chegar.

OLHAR AS CAPAS


A Caminho de Fátima

Mário Castrim
Capa e Ilustrações: José Miguel Ribeiro
Colecção De Par em Par nº 18
Editorial Caminho, Lisboa Maio de 1992

No ano passado, o marido da Drª Ester tivera um AVC.
Duas vozes:
- Um quê?
Um AVC quer dizer Acidente Cardiovascular.
- Credo – mastigou a Fani. – Pensei que era um partido político.
O marido da Drª Ester ficou duas semanas internado. Os médicos asseguraram que tinha sido coisa pouca, for mais um ameaço do que propriamente um acidente.
- Foi um acevezinho… - resumiu Fani.
Entretanto, a vigilância devia manter-se, pois em qualquer momento a situação podia agravar-se. Pelo sim, pelo não, a Drª Ester fez uma promessa: iria a Fátima, daria à Senhora o seu anel de noivado. Hoje, só a pérola valia um dinheirão.
- Ó Céu – interrompeu a Fani, chocalhando o biscoito dentro do chá -, tens a certeza que o anel serve no dedo da Senhora?
A Céu fez que não ouviu. E continuou a falar da promessa. A Drª Ester andaria té ao altar, de joelhos, tanto tempo quanto pudesse. A promessa tinha dois fins: o primeiro, agradecer a benignidade do ACV e a boa solução do caso; o segundo, prevenir outro acidente. A Drª Ester desconfiava que o coração do marido continuava a não funcionar bem.
- Essa do anel, foi bonito – disse a D. Rosália.
Fani suspirou, com grande estardalhaço de biscoito:
- Vão-se os anéis e fiquem os maridos…
D. Rosália não percebia bem era a história dos joelhos:
- Ir de joelhos até poder? Olha a grande África. Ainda se ela dissesse: «Até não poder…»
- É tudo uma maneira de falar – esclareceu a Fani, muito compreensiva.
- Tal e qual – foi a vez da Céu. – E se vocês soubessem como aquele casal se dá bem… A promessa está mioto apropriada. Quem quer bons maridos guarda-os.
Lembrou-se do seu defunto e a voz tremeu-lhe.

NO QUE ESCREVI ME TRADUZI


no que escrevi me traduzi
e traduzi outros também
e traduzindo me escrevi
e a escrever-me fui eu quem
das várias coisas que senti
fez sofrimento de ninguém.
depois risquei, depois reli
e publiquei: assim porém
havia sempre mais alguém
para o chamar então a si,
também vivendo o que menti
mas como seu, mas como sem
ter sido meu o que escrevi
fosse por mal, fosse por bem.
é sua a vez. e que mal tem?
no que escrevi sobrevivi.

Vasco Graça Moura

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Continuo na mesma, não sabia então como é que se convertia o mundo, num mundo perfeito, e continuo hoje sem saber. Com uma pequena diferença, aprendi com os meus próprios erros, a temer os que sabem como fazer um mundo perfeito.

Manuel S. Fonseca em A Página Negra

QUANDO O COMBOIO PASSA


Como dizia Erik Satie, viemos ao mundo muito jovens num tempo muito velho. E é ao mesmo tempo – revela-nos Calasso – ao que Kafka faz alusão na breve e misteriosa frase solta que abre os seus Diários: «Os espectadores ficam rígidos quando o comboio passa.» O comboio é o tempo que não nos permite compreender a sua forma. É então inevitável ficar rígido, enquanto o observamos: sinal de uma última resistência.

Enrique Vila-Matas em Diário Volúvel

OLHAR AS CAPAS


O Mistério dos Bombons Envenenados

Anthony Berkeley
Tradução: Mascarenhas Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 185
Livros do Brasil, Lisboa s/D

Ao chegar à porta, Miss Dammers voltou-se.
- Lamento não poder ficar para ouvir o resto da sua história, Mr. Chitterwick. Mas sabe, tal como já lhe disse, duvido muito que consiga prova-la.
Saiu.
- Ela tem toda a razão . murmurou Mr. Chitterwick, petrificasdo. – Tenho a certeza de que não posso. Mas acho que não há a mínima dúvida de que solucionei este crime.
Por momentos, reinou a estupefacção.
- O senhor… o senhor quer dizer que…? – gorjeou Mrs. Fielder-Flemming com voz estrídula.
Mr. Bradley foi o primeiro a acalmar-se.
.- No fim de contas, tínhamos entre nós um criminologista prático – balbuciou num tom que nada tinha de Oxford. – Que interessante
O silêncio voltou a reinar.
Nesse caso – perguntou o Presidente, desnorteado – que vamos fazer?
Ninguém o elucidou.

ADEUS


É um adeus…
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus…
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer
A humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de lírico pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

Miguel Torga em Diário Volume XII

Legenda: Miguel Torga

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

ETECETERA


Certamente que existirão razões, mas o Movimento «MeToo» caiu num exagero hipócrita e perigoso, num fundamentalismo que não augura nada de bom.


Não tardou muito que meia dúzia de activistas do «MeToo» corressem a vandalizar uma estátua que na Florida regista o histórico beijo de um militar e de uma enfermeira felizes por o pesadelo da guerra ter terminado.

Brigitte Bardot, hoje com 85 anos, que sabe mais da poda a dormir que o «MeToo» todo de olhos abertos, disse numa entrevista que a maior parte das denúncias de abuso sexual no cinema, são casos hipócritas e afirmou que muitas intérpretes «aquecem os produtores para obter um papel.»

Sharon Stone quando lhe perguntaram sobre essa história do assédio sexual às actrizes, soltou uma sonora e larga gargalhada.

E Sharon Stone também sabe da poda.

QUOTIDIANOS

1.

O juiz Neto de Moura volta a estar na berlinda e sempre pelos piores motivos.

Um homem de 53 anos deu vários socos na cabeça da mulher perfurando-lhe um tímpano. A vítima fez queixa e o agressor ficou com pulseira eletrónica como medida de coação. O agressor recorreu da condenação e, em outubro do ano passado, o juiz Neto de Moura do tribunal da Relação do Porto retirou-lhe a pulseira eletrónica.

Quando os técnicos dos serviços prisionais bateram à porta da mulher para lhe retirarem a pulseira que também usava para prevenir as autoridades em caso de aproximação do ex-marido ficou em choque.

Disse: «Estou outra vez à mercê dele».

Que se há-de dizer mais sobre as aberrações desta sinistra personagem jurídica?

O que fazer?

2.

As mulheres ganham menos 2464 euros por ano do que os homens.

O fosso salarial entre homens e mulheres tem vindo a diminuir, mas ainda chega aos 176 euros por mês. Na semana que passou entrou em vigor a lei que obriga as empresas a colocar os dois géneros em pé de igualdade.

3.

Este mês de Fevereiro, quase a despedir-se, trouxe a morte dos actores Albert Finney e Bruno Ganz, também do realizador Stanley Donner.


No dia 8, com 82 anos morreu o actor inglês Albert Finney, um actor por excelência.

Nunca recebeu um óscar.

Foi para o lado onde dormiu melhor.

Uma das suas últimas nomeações, melhor actor secundário, ocorreu com o seu papel de advogado em «Erin Brockovich» de Steven Soderbergh em que contracenou com Júlia Roberts.

Mas nunca se mostrou entusiasmado com as diversas nomeações.

Aliás nunca pôs os pés numa cerimónia dos óscares.

«Vivo em Londres, É uma viagem que demora muito tempo, para depois chegar a um a  festa longa e estar ali sentado seis horas sem poder fumar ou beber. Uma perda de tempo.».



Sobre a morte de Bruno Ganz, ocorrida no dia 16, o crítico João Lopes chamou a atenção para os obituários internacionais da morte do actor:

«Sugiro The New York Times, The Guardian e a BBC; ou ainda as duas “bíblias” da indústria audiovisual dos EUA, Variety e The Hollywood Reporter. Que há de comum em todas essas evocações da notável carreira de Ganz? Uma simples omissão: nenhuma delas cita o filme de Tanner.
Eis uma evidência difícil de aceitar, sobretudo se julgarmos que os lugares de estacionamento concedidos pela capital do país aos automóveis de Madonna nos colocam no centro do mundo...»

Gosto prticularmente de dois filmes protagonizados por Bruno Ganz:: «As Asas do Desejo» de Wim Wenders e «A Cidade Branca» de Alain Tanner. Hei-de procurar uns papéis velhos e trazer esses filmes até ao «O Q’ué que Vai no Piolho?»


Por fim, a morte de Stanley Donner, ocorrida do dia 23.


Nem que seja pelo simples facto de ao ver a chuva cair, de imediato surgir a vontade de cantar, seja lá o que for.

NA CASA DEFRONTE DE MIM


Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.


Nada! Não sei...
Um nada que dói...

Álvaro  de Campos em Poesias

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Sempre fui um descrente de mim mesmo. Mas sou um democrata e ao mesmo tempo um revolucionário radical.

António Ramos Rosa, entrevista ao Expresso, 11 de Novembro de 1988.

Legenda: António Ramos Rosa

O CARNAVAL VEM AÍ!


O Carnaval está a bater à porta.
Um olhar sereno pelos meus velhos bailes.
Alguém que me guarde a última dança.

OS GOVERNADORES


Do melhor dos governadores
o povo mal sabe que existe.
Ao que vem a seguir, ama e elogia.
Ao que a este suceder, teme.
E ao que ainda sobreviver, recrimina.

Quando aqueles não regulamentam a fé do povo,
Alguns acabam perdendo a fé neles
e nessa altura recorrem aos oráculos.
Porém, o melhor disto tudo é após os deveres cumpridos e as tarefas terminadas,
o povo inteiro observar: “Fomos nós que realizámos tudo sozinhos”.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

OLHAR AS CAPAS



As Mulheres de Messina

Elio Vittorini
Tradução: Nunes Martinho
Capa: João da Câmara Leme
Colecção Contemporânea nº 92
Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1966

Eu sei como pode imaginar este nosso país quem nunca o percorreu e dele conheça somente a sua alongada figura numa página do atlas; um planalto de secas terras avermelhadas entre dois mares que estão a ocidente e a oriente, árido, sem uma árvore, queimado pelos ventos e pelo hálito do sol, pelo hálito do sal; e assim é verdadeiramente nas grandes extensões, quando se sobe acima dos trezentos metros em viagem, entre uma e outra das suas cidades com torres e cúpulas, árido por grandes extensões, nu por grandes extensões, alto com terras avermelhadas entre Emília e Toscana ou entre Siracusa e Roma, tal como o deserto é o deserto entre um e outro dos seus oásis.
Ao longo do deserto os homens são viajantes, e do mesmo modo no nosso planalto
as gentes são nómadas, andam por aqui e por ali, pelo sul em direcção ao norte ou do norte em direcção ao sul em compridos comboios, donde se observa, permanecendo de pé três ou quatro dias de seguida, cinco de seguida, o que esta terra é em qualquer parte e que no seu todo se chama Itália, com lugares tão diferentes um dos outros como bari e Bolonha, Catanzaro e Génova.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

ESTAS MÚSICAS


No arquivo da Shorty encontrei esta fotografia de Billie Holiday, captada, em Fevereiro de 1947, por William Gottlied no Downbeat Club, em Nova Iorque.
Claro que nem palavras, nem fotografias, alguma vez conseguiram captar a genialidade, a permanente angústia de Bilie Holiday e da raça negra.
Apenas quando lhe ouvimos as canções descobrimos essa angústia e muito mais.
Como escreve José Duarte no prefácio de Lady Sings de Blues:
«Tema que Billie escolhesse, ficava cantada para sempre, esgotado, e até, por vezes, com novo significado e e melhor melodia».
É o caso desta «Strange Fruit», um libelo contra os linchamentos da minoria negra nos Estados Unidos, uma canção de protesto mas, acima de tudo, um gesto de pura arte.
«Árvores do sul produzem uma fruta estranha, sangue nas folhas e sangue nas raízes, corpos negros balançando na brisa do sul».

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

OLHAR AS CAPAS



Antimundos

Voznessenski

Versão e Prefácio de Armando da Silva Carvalho
Capa: Fernando Felgueiras
Cadernos de Poesia nº 12
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 1970

Fogo nas Belas-Artes

Há fogo nas Belas-Artes!
Nas aulas, nos desenhos,
como gritos de amnistia através das grades
nós gritamos: Fogo!

Na frente adormecida
impudica, insolente,
há uma janela a arder,
vermelha, chamejante!

Apresentámos já as nossa teses,
é agora a vez de as defender.
E debaixo dos pesos, nos armários,
são os meus trabalhos que crepitam!

Whatman – rasgado
num rubro cair de folhas!
Os meus projectos ardem
e ardem as cidades!

Alimentada a petróleo
a chama devorou cinco anos –
cinco Verões e cinco Invernos…
Karinotchka Kracilnikova,
repara como nós ardemos!

Adeus ó Belas-Artes!
Deixai arder à vontade
os presèpiozinhos com os seus amores
e todos esses céus de rococó!

Ó juventude, ave do paraíso,
ó ave louca,
o teu diploma transformou-se em chamas!

Agora é tempo de nos separarmos.
A vida – um punhado de cinzas.
Todos nós ardemos.
Ardemos porque estamos vivos.

E amanhã, nos dedos que desenhem,
uma abelha irá deixar o seu veneno:
a ponta de um compasso
em mãos cruéis.

… Mas tudo ardeu já completamente.
Entre suspiros.
Tudo acabou! E tudo recomeça!
E o melhor é imos ao cinema.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

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Naquela tarde de 14 Agosto de 1945, em Times Square, quando George Mendonza beijou Greta Zimmer,eu tinha nascido há 146 dias.
Naquela noite de 8 de Março de 1990, no Estádio da Luz, quando Vata meteu o golo com a mão ao Marselha, e levou o Glorioso à final da Taça do Campeões Europeus, eu tinha 45 anos.
A bola entrou na baliza norte onde eu, entalado na multidão, apenas vi a bola no fundo da rede. Valdo marcou o pontapé de canto e Vata foi lá com a mão. Numa entrevista à Antena 1, Março de 2010, insistiu que não foi com a mão mas com o ombro, mão de Deus, tal  como dissera Maradona naquele golo à Inglaterra no Mundial do México.
Bernard Tapie, presidente do Marselha, pessoa nada recomendável, disse antes do jogo da Luz, que se o Marselha não passasse à final, mudaria o nome para Bernardette.
Trafulha que é, não cumpriu a promessa.

O TORCIONÁRIO DO BEIJO ROUBADO


Uma noite, já longínqua e em lugar público, eu agarrei-me a um polícia, e ele a mim, aos pulos e abraços. Éramos adultos e a coisa completamente consensual mas, há que dizê-lo, estávamos a celebrar um crime. Então, não havia ainda o VAR e o crime ficou impune. Apesar disso, eu próprio me tenho encarregado de auto-denunciar a minha participação na tal prevaricação.
Isso foi, portanto, numa quarta-feira, 18 de abril de 1990. O meu conterrâneo Vata tinha acabado de cometer um golo com a mão, no jogo da Taça dos Campeões que levou o nosso Benfica a uma final europeia. Trago para aqui essa memória e não é por estar aguilhoado pelos remorsos. Não me penitencio. Assumo e explico-me: há momentos de júbilo em que os pecadilhos são perdoáveis.
Entre os abraços ao senhor agente (atenção, nunca houve beijo), vi mais gente nos mesmos preparos jubilatórios. Políticos de várias cores, cunhados que não se falavam nem no Natal (ali reunidos porque o sogro tinha lugares cativos), o pobre que se desunhou para comprar o bilhete na candonga e o administrador que fez o favor de só aceitar uma borla na bancada porque os camarotes estavam cheios... - quase todos em abraços apertados. Quero eu dizer, o meu crime de bancada era socialmente aceitável.
Assim, não o quero comparar com o crime hediondo ocorrido no dia 14 de agosto de 1945, na Times Square, Nova Iorque. Mas vou contar este por dever de atualidade. Ia Greta, com o seu vestido imaculado de enfermeira, sapatinhos e meias brancas também, e por ali andava Alfred, um fotógrafo com sua pequena Leica sem flash, como então tão pouco se usava. Havia um multidão, pois o Japão anunciou que ia render-se. Era o fim da II Guerra Mundial, 80 milhões de mortos, campos de concentração nazis e duas bombas atómicas - desculpem-me esses pormenores irrelevantes, quando estamos perante a coincidência de se encontrarem numa praça nova-iorquina a pureza da alva Greta e o Alfred tão sincero que não usava flash.
Eis que o marinheiro George assaltou esse momento diáfano! No meio da multidão, o marinheiro atacou violentamente a enfermeira Greta. Isto é, enlaçou-a (desculpem a brutalidade do termo) e beijou-a (desculpem, outra vez). O fotógrafo Alfred clicou e deixou para a eternidade o testemunho do horror. Veem-se na foto, à volta, homens e mulheres sorridentes - apesar da evidência do supremo mal tão próximo - parecendo mais interessados na minudência do fim da II Guerra, do que no crime ignóbil que assistiam. Ah, género humano, sempre tão distraído!
A foto, embora nunca exibida em nenhum museu do Mal (de Dachau ao Camboja), tornou-se famosa. Recentemente, procurou-se o marinheiro George e soube-se, para nossa vergonha nacional, que ele se chamava Mendonsa, filho de um Mendonça que emigrou. O marinheiro disse que tinha ido para a Times Square celebrar fim da guerra, até ia com a namorada, bebeu uns copitos, viu a enfermeira e pespegou-lhe um beijo à Hollywood.
 Logo no ano seguinte, Frank Sinatra e Gene Kelly, em Paixão de Marinheiro, iriam dar beijos iguais a raparigas, mas isso era Hollywood. Na vida real, em Times Square, na foto, vê-se o braço esquerdo da enfermeira, lânguido, sem estar agarrado, rendido, mas também o King Kong levou a rapariga para a Estátua da Liberdade e ela ia constrangida. Talvez a enfermeira Greta tivesse desmaiado pela violência do ataque inopinado. Quando também foi encontrada pelos jornalistas, muitas décadas depois, a enfermeira disse que o beijo não foi consensual, fora surpreendida pelo marinheiro.
Mas também contou que se chamava Greta Zimmer, fugida do seu país natal, Áustria, e refugiada nos Estados Unidos, em 1939. Quer dizer, naquele dia do fim de guerra, ela tinha motivos de júbilo. Mas não nos desviemos do essencial: a enfermeira foi atacada. O fotógrafo que publicou a foto na capa da revista Life chamava-se Alfred Eisenstaedt, era um judeu alemão, desde meados dos anos 30 refugiado na América. Naquele dia, na Times Square, também ele celebrava.
Mas porque insisto eu em falar de júbilo, quando 14 de agosto de 1945 foi o dia do horror?! Esta semana, aos 92 anos, morreu George Mendonsa, o torcionário do beijo, infelizmente sem nunca ter sido um daqueles velhos julgados como qualquer kapo de um campo de concentração nazi.

Ferreira Fernandes no Diário de Notícias on-line

OLHAR AS CAPAS

José Rodrigues Migueis: Lisboa em Manhattan


Coordenação de Onésimo Teotónio Almeida

Capa: José Antunes
Editorial Estampa, Lisboa, Setembro de 2001

Quando chegou aos Estados Unidos a primeira coisa que o ia matando foi quando descobriu que não havia cafés. Como é que podia viver sem um café onde encontrava os amigos, onde se sentava e levantava logo que se sentia desconfortável ou aborrecido, ou quando lhe surgia uma ideia e tinha de regressar a casa para a escrever? Como é que as pessoas podiam viver daquela forma? Isto foi um problema muito, muito difícil para ele, e eu sentia-me desanimada, porque não o podia resolver. Quando lhe disse o que tínhamos – restaurantes, cafetarias, balcões, vários locais -, ele disse: «Mas eu estou a falar de um café; tu não percebes.» E esta situação aborreceu-o a vida toda. Aborreceu-o mesmo.

De uma entrevista com Camila Miguéis, mulher de José Rodrigues Miguéis.

ANTES QUE SEJA TARDE


Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida. 

Manuel da Fonseca em Poemas Completos

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

OLHAR AS CAPAS



A Porta das Sete Chaves

Edgar Wallace
Tradução: Pedro Btuno Dischinger
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 88
Livros do Brasil, Lisboa s/d

A última incumbência confiada a Dick Martin – ele assim supunha – era a de capturar Lew Pheeney que a polícia suspeitava estar implicado no assalto ao Banco de Helborough. Dick descobriu Lew num pequeno «café» em Soho, no momento em que ele acabava de tomar uma bebida e se preparava para sair.
- Que há de novo, chefe? – perguntou Lew, esboçando um sorriso, ao mesmo tempo que pegava no chapéu e se dispunha a sair.
- O inspector deseja falar consigo, a respeito daquele «trabalhinho» de Helborough. Acompanhe-me.
Lew franziu o nariz, desdenhosamente.
- Vão para o inferno com essa história de Helborough! – exclamou, em tom de escárnio. – Não tenho nada que ver com esse «negócio» do Banco e julgava que o senhor o soubesse. Mas diga-me, chefe: por que está, ainda, na polícia? Disseram-me que o senhor tinha conseguido juntar algum dinheiro e pedira a demissão…
- Sim, é verdade. Vou retirar-me. E você, Lew, é o protagonista do último caso policial em que a minha actividade se exerce.

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Este poema de Joaquim Pessoa foi musicado por Carlos Mendes e faz parte do álbum
Canções de Ex-Cravo e Malviver editado em 1977.
Num outro, Amor Combate, editado em 1976, Carlos Mendes também musicou poemas de Joaquim Pessoa.
São dois discos de grande qualidade em vinil e que, lamentavelmente, nunca tiveram edição em CD.
Hoje, apenas os podemos encontrar, a preços exorbitantes, em lojas e, em leilão, em sites de vendas de iscos de vinil.
Nos respectivos anos de publicação, a crítica distingui-os como Melhor Álbum do Ano.

Arranjos e Direcção Musical de Pedro Osório.

LADO 1

Lisboa Meu Amor
Palavras
Cantar de Vivo para um Camarada Morto
Nocturno
Monólogo do Operário

LADO 2

Ruas de Lisboa
Balada do Medo
Canto Chão
No Silêncio da Espera
Amélia dos Olhos Doces

Produção de «Toma Lá Disco, SCARL»





LISBOA MEU AMOR



Lisboa tem um vestido azul feito de mar e guerra.
E cheira a laranjas maduras.
Quando as gaivotas trazem no bico os primeiros pedaços de sol para acender o dia, Lisboa deixa correr os cabelos pelo Tejo e o Povo pelas ruas.
À mesma hora, a coragem agita no sangue duas grandes asas inquietas.
Por todas as janelas destruídas, já o mar entrou, derrubando acácias cantando hinos de espuma.
E porque toda a coragem é necessária, toda a esperança é legítima.

Chamar-te a ti, Lisboa, camarada,
e depois, eu sei lá, enlouquecer.
Que a loucura é quase um grão de nada
e tu tens um nome de mulher.
Ou dizer que és a minha namorada.
Devagar. Não vá alguém saber
que fizemos amor de madrugada
e tu trazes um filho por nascer.
Se eu inventar de noite a liberdade
de poder beijar-te os olhos e morrer,
no teu ventre não há fado nem saudade
mas apenas os filhos que eu fizer.
E pode ser que eu guarde a tempestade
de ter que aqui ficar. E então dizer
que sobre a minha boca ninguém há-de
pôr rosas de silêncio, se eu quiser.

Joaquim Pessoa

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

GUITARRA


Punhal de prata já eras, 
punhal de prata! 
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata. 

Vi-te brilhar entre as pedras, 
punhal de prata! 
- no cabo,flores abertas, 
no gume, a medida exacta, 

a exacta, a medida certa, 
punhal de prata, 
para atravessar-me o peito 
com uma letra e uma data. 

A maior pena que eu tenho, 
punhal de prata, 
não é de me ver morrendo, 
mas de saber quem me mata.

Cecília Meireles em Antologia Poética

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Hora Di Bai

Manuel Ferreira
Capa: João da Câmara Leme
Colecção O Livro de Bolso nº 52/53
Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1963

Naquele tempo de fome a ilha de São Vicente era o porto de salvamento.
Empurrados do interior, os povos vieram arrastando-se para o litoral, até junto do mar, na esperança de uma mandioquinha, na ânsia de um caldinho de peixe – que luxo! – de uma cana para chupar, ou até de folhas verdes para mastigar. Qualquer coisa que lhes desse, ao menos, a ilusão de alimento. Mas nas povoações da beira-mar, mesmo nas terras maiores, os haveres tinham sido também arrastados nos ventos da miséria. Nem a sopa da assistência evitava que a carroça da Câmara, no alvor da madrugada, levasse os que haviam tombado, de noite, na rua, inteiriçados e frios. Nem a sopa da assistência o evitava, bem se pode dizer, pois as bocas famintas, senhor, eram às dezenas de milhar.
Um pesadelo perpassava pelas localidades e casalejos ribeirinhos, de ponta a ponta, e galgava pela amarelidão da terra nua e requeimada.
Dondê aquelas bananeiras verdinhas de cachos pendidos em arco ao rés-do-chão? Dondê aqueles pés de papaia carregadinhos, e aquelas batatas-doces, e aquela mandioca, aquele nhame, e aquelas laranjas, a água a crescer na boca!, e aquele milho cobrindo os sequeiros e os regadios, dando a fartura da gente e dos animais?! Nem ervas, nem uma raiz a despontar, nem um rebento a asseverar que a vida não era promessa vã, nessas ilhas desgarradas no meio do mar!
Dondê aquelas casas, o movimento da tardinha? Dondê aquele falatório dos homens, os chamos das mães pelos filhos que andavam correndo pelas ribeiras? Gente, donde?! Lá no interior, casas intactas, nem uma só! Fantasmas solitários na paisagem descarnada.
A maldição varrera a ilha. A maldição da estiagem. A maldição da fome.
Nada bulia a não ser os revérberos do Sol na distância.
Que silêncio!
Nem pio de ave. Nem grito de dor ou ciclo de tristeza feria tamanha solidão. Até a morna, drama feito canção, se diluíra no silêncio da dor. Os sobreviventes dessa fúria ciclónica – que eram? Destroços de angústia, restos de vida absurda e degradada, onde remotas esperanças, desencantadas dum estado de morbidez, se desprendiam teimosamente lá do fundo do inconsciente, na terrível ânsia de viver.
Fogo, tristeza, abandono de fim-de-mundo. Só, na terra nua e bem amada!

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O poema Meu Limão de Amargura faz parte de um dos mais brilhantes trabalhos da discografia portuguesa.

AMÁLIA CANTA POETAS DE LÍNGUA PORTUGUESA NA MÚSICA DE ALAIN OULMAN

Os poetas:
Cecília Meireles
David Mourão-Ferreira
Manuel Alegre
Luís de Camões
António de Sousa
Alexandre O’Neill
Pedro Homem de Melo
José Carlos Ary dos Santos

Música:
Alain Oulman

Gravado nas noites de 7 e 8 de Janeiro de 1969.

Editado em Março de 1970.

MEU LIMÃO DE AMARGURA


Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.

José Carlos Ary dos Santos

domingo, 17 de fevereiro de 2019

ETECETERA


O poeta e professor universitário Manuel Gusmão recebeu a Medalha de Mérito Cultural como reconhecimento do Governo português.

Discurso de Graça Fonseca, Ministra da Cultura:

«Há conjugações perfeitas como esta, de estar aqui neste lugar quase mágico, quase ficção, que é a Biblioteca do Palácio da Ajuda e prestar homenagem a um poeta e ensaísta como Manuel Gusmão, que certamente não levará a mal que o caracterize também como uma biblioteca, tanto de si mesmo, como de nós enquanto linguagem e poesia. Mas há também lugares ingratos e um deles é encerrar esta cerimónia e colocar as minhas palavras depois das de Manuel Gusmão, tão bem e tão musicalmente lidas por Fernanda Lapa e Ana Gusmão. O que me cumpre, assim postas as coisas, é reconhecer o óbvio e declarar esta medalha como aquilo que ela pode representar face a um autor como Manuel Gusmão. Ela não vem afirmar o mérito cultural de um poeta em que os séculos de tradição são convocados para criar um depoimento singular e incisivo sobre os dois séculos em que viveu. O mesmo sobre um professor e ensaísta lúcido, dedicado e que criou, nos seus textos, formas e pontes de leitura dos grandes autores da poesia portuguesa do século XX, muitos deles seus pares e contemporâneos, como Herberto Helder e Carlos de Oliveira. Se as palavras pouco podem, quanto mais as medalhas. Prefiro, a tudo isto, olhar para esta medalha como uma homenagem ao poeta Manuel Gusmão e, através dos seus textos, à grande literatura portuguesa do século XX e aos seus pares, a José Gomes Ferreira, a Carlos de Oliveira, a Nuno Bragança, a José Cardoso Pires, entre tantos outros. Digo-o porque tanto enquanto autor, como crítico ou investigador, o diálogo fez parte da forma poética de Manuel Gusmão, na procura de beleza como uma exultação comunicável e partilhável. Termino evocando uma poderosa associação de conceitos que Manuel Gusmão utilizou para dar título a um dos seus livros de ensaios: tatuagem e palimpsesto. Esta condição paradoxal de permanência e reescrita, de perenidade e reutilização, que não deixa de ser testemunhada por estas estantes que nos rodeiam, parece-me encerrar muito do percurso poético, autoral e pessoal que hoje homenageamos. O que me resta é, agora, reconhecer tudo isto e agradecer a Manuel Gusmão por dignificar, com o seu nome, este mérito cultural que não se reconhece, mas que se diz, tal como a poesia, até contra as evidências. Somos todos, por assim dizer, bibliotecas, mas uns têm a sorte de dedicar toda uma vida à Biblioteca, agora com maiúscula».

Um poema de Manuel Gusmão:

E o que te diz ela a ti … essa canção
que só pode ser ouvida por quem
na sua própria voz cantando a escuta?
– Nada lhe peço que me diga Apenas
que venha que continue a chegar
até mim com a sua morte a viver
oferecida viva e sem remédio.
E há então… uma tal soturna idade
uma tão violenta doçura… agora
que para sempre… por momentos
adia o meu morrer.

QUOTIDIANOS

1.

O nível cultural, intelectual da maioria dos nossos juízes não se recomenda.

Também podemos sobre Direito, duvidar do que andaram eles a aprender na Faculdade.

Há dezenas de casos de péssimas atitudes e decisões de juízes, mas peguemos nesta.

Uma advertência registada foi a pena disciplinar aplicada a Neto de Moura, juiz do Tribunal da Relação do Porto que desvalorizou uma agressão grave praticada pelo marido contra a “mulher adúltera”, num acórdão de Outubro de 2017.

O Conselho Superior da Magistratura determinou essa pena disciplinar com apenas quatro votos, tendo sido necessário ao presidente usar o voto de qualidade. Outros quatro membros do conselho defenderam a aplicação de uma pena de multa e os sete que votaram a favor do arquivamento do caso optaram pela abstenção. Numa anterior decisão igualmente controversa – oito votos a favor e sete contra - o órgão de tutela dos juízes recusou arquivar o caso, como sugeria o conselheiro que analisou o processo.


Recorde-se que o citado juiz nos dois acórdãos de 2017 que fundamentaram a abertura do processo disciplinar de que foi alvo (foram detectadas outras decisões do mesmo autor, mais antigas, com argumentações semelhantes, mas a responsabilidade disciplinar por aquelas já havia prescrito), o juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto apelida as vítimas de adúlteras, mentirosas, falsas e desleais, cita a Bíblia, invoca costumes religiosos e tradições que as punem com a morte ou normas legais de antanho que permitiam aos maridos o direito de as matar.

O advogado do desembargador Neto de Moura diz que o juiz irá recorrer da advertência para o Supremo Tribunal de Justiça.

2.

O que se vai conhecendo sobre  a gestão dos diversos Conselhos de Gerência da Caixa Geral de Depósitos, são uma vergonha,

Luís Marques no Expresso:

É TÃO FÁCIL DIZER...


É tão fácil dizer que saem dos olhos das mulheres andorinhas verdes
ou chamar à lua a caveira voada da flâmula dum navio pirata!

Mas a poesia - onde está?

A poesia que transforma de repente a música em lâmina
para romper a noite até à solidão dos archotes
que escurecem mais e mais
este abismo absurdo
sem astros de céu vivo
onde as pedras apodrecem
e as andorinhas verdes não saem dos olhos das mulheres?

Mas a outra poesia - onde está?

Essa esperança convicta
de teimar na certeza do nada
com explicações
de papoilas
e esqueletos a abraçarem-se
no amor final já sem sentido de bandeiras?

Sim. Onde está?

Que palavra abre
para além da luz secreta
que os dedos dos mortos acendem no perfume das flores?

Sim. Onde está?

- Poesia de rasgar pedras.
Poesia da solidão vencida.
Poesia das pombas assassinadas.
Poesia dos homens sem morte.

José Gomes Ferreira em Poesia III

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

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Neste excerto decarta, António Ramos Rosa refere-se aos sonetos de Jorge de Sena publicados em As Evidências de 1955.

Ramos Rosa copiou à mão todos os sonetos que Jorge de Sena lhes emprestara.

Ramos Rosa ficou deslumbrado com a leitura desses sonetos.

«Perdoe-me o que haja nesta de redundante, mas não duvide do meu entusiasmo nem da certeza, que também é profundamente minha, de que os seus sonetos são uma grande coisa (uma grande e bela coisa!).»

Jorge de Sena escreveu a Ramos Rosa:

«Devo-lhe, de facto, muitos agradecimentos: por V. ser capaz de entusiasmo, por se ter entusiasmado com os sonetos, por mo ter dito, por mo ter dito directamente e tão bem.
Guarde para si essa cópia que lhe mandei – e devolva-me só a primeira página ou a que quiser, para eu inscrever uma dedicatória.»

É este o Soneto XXI que tanta alegria e deleite deu a António Ramos Rosa:

XXI

Cendrada luz enegrecendo o dia,
tão pálida nos longes dos telhados!
Para escrever mal vejo, e todavia
a dor libérrima que a mão me guia
essa me vê, conforta meus cuidados.

Ao fim terrível que me espera extenso,
nenhum conforto poderei pedir.
Da liberdade o desdobrado lenço
meu rosto cobrirá. Nem sei se penso
ou pensarei quando de mim fugir.

Perdem-se as letras. Noite, meu amor,
ó minha vida, eu nunca disse nada.
Por nós, por ti, por mim, falou a dor.
E a dor é evidente – libertada.

Legenda: capa de As Evidências de Jorge de Sena tirada da Loja Frenesi

E AINDA SE FALA DA INUTILIDADE DA POESIA!

Carta, datada de 6 de Outubro de 1954, de António Ramos Rosa para Jorge de Sena:

Grato pelo seu telegrama. Mas eu nem de longe lhe disse tudo o que devia, com mais acerto e não menor entusiasmo. Para que V. colha alguns merecidos frutos, ainda que como supérfluo excedente à alegria criadora, noticio-lhe que ainda há dias As Evidências fizeram uma tarde a mim e ao Dr. Emiliano, a quem lhe faleceu a mulher há menos de quinze dias. Era a primeira vez que me encontrava com ele, após o evento e, não fossem os sonetos, eu não saberia como preencher os inevitáveis silêncios destas ocasiões. Tudo se passou admiravelmente, lendo eu os 21 sonetos e ouvindo ele com grande admiração. E ainda se fala da inutilidade da poesia! Olhe, este é um facto que merece consideração, pois que outra coisa lhe faria a ele passar as primeiras horas de verdadeiro deleite depois de um fatalidade tão grande? Não sei se V. se zanga comigo pela propaganda que lhe faço, não vá roubar-lhe alguns exemplares de venda… mas a verdade é que toda a gente, mesmo até as pessoas «suspeitas», têm gostado
Deixe-me também ter o gosto de lhe assinalar alguns sonetos que parece não referi na outra carta. O XIV e o XV, o XVIII e o XIX e finalmente o admirável XXI.

Em Correspondência.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

A FLOR DA SOLIDÃO


Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos .

Ruy Belo

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

EM QUEDA


Por mais que Umberto Eco nos tenha assegurado em variadíssimas entrevistas que o livro nunca vai morrer, a verdade é que todos os dias me convenço mais de que, se as coisas não mudarem muito depressa em relação ao excesso de atenção dada por jovens e adultos aos dispositivos digitais, a leitura a sério (não só em papel, mas em profundidade, com as sinapses todas a funcionar) tem os dias contados (excepto para a pequena minoria que não desiste, e ainda bem). Depois de, na altura da Feira do Livro de Lisboa, uma agente literária alemã me ter dito que a Alemanha (a Alemanha?) perdeu seis milhões de leitores em quatro anos, ouço agora um testemunho do professor responsável pelo mestrado em Edição na Sorbonne num podcast do site da revista profissional Livres Hebdo e fico de boca aberta: a França teve a sua maior queda de vendas de livros dos últimos dez anos – 45 milhões de exemplares em 2018 contra 54 milhões em 2017. A França, que foi sempre o símbolo do país livre e educado a que aspirávamos (sobretudo, antes do 25 de Abril) está em declínio há já muitos anos (por isso já tão pouca gente aprende francês), mas os resultados da Frente Nacional de Marine Le Pen de há uns tempos para cá e as mais recentes manifestações dos coletes amarelos mostram bem que as coisas vão pior do que gostaríamos. E, sem leitura, a tendência é mesmo para bater no fundo…

Maria do Rosário Pedreira em Horas Extraordinárias.

Legenda: fotograma de Fahrenheit 451, de François Truffaut.

OLHAR AS CAPAS



O Mistério da Laranja Chinesa

Ellery Queen
Tradução: James Amado
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 32
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Então isso não tinha importância alguma? Eu estava a contar com algo de engenhoso…
- Nada significava, excepto que o homenzinho sentia fome – continuou Ellery, lentamente. – Nem sequer pude deduzir qualquer coisa do facto de ter escolhido uma tangerina em vez de uma pera, uma maçã ou qualquer das outras peças de fruta que estavam na bandeja. Eu também gosto de tangerinas e, no entanto, Chicago é o lugar mais próximo da China onde eu já estive… Mas, há uma coisa acerca da tangerina que é… bem, que é interessante.
- O que é? – perguntou Kirk, interessado.
- Ela ilustra – disse Ellery rindo – os caprichos e a ironia do destino. Porque, como vêem, embora a laranja da China que a vítima comeu nada tivesse a ver com o crime, o «Laranja da China» que ele trouxe estava intimamente ligado ao caso, pois foi o móbil do crime.
- O laranjo que ele trouxe? Murmurou Miss Temple, intrigada.
- Com um L maiúsculo – disse Ellery. Refiro-me ao selo. Na verdade é uma coincidência tão interessante que, se eu algum dia escrever um livro sobre o notável caso do pobre Osborne, não resistirei á tentação de o intitular: O Mistério da Laranja Chinesa.

ENCONTRO NO INVERNO COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES



Com as aves aprende-se a morrer.
Também o frio de janeiro 
enredado nos ramos não ensina outra coisa
- dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais de sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.

 Eugénio de Andrade

Legenda: Eugénio de Andtrade