sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA


Continuamos às voltas com O Crocodilo Que Voa onde estão reunidas entrevistas concedidas por Luiz Pacheco a diversos jornais e revistas.
Depois da entrevista conduzida por João Pedro George, chegamos a uma outra boa entrevista. Foi conduzida por Rodrigues da Silva e publicada no JL 30 de Agosto/13 de Setembro de 2005 - «Um Diário Inteiramente Livre»
Não faz parte do livro que reúne as ebtrevistas, mas reproduzimos a abertura que Rodrigues da Silva escreveu para apresentação da entrevista: 

«É um diário sem paralelo na literatura portuguesa porque não foi escrito para ser publicado. Aliás, boa parte dele perdeu-se ou anda perdida, nem Luiz Pacheco, o seu autor, sabe por onde. De qualquer modo, o Diário Remendado, que, com posfácio de João Pedro George, a Dom Quixote vai lançar na primeira semana de Setembro vai de 1 de Novembro de 1971 a 12 de Dezembro de 1975, vivia Pacheco em Massamá. Agora, com 80 anos feitos em Maio, vive num lar de idosos, onde o JL o foi encontrar. Para redescobrir o mesmo Pacheco de sempre. Um homem vertical, que, a despeito da velhice e da decadência física, não é habitado pela menor amargura, antes mantém inalterável o seu proverbial humor mordaz e a sua constante auto-ironia.
Conheço-o vai para 50 anos, devo-lhe muito (como todos aqueles a quem o Pacheco, em finais de 50, «impingiu» edições quase clandestinas dos primeiros livros do Herberto e do Cesariny, autores em que, salvo ele, nenhum editor apostava), e o Luiz Pacheco está igual. Não, não está. Fez em Maio 80 anos, já não edita livros, já não isto, já não aquilo, nem já bebe, o Pacheco. Mas é o mesmo. O mesmo tipo que, aos 20 anos, optou por um modo de vida e assumiu-o, nunca disso se queixando. Se a liberdade tem como contraponto a responsabilidade, Luiz Pacheco é disso um paradigma. Porque jamais lhe ouvi um lamento. E, sempre mordaz, jamais também o vi invejar fosse quem fosse. Uma tarde desta reencontrei-o num lar de idosos, ali ao Príncipe Real. Ouve mal, vê muito pouco, já não consegue ler, nem escrever, tão-pouco distingue sequer a comida no prato; usa fraldas, habita um quarto despido de quase tudo, está ligado ao mundo por um telemóvel e pela rádio, mas fartámo-nos de rir os dois com as piadas dele, porque o Pacheco continua possuído de um humor e de uma ironia absolutamente invejáveis. Muito do que me disse não é possível publicar-se numa entrevista, mas o que a seguir se poderá ler dá o tom. O tom de um homem que soube aceitar a velhice e (por que não dizê-lo?) a decadência física com essa imensa nobreza que se chama sabedoria. Por isso, quando lhe perguntei pela morte, o Pacheco disse que sim, advertindo, porém: «Não quero que ela me apanhe a dormir. Quero vê-la chegar».

E a entrevista começa assim:

«Como é que te sentes aos 80 anos, tu que dizias que não passavas dos 40, dos 50, dos 60 e por aí fora?

Olha, passei.

Como é que passas o tempo aqui?

Aqui!? Tu já foste ali à sala de espera? Nem vás. Aqui não há pessoas. Há moribundos a imitar pessoas. Um gajo não vem para aqui para se curar ou melhorar. Vem… Eu farto-me de rir quando me falam de qualidade de vida. De vida? Aqui! Farto-me de rir. Mas não estou mal. No Natal passado vieram aí uns tipos visitar-me e deram-me um leitor de CD e um rádio. É com isso que me entretenho. E com o telemóvel, que é uma boa coisa. Televisão não vejo, ouço, para não me deixar isolar demasiado.

Ainda lês?

Não. Cada dia vejo pior. Pedi-te para me trazeres uns JL mas só leio os títulos. E também ouço mal. Há dias, a miúda da cozinha bateu-me à porta a dizer que o almoço era arroz de pombo. Pensei: «De pombo! Devem ter morto os pombos todos do jardim». Afinal não era arroz de pombo, era arroz de polvo, porra. Devo ter ouvido mal, mas só percebi quando meti o garfo à boca. É que também já não vejo o que está no prato. Um gajo vai perdendo isto, depois aquilo… Foder não é indispensável. Deixar de ver e de ouvir é que é pior, mas cá me aguento. O instinto de sobrevivência é muito forte.

Como é que passas o tempo aqui?

Aqui!? Tu já foste ali à sala de espera? Nem vás. Aqui não há pessoas. Há moribundos a imitar pessoas. Um gajo não vem para aqui para se curar ou melhorar. Vem… Eu farto-me de rir quando me falam de qualidade de vida. De vida? Aqui! Farto-me de rir. Mas não estou mal. No Natal passado vieram aí uns tipos visitar-me e deram-me um leitor de CD e um rádio. É com isso que me entretenho. E com o telemóvel, que é uma boa coisa. Televisão não vejo, ouço, para não me deixar isolar demasiado.

Ainda lês?

Não. Cada dia vejo pior. Pedi-te para me trazeres uns JL mas só leio os títulos. E também ouço mal. Há dias, a miúda da cozinha bateu-me à porta a dizer que o almoço era arroz de pombo. Pensei: «De pombo! Devem ter morto os pombos todos do jardim». Afinal não era arroz de pombo, era arroz de polvo, porra. Devo ter ouvido mal, mas só percebi quando meti o garfo à boca. É que também já não vejo o que está no prato. Um gajo vai perdendo isto, depois aquilo… Foder não é indispensável. Deixar de ver e de ouvir é que é pior, mas cá me aguento. O instinto de sobrevivência é muito forte.»

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