quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

QUERO VÊ-LA CHEGAR



«Mas não estás com mau aspecto.

Eu nunca esperei acabar nisto.


Nisto, como?

Eh pá: com criadas, auxiliares, assistência médica. Fazem-me a cama, limpam-me o quarto.

Não te sentes sozinho?

Não. Tenho uma memória muito razoável. Já não posso ler, já não posso escrever, de modo que repiso o que vivi. Depois há malta que vem cá e me conta umas coisas de que eu já não me lembrava.

Não escreves, mas podias ditar para um gravador.

Eu cheguei a ter um Diário Falado, gravado para as cassetes.

E onde é que estão essas cassetes?

Algumas deve-as ter o Paulo. Outras perdi-as nas pensões, nos sanatórios, por aí… Um diário, escrito ou falado, torna-se um vício, uma espécie de dependência. Mas depois também passa.


Ouve lá: quais os escritores portugueses actuais que pensas que serão lidos daqui a 50 anos?

Os que vierem nos programas escolares. Achas que os putos agora lêem A Sibila? É uma maravilha aquele livro, mas que miúdos urbanos de hoje é que vão ler aquilo? O Pessoa perdura, de certeza. Não sei se o Saramago e o António Lobo Antunes têm tomates para continuar. Não faço ideia do Herberto. Esse é diferente, é poesia, mas a prosa dele também é muito boa. Mas quem é que lê hoje Os Passos em Volta?

Muita gente, e jovem.

Ai é!? O Herberto é muito complexo. Não será o nosso maior poeta, mas é muito bom.»

Pensas na morte?

Penso, mas não quero que ela me apanhe a dormir. Quero vê-la chegar.

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