segunda-feira, 30 de novembro de 2020

FERRO


É óbvio que podia deixar de respirar,

fechar os pulmões como os portões da avó

para o Fequinha Meu não sujar os lencóis.

Porque é isso, quando respiro sujo uma espécie

de pureza que me pensava destinada,

dou mais uma colherada na infelicidade

que todos os meus antepassados ferveram para mim.

Sei que é uma visão doentia,

mas penso em todas as vezes que se foram deitando

por amor, por fastio, por falta de luz,

até eu nascer nas camas de ferro.

A memória tem esses risos, essas lágrimas

dos tempos em que as lareiras faziam sentido

e subiam pelas paredes à sombra nocturna da janela.

O meu corpo é essa memória e um tanto de futuro.

Talvez amanhã feche os portões do meloal

 e me estenda sobre a última alegria da aldeia,

veja o avô e a avó a fiarem-se as mãos

e me demore no pêlo dourado do cão

que, como todos nós, chorou porque viu

a ternura erguer a casa de todas as manhãs.

É óbvio que será esse o ar das minhas últimas palavras.

 

Ana Salomé em Resumo: a poesia em 2009

domingo, 29 de novembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

A BOLA

 

Em 29 de Janeiro de 1945, Cândido de Oliveira fundou o jornal A Bola.

Já lhe chamaram, Bíblia, também o Avante da Travessa da Queimada.

O jornalismo de sarjeta que por aí se faz, também atacou o jornal. 

Desaparecidos os jornalistas, notáveis cronistas, diga-se, que lhe deram glamour, hoje não passa de um produto amorfo, sem qualquer ponta de brilho, que aposta no sensacionalismo para vender papel.

 A Bola tem a minha idade e poderei dizer que foi no jornal do Cândido, como o meu avô lhe chamava, que soletrei as primeiras letras e, sem exagero, gosto de dizer que aprendi a ler com A Bola.

Quando o jornal fez 43 anos, convidou algumas personalidades para se pronunciarem sobre a efeméride. O cineasta João César Monteiro foi uma dessas personalidades:

 «Se não estou em erro, sou ledor de “A Bola” há mais de trinta anos. Do tempo em que era quase afrontoso ser visto com “ela” debaixo do braço e nem sempre se ousava confessar o pecadilho que era gostar de a ler. Para restituir a boa consciência a esse perverso apetite, criou-se um álibi curioso. “A Bola” passou a ser, antes do mais, um modelo de virtudes prosódicas, uma escola de bem escrever jornalístico. Com alguma razão, diga-se, se fecharmos piedosamente os olhos a certas piroseiras metafóricas que, de onde em onde, ensombram com a má literatura o bom jornalismo.
Para ser franco e sem cair no pretensiosismo de ter mais em que pensar, nunca pensei muito n’”A Bola”. Passo os olhos por ela, deixo-a deliberadamente na mesa do café, encontro-lhe utilidades culinárias para embrulhar tachos com arroz ou para absorver o óleo dos carapaus fritos. Numa ou noutra aflição, já me tem valido, com todos os inconvenientes de estampagem de aí decorrente. Nada de grave: conheço letrados bem piores.»


A Bola
 que hoje corre por aí, com o mesmo nome, não tem nada a ver com o jornal do Cândido.

Foi, até certa altura, um jornal bem feito, interessante mas não ao ponto de, com uma grande dose de exagero e injustiça, Carlos Pinhão ter afirmado, em pleno salazarismo/marcelismo, que «o jornalismo desportivo era o melhor jornalismo português». Carlos Pinhão esquecia-se (?) que A Bola não ia à Comissão de Censura. Os outros, seus camaradas de profissão tinham de escrever nas entrelinhas para tentarem fazer um jornalismo minimamente honesto.

À velha A Bola devo o facto de Ruy Belo ser um poeta do meu panteão.

O meu conhecimento com Ruy Belo não começou nem pelos livros, nem pelos poemas, mas por uns artigos sobre futebol que, nos idos de 1972, publicou em A Bola. 

Gostei tanto desses artigos que me interessei logo na procura de coisas acerca de Ruy Belo. 

Acabei a comprar-lhe os livros. O primeiro foi Homem de Palavra(s), uma capa azul, um belo livro. 

Lembrar Herberto Helder: «mais do que dizer que gostei dos livros de Ruy Belo, gostaria de escrever que os acho fundamentais».

 

Texto publicado em 29 de Outubro de 2011

sábado, 28 de novembro de 2020

POSTAIS SEM SELO

 Certos espíritos são comboios tão rápidos que não temos tempo de ver que estão vazios. É preciso fazer para o comboio.

Gonçalo M. Tavares.

Legenda: pintura de Edward Hopper

UM LUGAR MÁGICO


 Na Foz do Arelho há ilhas que aparecem e desaparecem. Por isso é um lugar mágico. As ilhas intermitentes. Desaparecem com a maré. Praticam apneia durante seis horas e desfrutam dos encantos do fundo do mar. Ao sair, voltam a respirar e embebedam-se de sol.

Claudio Hochman em Ilhas

Legenda: fotografia de Luís Eme

ANTOLOGIA DO CAIS


 Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

RIBADOURO


Para mim, a Ribadouro, esquina do fundo da Rua do Salitre com a Avª da Liberdade, está sempre agarrada ao Belarmino, filme do Fernando Lopes, ali pensado, escrito, encenado, discutido.

Também conhecida pela Universidade do Tremoço.

O José Cardoso Pires em A Balada da Praia dos Cães:

O chá na cervejaria Ribadouro: Isto não é uma cervejaria, é uma baía de cascas de tremoços com canecas à deriva. Chulos do Parque Mayer a atacarem o fastio na perna da boa santola, chauffeurs de praça a combinarem a sua bandeirada de jogo num casino clandestino para os lados de Arroios ou para Campolide que são bancas de entendidos por onde a polícia faz que não vê. Um galador de coristas a puxar fumaças à distância. A dono Lurdes abortadeira. Mestres-de-obras a arrrotar! Oh, senhores.

Quantos finos, quantos bifes com ovo a cavalo, quantas conversas pela noite dentro, a esperança vã de mandar Salazar borda fora.

O que ainda tivemos de esperar!...

Hoje, a Ribadouro está mais voltada para os turistas, para uma classe específica,  gente que encheu os bolsos de dinheiro para, nos tempos que correm, nos acusarem de que andámos a viver acima das nossas possibilidades.

Já não anda por lá a malta do Parque Mayer, gente do jazz, das escritas, dos jornais e onde pontificava o clã da Ribadouro.

Assim de memória, alguma da rapaziada desse clã: Fernando Lopes, Canto e Castro, Manuel de Azevedo, Baptista-Bastos, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires, Alexandre Vieira, Carlos de Oliveira, rapazes, outros já entradotes, que, no fundo, só queriam assaltar a felicidade, felicidade que, como dizia o Saint-Just, era possível.

Esperanças, sonhos, amores, desamores, frustrações, andaram por aquelas  mesas, juntamente com cervejas, tremoços, cafés, o que calhava.

Não consigo passar junto à Ribadouro, sem que os passos se encaminhem para o balcão, beber um copo de cerveja clara, Sagres, naturalmente, olhar as mesas, agora atoalhadas para turistas e gente fina, e sentir o rumor das conversas, não deixando de seguir os ditames do José Gomes Ferreira:

Saudades de não poder inventar o futuro. Às mais variadas horas, desde as sete da manhã até ao fim da tarde.


Texto publicado em 23 de Setembro de 2013

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

OLHARES

Uma fotografia tem sempre o encanto de se saber o que ela nos mostra. Passam os anos e cada vez que a vemos, sabemos que nos mostra uma coisa diferente.

Será assim?

Marilyn Monroe, em Los Angeles, 2 de Setembro de 1953, de pulôver e uma caneca de café na mão.

 Belíssima fotografia da autoria de Milton Greene para a revista Look, retirada do arquivo da Shorpy.

Marilyn Monroe morreu em 5 de Agosto de 1962, uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha ou suspeitou que tinha errado a vida, para citar o belíssimo poema de Ruy Belo sobre a morte de Marilyn, um telefone que tocou em busca de ajuda, que alguém ouviu, sabia quem era, mas não quis atender. 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

MAS CERTAMENTE AS COISAS VÃO MUDAR

Estamos a 16 de Março de 1936. Do lado leste do grande edifício palaciano que é a Stowe School, gralhas fazem grande rebuliço nos castanheiros, água pinga do telhado do bloco de salas onde em tempos eram os estábulos e, no seu interior, Mr. White, o Director de Departamento de Inglês, com mantas amontoadas sobre as pernas, equilibra um caderno nos joelhos e escreve depressa, numa caligrafia pequena e nítida. Pergunta-se se aquele será o livro mais importante que já escreveu. Não por lhe permitir fazer fortuna. Mas porque o irá salvar.

Pensa em deixar a escola. A vida académica é irreal. Está farto. Não suporta os colegas. Também já não suporta os rapazes; em massa, acha-os horríveis, como um cardume de hadoques. Tem de se ir embora dali. Vai viver da escrita. O seu último livro vendeu-se bem. Irá escrever mais. Vai arranjar uma casinha na Escócia e passar os dias a pescar salmão. Talvez leve consigo a empregada do bar e case com ele, com essa beldade de olhos escuros a quem a fazer a corte há meses, embora até ver só esteja apaixonado por ele emocionalmente, ainda não chegou a parte nenhuma, na verdade, e a maior parte das vezes aquelas longas horas sentado no bar só lhe trouxeram um estado inútil de embriaguez. Bebe demais. Já bebeu muito e há muito tempo que é infeliz. Mas certamente as coisas vão mudar.

Helen Macdonald em A de Açor

Legenda: fotografia Shorpy

OLHAR AS CAPAS


 Tragédia em 3 Actos


Agatha Christie

Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 295

Livros do Brasil, Lisboa s/d


Mr. Satterthwaite pareceu mais animado. Mas, de repente, teve uma ideia que o assustou:

- Meu Deus, só agora tenho bem consciência do que se passou! Aquele patife e o seu cocktail envenenado! Qualquer pessoa o podia ter bebido… Podia ter sido eu!

- Há uma possibilidade ainda mais terrível, que o senhor não considerou…

- Qual?

- Podia ter sido EU! – exclamou Hercule Poirot

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

PALAVRAS E CANÇÕES PARA UM DIA NÃO

«Algures, numa dobra da história, alguma coisa falhou, algum erro se cometeu. Seria altura de saber, onde, como, porquê. Mas talvez seja demasiado tarde…»

Rodrigues da Silva, jornalista


«O 25 de Novembro não é para celebrar.

Porque não foi um acto de alegria, foi

um acto de necessidade. Para os melhores,

dolorosa, para os piores, maligna.

Proponho a esta assembleia de povos um

dia de silêncio em honra da fala

portuguesa sem ódio. Que não viva a morte.»

Maria Velho da Costa

«E aí volto àquela noite, que volto a não ter pejo de achar que não é para celebrar. Alguns anos volvidos, pergunto-me à esquerda também moderada, terá sido um acto legítimo a interrupção do galhofeiramente nomeado PREC? Terá valido a pena, a não conciliação dentro daquele terreno, que, fosse para onde fosse, não deixava de galvanizar grandes massas de trabalhadores, muitos intelectuais, muita gente honesta hoje marginalizada? Porque não é mais possível, na memória comovida ou irritada de todos nós,  dizer que o que estava sendo era instrumentalizado por Moscovo.

Maria Velho da Costa em Mapa Cor de Rosa

«Foram longe de mais. Nem um mês, nem um ano, nem um século decorrerão sem que vos roa um a um as entranhas e pague com a pior peste a ousadia de cercar-me à traição, de limitar-me a voz, os acessos, a vida. Pela voz de todos os que aqui feneceram de excessos e ardores, os meus poetas, os meus desmesurados de sempre, os meus cidadãos da aventura, os grandes viajantes, eu vos amaldiçoo. Um por um vos hei-de corromper do desastre lento, da aventura adiada. Eu não sou a cidade de origem, eu sou a tomada da na ida, a reconquistada dez mil vezes com um farnel e um saco de pano, a donde se vem mudar a vida, a nossa. Vocês pagam. Esta é uma maldição lançada aos reles da ressurreição da minha história. As minhas janelas hão-de abrir-se de novo a escarnecer usurpadores a soldo, a cuspir-vos para esse país de rezas e mesinhas sem luz nem ar onde conservais os vossos trastes e cagais sentenças e ditadores em nome do bom senso. Eu sou a cabeça da terra dos que mais tentam a morte que tal sorte. Eu duro da aventura desventurada, o menor mal. Vocês pagam.

Maria Velho da Costa em Cravo

ESTE DIA HÁ 45 ANOS


25 de Novembro de 1975.

 Cerca das 02 e 30 horas da madrugada, quatro chaimites dos comandos da Amadora chegam ao Palácio de Belém. Duas delas bloqueiam a Calçada da Ajuda. O comandante da Polícia Militar, Campos Andrada, contacta o Regimento de Comandos sendo-lhe respondido que aquela força estava a cumprir ordens do Presidente da República. Pedidas explicações para a Presidência da República, é confirmado que as chaimites estavam à ordem do Presidente da República, mas que tinha havido uma má interpretação e iriam regressar imediatamente

 O Conselho da Revolução, ao fim de oito horas de reunião em Belém, decidiu manter a nomeação de Vasco Lourenço para comandante da Região Militar de Lisboa.

 04,00 horas -  tropas pára-quedistas ocupam as bases aéreas de Tancos, Montijo, o Estado Maior da Força Aérea, o Comando da Região Aérea, o GDACI , em Monsanto, e a Ota.

 05,40 horas - após cerca de 12 horas de interrupção do trânsito entre Leiria e Lisboa, são levantadas as barricadas montadas por agrários e pequenos proprietários.

 13,30 horas – o Presidente da República classifica a operação dos para-quedistas de sublevação.

14,30 horas - Otelo Saraiva de Carvalho chega ao COPCON no Forte do Alto do Duque.

 Varela Gomes há-de escrever:

 «Mas não havia nada a fazer. A grande decisão estava tomada. Otelo Saraiva de  Carvalho obedecia à convocação do general Costa Gomes, largando os “paras” à sua sorte. O estratega do 25 de Abril de 1974 abandonava vergonhosamente o seu posto de comando em 25 de Novembro de 1975. Na hora do aperto, fugia de calças na mão, à procura do refúgio protector.

Deveriam ser cerca das 15,00 horas quando o general graduado Otelo Saraiva de Carvalho saiu do Copcon… e da revolução.(1)

 Dinis de Almeida também, escreverá:

 O desinteresse manifesto de Otelo pelo controlo e coordenação das suas próprias forças militares, torna-se hora a hora mais inquietante.

 Só da parte da tarde aparecerá no COPCON, onde apenas permanecerá por momentos.

 Arrancará pouco depois para Belém onde afirmará junto a Vasco Lourenço e Marques Junior que ”… eu próprio lancei os pára quedistas, após o que a seguir os abandonei de propósito para lixar a esquerdalhada… que andava sempre a chatear-me…” 

 “Desgraçada Revolução que tais chefes teve”, dissera um dia Vasco Gonçalves, referindo-se concretamente a uma das muitas inconsequências de Otelo.» (2)

 16,35 horas -  a emissão Telescola, a ser transmitida pela RTP, é interrompida e surge no écran o Capitão Duran Clemente que pretende apelar para que as massas populares se mobilizem junto dos quartéis e estações da RTP, mas a transmissão é desviada para os estúdios do Porto e os portugueses passam a assistir ao filme de Frank Tashlin O Homem do Diners Club com Danny Kaye.

 16,30 horas -Costa Gomes decreta o estado de emergência na Região de Lisboa.

  Posteriormente é decretado o estado de sítio parcial na Região de Lisboa e a suspensão da publicação da imprensa escrita.

 22,00 horas - a emissão do Rádio Clube Português é silenciada e a Emissora Nacional, a transmitir dos estúdios do Porto, fica sob o controlo do CEMGA.

 Do livro Abril nos Quartéis de Novembro: 

« A calma, o saber esperar, adicionados à capacidade de provocar o adversário, terão sido os aspectos que mais contaram para a vitória dos “Nove”, que, à partida, não eram a força melhor colocada em termos militares na cidade de Lisboa. Tais capacidades são especialmente demonstradas no próprio dia 25, quando evitam actuar sem a cobertura de Costa Gomes. Esperaram que ele tentasse resolver o problema por outros meios, ao mesmo tempo que o iam pressionando, demonstrando a urgência de passara à acção. Em verta altura argumentam que não se pode deixar cair a noite para agir e que tudo está por fazer. » (3)

 Costa Gomes toma o comando directo das Forças Armadas, e as unidades de Lisboa são informadas de que além dele também recebem ordens de Vasco Lourenço, que Costa Gomes nomeia como seu adjunto, e mais tarde juntará o nome de Ramalho Eanes à cadeia de comando.

 José Gomes Mota no seu livro A Resistência:

«Tudo se passava, portanto, segundo os nossos planos, ou seja, Vasco Lourenço chefiava o Movimento e Ramalho Eanes dirigia o Grupo Militar.

Em seguimento à proclamação do estado de sítio parcial, na área da região de Lisboa, o Estado Maior das Forças Armadas difunde uma nota oficiosa em que se informa a população de que foi determinado o recolher obrigatório no período que se estende das zero às seis horas da manhã, e em que, também, alerta para o facto a rádio e a televisão não poderem emitir comunicados dos partidos políticos, apenas comunicados oficiais.»

 Simone Beauvoir, algures no tempo:

 O mais terrível dos sentimentos é o de ter a esperança perdida.

 José Gomes Ferreira no seu livro Intervenção Sonâmbula:

 Estamos no fim da Revolução. E porventura não tardará aí o inferno que ninguém quer.


Fontes:

- Acervo pessoal.

 (1)   – Sobre os Golpes Contra-Revolucionários de 11 de Março e de 25 de Novembro de 1975 – Varela Gomes, edição do autor, Lisboa s/d

(2)   - Ascensão, Apogeu e Queda do M.F.A. 2º volume, Edição do Autor, Lisboa s/d

(3)   - Abril nos Quartéis de Novembro – Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Livraria Bertrand, Junho 1979

(4)    - A Resistência – José Gomes Mota, Edições Jornal Expresso, Lisboa, Junho 1976

DIEGO ARMANDO MARADONA (1960-2020)


 Há o futebol e há Diego Armando Maradona.

CONVERSANDO


 O Carnaval é que é o tempo de máscaras.

O Vergílio Ferreira dizia:

«Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se».

Também o Miguel Torga no seu Diário:

«Carnaval. Nunca o festejei, nem o apreciei festejado pelos outros. Se o que ele significa no plano histórico: a luta ancestral da carne revoltada contra o formalismo das instituições, o esforço que desde Roma até ao Rio de Janeiro o civilizado jamais deixou de fazer quebrar os compromissos da disciplina colectiva. Simplesmente, a minha natureza, não é foliona. Nem me é dado iludir, ao abrigo de uma bula do deus Momo, o rigor impiedoso das calendas, nem sou capaz de viver a vida a rir-me dela. Sabe-me bem no ouvido o timbre de uma gargalhada sã, mas arranham-me a alma as casquinadas histriónicas. Bem sei que há quem arremede o Entrudo, e entre no jogo com o conhecimento de causa e em jeito de brincadeira. São burlões enganados. Dão rédea solta a metade de si, fiados no critério da outra metade, mal suspeitando que quem se fantasia mente, e, pior, mente sem dar conta. Muito embora compreensivo diante do equívoco de uma felicidade tão sofismada que não dá pela distãncia que vai do artifício ao lúdico, nem assim deixo de me arredar discretamente quando se aproxima a onda trapalhona de falsas ciganas, falsos mandarins, falsas minhotas e falsos campinos. Triste, porém. Triste a perguntar a mim mesmo de esta incapacidade de fingimento, esta singularidade hirta e sem remédio, não será como que um espinho a criar no corpo da saúde gregária. Se o meu próprio rosto não passará de uma máscara também, afinal, me escondo disfarçado. A máscara vincada e hostil da solidão.»

Mas a conversa não tem nada a ver com carnaval, é mais o pretexto para vos reproduzir o final da crónica de José Tolentino Mendonça num dos últimos Expresso:

«O ponto parece-me ser este: se não podemos não usar máscara, não nos esqueçamos, no entanto, do que significa um rosto. E tantos não esquecem, é verdade. Numa obra recente do teólogo Pier Angelo Sequeri conta-se uma história que narra precisamente a persistência do rosto por outros meios. Uma paciente que passou por um longo e sofrido internamento devido à Covid-19, ao despedir-se dos médicos e enfermeiros disse: “ Quando vos encontrar de novo não serei capaz de recordar distintamente os vossos rostos, mas reconhecerei infalivelmente os vossos olhos.”

GESTOS DE RECURSO


Quando um dia -- é fatal --
pousar sobre os meus ombros
aquele assíduo, rigoroso abutre
que voa sem rumor em círculos cautos
como a tirar as medidas do meu corpo --

saibam todos que para esse tempo
tenho ainda alguns gestos de recurso
(que não revelo), com que espero
morrer mais comodamente.

A.M. Pires Cabral em Resumo: a poesia em 2009

Legenda:  fotograma de O Sétimo Selo de Ingmar Bergman

terça-feira, 24 de novembro de 2020

... E OS DIAS DIMINUEM


Chegará, em breve, a noite em que os dias vão deixar de diminuir para, numa lentidão quase inexistente nos primeiros tempos, passarem a aumentar.

 Ocorrerá no dia 22 de Dezembro, o dia mais curto do ano que dará lugar à noite mais longa.

O inverno passará a marcar os nossos dias.

 Chegará esse tempo… chegará…

1.

Devia, em tempo de pandemia, nestes dias iguais de desespero, proibir-me de pegar no Livro do Desassossego do Sr. Bernardo Soares.

 Devia… sei que não devia…

 «Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida?

O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perder, mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.

As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada ante o sabor da morte e do apagamento.

Nunca tive ninguém a quem pudesse chamar «Mestre». Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apoio ou Atena me apareceu, para que me iluminasse a alma.»

 2. 

Os números não terão o necessário rigor, mas admite-se que, devido ao Covid-19, morreram 1.100 idosos em lares.

 3.

Num país há serviços que deveriam sempre estar na alçada do Estado: os CTT é um desses casos.

A rapaziada que, no tempo de Passos Coelho, comprou os CTT, quer mais dinheiro e menos regras para manter a concessão que termina no final do ano.

Eles dizem que a actual situação é insustentável.

Os portugueses dirão, no que ao serviço postal diz respeito, o que a gentalha ganha já é muito para serviço completamente miserável que prestam.

Há quem defenda – e com todas as razões – que os CTT deveriam ser nacionalizados.

 4.

É incalculável a quantidade da mais variada gente que aparece nas televisões a debitare sobre a pandemia que nos invadiu o quotidiano.

Não percebo o calão científico que grande parte utiliza, coisas lá deles, quando o importante seria que alguém falasse simples, que se juntassem a uma só voz, sem incoerências, sem habilidades manhosas e dissessem aos portugueses o que se passa realmente, o que se vai passar ainda.

Marcelo, qual barata tonta, deixou nas entrelinhas que quase de certeza vamos ter Natal em estado de emergência.

Da parte do governo falta uma estratégia, o tudo ao monte e fé em Deus nem sempre dá resultado e, num caso como este, não resulta mesmo.

Acreditei que face ao trabalho realizado durante os primeiros meses da pandemia que o governo, as diversas entidades, todos nós, tivéssemos aprendido algo que agora serviria para enfrentar as vagas que vão surgindo, continuarão a surgir.

 Não, não aprendemos nada. Estamos desorientados, cansados.

Que futuro nos pode restar se os cidadãos, inconscientemente, estupidamente são os primeiros a criar os já de si graves problemas que nos envolvem?

No primeiro fim-de-semana do estado de emergência, denúncias levaram a GNR a pôr fim a uma festa no Monte da Caparica que reunia 30 pessoas, três festas no Algarve que juntavam 300 pessoas.

 Que faremos com esta gente?

 5.

Rui Rio, personagem com que nunca simpatizei, alguém que sempre que ouve falar de cultura puxa logo da pistola, acabou por estatelar o PSD num pântano donde não será fácil sair.

O que Rio permitiu que o PSD local fizesse nos Açores, aliando-se àquela coisa racista, xenófoma, coloca o Partido dito social, dito democrata em péssimos lençóis.

O silêncio do PSD face a este atentado é ensurdecedor.

Onde os personagens, vulgo Paulo Rangel, Montenegro, Maduro, Morais Sarmento tutti quanti, sempre dispostos aos brados mais aterradores quando o PS, ou o Governo tomam determinadas posições?

 Apenas uma voz, a de Jorge Moreira da Silva se fez ouvir:

 «Considero necessária a realização de um Congresso extraordinário do PSD para definição, bem antes das eleições autárquicas e legislativas, da política de coligações e entendimentos do partido.»

 Mas disse Rui Rio:

 «Para o presidente dos sociais-democratas, nos Açores, o Chega moderou-se ao propor medidas que não são consideradas fascistas, por isso houve negociação. "No futuro, no continente, se o Chega se moderar pode haver hipóteses de diálogo. Nos Açores, o Chega moderou-se».

 A jornalista São José Almeida, no Público, não deixou, em texto de opinião, de notar:

 «Rui Rio está ávido de poder».

 6.

O PSD está atentar que o Bastonário da Ordem dos Médicos se candidate pelo partido às próximas eleições autárquicas.

Bem me queria parecer que a sanha bastonária contra as decisões do governo, que se supunha serem de interesse médico-científico, não passam de um mero expediente político.

Que bem lhes fica a hipocrisia!

Esta gente causa asco!

O PCP ESTÁ A SER PRIVILEGIADO?


«Numa entrevista à TVI na semana passada o presidente do PSD resolveu silenciar a contestação ao acordo que fez com o partido Chega nos Açores lançando outra controvérsia, a do Congresso do PCP. A dada altura disse o seguinte:

"Meter as pessoas em casa no recolher obrigatório todas as noites a partir das onze, ao fim de semana, da maneira como nós sabemos (e não estou aqui a contestar, se está bem ou se está mal), os restaurantes na situação em que estão, os hotéis na situação em que estão, o país na situação em que está e o governo diz: é para todos, menos para o Partido Comunista Português."

Desde o início da pandemia, em março, quais foram os acontecimentos que, em nome da defesa da saúde pública, motivaram tentativas de proibição?

Um grupo de algumas centenas de fiéis acumulou-se nas primeiras filas e não respeitou o distanciamento social. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

Tivemos, em primeiro lugar, as celebrações populares do 25 de Abril, que acabaram mesmo por não se fazer.

A seguir foi o 1.º de maio, celebrado nas ruas pela CGTP.

No verão foram semanas de tentativas falhadas de cancelamento da Festa do "Avante".

Em contraste recordo, logo no princípio de junho, que dois espetáculos somaram 2200 pessoas no Campo Pequeno, em dias seguidos, e contaram com a presença do primeiro-ministro e do Presidente da República. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

Recordo o 13 de setembro em Fátima, logo a seguir à Festa do "Avante!": o excesso de presenças levou ao fecho do acesso ao recinto.

Recordo, a 12 e 13 de junho, ter o Santuário de Fátima organizado uma peregrinação que culminou numa missa para quatro mil pessoas. Um grupo de algumas centenas de fiéis acumulou-se nas primeiras filas e não respeitou o distanciamento social, como se pode ver no vídeo disponível na Internet pela agência Ecclesia. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

Recordo o 13 de setembro em Fátima, logo a seguir à Festa do "Avante!": o excesso de presenças levou ao fecho do acesso ao recinto. A acumulação de pessoas e o perigo para a saúde pública são documentados por dezenas de fotos e videos partilhados na internet. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui ​​​​​​​Rio.

Marcelo até foi a Fátima. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

Recordo ainda o 13 de outubro em Fátima, feito apesar do incidente do mês anterior. O Presidente da República elogiou a promoção da iniciativa, em contraste com as críticas que fizera um mês antes à realização da Festa do "Avante!", apesar da organização da iniciativa do PCP ter passado todos os testes de segurança sanitária e apesar de o Santuário ter falhado a 13 de setembro. Marcelo até foi a Fátima. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

Lembro o Prémio de Fórmula 1, no Algarve, de 23 a 25 de outubro. Não ouvi nenhum dos arautos da desgraça sobre ajuntamentos a 25 de Abril, a 1.º de maio ou na Festa do "Avante!" ter levantado a voz para impedir a acumulação anunciada de 30 mil pessoas. Pelo contrário, só vi publicados e difundidos elogios. Quando o evento começou e se percebeu como a organização falhara rotundamente, choveram então indignações. Ouvi, nessa altura, críticas relevantes, mas foram todas tardias e com algum tom hipócrita. Rui Rio foi um deles e só falou quando a prova já decorria, no último dia.

Tivemos também este fim de semana o Moto GP que, mesmo sem público, juntou na sua organização e execução certamente muito mais do que as 600 pessoas que o PCP vai reunir. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

No primeiro fim de semana deste último estado de emergência e com recolher obrigatório em vigor, toda a gente viu na TV o desespero de centenas, talvez milhares, de proprietários e de trabalhadores de restaurantes nas suas iniciativas de protesto. Não ouvi críticas relevantes ao ajuntamento. Nem de Rui Rio.

No sábado passado, também com o estado de emergência em vigor, quase um milhar de artistas e empresários do setor estiveram reunidos no Campo Pequeno para exigirem medidas de apoio. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

Para os mesmos três dias do congresso do PCP estão previstos mais de 60 espetáculos em todo o país, como dois que se realizam no Campo Pequeno, em Lisboa, e outros dois no Super Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota, no Porto.

Tivemos também este fim de semana o Moto GP que, mesmo sem público, juntou na sua organização e execução certamente muito mais do que as 600 pessoas que o PCP vai reunir. Não ouvi críticas relevantes ao facto. Nem de Rui Rio.

Para os mesmos três dias do congresso do PCP estão previstos mais de 60 espetáculos em todo o país, como dois que se realizam no Campo Pequeno, em Lisboa, e outros dois no Super Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota, no Porto. Estão também marcadas inúmeras provas desportivas, embora sem público, mas movimentando milhares de atletas, treinadores e dirigentes. E há uma vintena de exceções previstas ao recolher obrigatório que abrangem muitas milhares de pessoas. Tudo isto ainda poderá dar uma volta, mas ainda não ouvi ninguém relevante criticar o facto, nem ouvi Rui Rio exigir cancelamento algum.

O que os factos dizem, claramente, é que todas as iniciativas públicas em que o PCP se envolve, mesmo indiretamente, têm o privilégio exclusivo da tentativa de sabotagem.

Eu sou militante do PCP e, por isso, muitos dos ouvintes acharão que a minha opinião é subjetiva ou tendenciosa, mas, francamente, analisados os factos, não consigo perceber onde é que Rui Rio, e muitos outros, encontram, afinal, o privilégio do PCP...

O que os factos dizem, claramente, é que todas as iniciativas públicas em que o PCP se envolve, mesmo indiretamente, têm o privilégio exclusivo da tentativa de sabotagem... É como quem diz: "toma lá, que não é democrático!"».

Pedro Tadeu na TSF via O Tempo das Cerejas

TRUMPALHADAS


 Finalmente.

Ao que dizem as televisões, Donald Trump recomendou à sua administração que desse início aos processos de passagem para a equipa de Joe Biden.

 «No melhor interesse do nosso país, recomendei a Emily e à sua equipa para fazerem o que tem de ser feito em relação aos protocolos inicias de transição de administrações, e disse à minha equipa para fazer o mesmo».

Em 2008, o republicano John McCain disse à nação:

«O povo americano falou», reconhecendo de imediato a vitória de Barak Obama.

Trump continua a acreditar que os resultados das votações foram viciados em favor de Joe Biden e espera o dia em que lhe irão dizer que foi ele  o vencedor das eleições, mantém a luta e nas ruas milhares de apoiantes seus continuam a gritar que houve fraude eleitoral.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

OLHAR AS CAPAS


 Intimidações da Morte


Ana Teresa Pereira

Capa: Fernando Mateus

Relógio d’Água Editores, Lisboa, Dezembro de 2002


Quando era criança, e pensava como uma criança, e falava como uma criança, Jane Frost apaixonou-se pelo caçador do filme de Charles Laughton. Durante anos contou histórias à sua boneca na margem do rio, escreveu nos dedos palavras misteriosas com tinta azul, e procurou-o nas sombras do seu quarto, com medo e desejo, enquanto ao longe se ouvia o som sempre igual de uma máquina de escrever ou alguém que assobiava debaixo da janela.

domingo, 22 de novembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


 Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

FELIZMENTE EXISTEM LIVROS


Comprar livros pelos seus começos, comprar livros pelos seus finais, comprar livros por uma frase, uma página, comprar livros pelas capas, comprar livros, signo diário de quem privilegiado se constitui por ter nascido e vivido numa casa em que havia uma pequena  estante com livros.

Aqui pelo Cais estivemos para apresentar começos e finais de livros, mas depois optámos por Olhar as Capas porque englobava tudo.

Maria Gabriela Llansol, e o começo do seu livro no seu livro Na Casa de  Julho e Agosto:

«O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a “decisão da intimidade” se pronuncie.»

Ocorrem-me, entre tantos e tantos, dois excelentes começos de livros de autores portugueses

O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago:

«Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado».

 Os Cus de Judas de António Lobo Antunes:

«Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do ringue de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua.»

E obviamente, não posso deixar de lembrar o magistral começo de O Fogo e as Cinzas de Manuel da Fonseca:

«Antigamente, o Largo era o centro do mundo.»

Todo este escrevinhar porque hoje, por mor de algo que precisava consultar, peguei em Os Nus e os Mortos, grande livro de Norman Mailer que tem um começo muito bem conseguido:

«Ninguém podia dormir. Mal rompesse a manhã as lanchas de assalto seriam lançadas ao mar e a primeira vaga de tropas cavalgaria a rebentação e atacaria as praias de Anopopei. Em todo o comboio, em cada um dos barcos, os homens sabiam que dentro de poucas horas muitos deles estariam mortos.»

São assim os livros, nossos companheiros de todas as horas.

Ou como escreve José Saramago em A Caverna:

«Felizmente existem os livros. Podemos esquecê-los  numa prateleira ou num baú, deixá-los entregues ao pó e às traças, abandoná-los na escuridão das caves, podemos não lhe pôr os olhos em cima nem tocar-lhes durante anos e anos, mas eles não se importam, esperam tranquilamente, fechados sobre si mesmos para que nada do que têm dentro se perca.»

Foi o que aconteceu com o livro do Norman Mailer.

E, de repente, saltou o começo.

 

Texto publicado em 14 de Março de 2019