Para assinalar os 10
anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana
estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
NOS
MARES DO FIM DO MUNDO
Guardo da infância-quase-adolescência a
imagem do estuário do Tejo, frente à Praça do Império, pejado de
lugres bacalhoeiros, embandeirados em arco, aguardando a partida para a Terra
Nova e Gronelândia.
Porque foi de Belém que partiram as
armadas em demanda de novas terras e o regime pretendia que a faina bacalhoeira
fosse a epopeia desses dias.
Acontecia por princípios de Abril e
coincidia quase sempre com o tempo de Páscoa.
As muralhas pejavam-se de gente, na sua
maioria famílias dos pescadores.
Os pescadores nos seus dóris vinham
dos barcos até à margem para assistirem, aos actos religiosos que se realizavam
no Mosteiro dos Jerónimos.
Após a cerimónia, dois pescadores
deslocavam-se a casa do Senhor Presidente do Conselho, em nome de todos os
outros trabalhadores do mar, apresentar cumprimentos de despedida.
Os jornais testemunhavam, então, que
Salazar recebia-os com muita simpatia, demorava-se alguns minutos a conversar
com os pescadores e desejava-lhes boa viagem e boa pesca.
Brindava-se com Vinho do Porto,
comiam-se amêndoas.
Em 12 de Abrl de 1952 o Notícias
de Portugal referia as palavras do Senhor Arcebispo de Mitilene.:
«Amigos, boa viagem e até à volta! Que o
Senhor vos leve e que o Senhor vos traga!»
O regresso acontecia por alturas de
Setembro-Outubro, a tempo dos portugueses terem o bacalhau à mesa da consoada.
Em 1955, foi construído, nos Estaleiros
Navais de Viana do Castelo, a mando do Grémio de Armadores de Navios de Pesca
do Bacalhau, comandado pelo tenebroso e corrupto Almirante Henrique Tenreiro,
O Gil Eanes, navio-hospital que esteve ao serviço da frota bacalhoeira
até 1973.
Nesse ano de 1955, Portugal tinha uma
frota pesqueira de 70 barcos e cerca de cinco mil homens.
Em Dezembro de 2002 a frota rondava os
15 barcos e apenas dois/três por cento do bacalhau que consumíamos, era pescado
por portugueses.
Foi com os pescadores portugueses que os
noruegueses aprenderam a preparar o bacalhau, e em 2007, Portugal absorvia 40%
das exportações de bacalhau da Noruega.
Tem largos e largos anos o contacto dos
portugueses com o bacalhau.
Em Lisboa, na Praça da Figueira, a Antiga
Casa do Bacalhau vende bacalhau há cerca de 150 anos.
O escritor Bernardo Santareno, médico de
profissão, na campanha de 1957 prestou assistência a bordo do arrastão David
Melgueiro, e na campanha de 1958, a bordo do Senhora do Mar e
do navio-hospital Gil Eanes.
Dessa experiência de Santareno,
resultou a peça de teatro O Lugre, publicada em 1959.
«Fala do Capitão: Tenho muita pena do António
Nazareno. Era um bom rapaz e um bom pescador. Tenho muita pena…
Resta-nos a consolação de termos feito tudo para o salvar. Tudo. Gostaria mais
de o sepultar em terra mas 4stamos longe e a lei não permite a arribada. Por
isso o corpo do Nazareno será dado ao mar. Eu bem sei que numa cova funda,
coberta com boa terra firme, um homem descansa mais em paz, que a mulher ou os
filhos ou os pais o terão lá, anos e anos, quieto… Depois, na terra duma campa
nascem flores e ervas de cheiro: giestas e malmequeres, rosmaninho e alecrim…
Gostava, só Deus sabe como eu gostava!, de sepultar o António Nazareno em
terra. Mas não posso. Era um grande prejuízo. Sei bem que todos vocês têm pena…
Mas lembrem-se de que aqui, num destes portos da Terra Nova, ele não teria nem
giestas, nem rosmaninho… nada disso! Seriam outras flores que a gente não
conhece, que ele Nazareno, nunca viu em vida! Até a terra, até a terra que o
cobriria, seria diferente da nossa: com outra cor, com outro cheiro. Isto é
assim: e por assim ser, não devemos ter pena de deitar ao mar o corpo do Nazareno.
Aqui nestes bancos da Terra Nova, ele fica menos só. Fica, fica mais
acompanhado nestes mares. Se todas as vezes e em todos os sítios que este
oceano matou um pescador português, houvesse, como é de uso na nossa terra, uma
alminha iluminada… ai, então estes mares estariam cheiinhos de luzes, cheios a
perder de vista! Vocês sabem que é verdade isto que eu lhes digo: alguns têm cá
o pai, ou um irmão, ou um filho… É ou não assim, João das Almas. Estou a
mentir, Zé Sol? O nosso companheiro António Nazareno ficará portanto neste mar.
Que descanse em paz.»
Ainda sobre as vidas e trabalhos dos
pescadores de bacalhau, Bernardo Santareno publicou, em 1959, o livro de
narrativas Nos Mares do Fim do Mundo, de onde ressalta as
condições em que um único homem, num dóri, pescava à linha, até encher o
pequeno barco, regressar ao navio-mãe e começar a descabeçar os peixes, escalar
e colocá-los para salga no porão.
Entre as frotas bacalhoeiras de outros
países, eram os portugueses os que trabalhavam nas piores condições.
Uma vida miserável, que o regime queria
que fosse epopeia.
Este é o começo de Nos Mares do
Fim do Mundo:
«Enquanto o “David Melgueiro” se
afasta, mais e mais de Lisboa, eu surpreendo-me com as mãos abertas
ao vento, para nele colher um certo olhar negro e patético, ou um riso
estridente e nervoso que queria ser lágrima, ou aquele dorido inclinar de
cabeça silencioso e resignado, ou aquele beijo enviado por alguém que me pede
uma estrela como testemunho da aventura, ou a serenidade hirta e requintada de
quem, enquanto o navio se distancia, se acusa por não sentir nada (nem mágoa,
nem saudade) por mim... Com as minhas longas mãos abertas ao vento..».
Texto publicado em 8 de Abril de 2012.
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