segunda-feira, 30 de novembro de 2020

FERRO


É óbvio que podia deixar de respirar,

fechar os pulmões como os portões da avó

para o Fequinha Meu não sujar os lencóis.

Porque é isso, quando respiro sujo uma espécie

de pureza que me pensava destinada,

dou mais uma colherada na infelicidade

que todos os meus antepassados ferveram para mim.

Sei que é uma visão doentia,

mas penso em todas as vezes que se foram deitando

por amor, por fastio, por falta de luz,

até eu nascer nas camas de ferro.

A memória tem esses risos, essas lágrimas

dos tempos em que as lareiras faziam sentido

e subiam pelas paredes à sombra nocturna da janela.

O meu corpo é essa memória e um tanto de futuro.

Talvez amanhã feche os portões do meloal

 e me estenda sobre a última alegria da aldeia,

veja o avô e a avó a fiarem-se as mãos

e me demore no pêlo dourado do cão

que, como todos nós, chorou porque viu

a ternura erguer a casa de todas as manhãs.

É óbvio que será esse o ar das minhas últimas palavras.

 

Ana Salomé em Resumo: a poesia em 2009

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