É óbvio que podia deixar de respirar,
fechar os pulmões como os portões da avó
para o Fequinha Meu não sujar os lencóis.
Porque é isso, quando respiro sujo uma espécie
de pureza que me pensava destinada,
dou mais uma colherada na infelicidade
que todos os meus antepassados ferveram para mim.
Sei que é uma visão doentia,
mas penso em todas as vezes que se foram deitando
por amor, por fastio, por falta de luz,
até eu nascer nas camas de ferro.
A memória tem esses risos, essas lágrimas
dos tempos em que as lareiras faziam sentido
e subiam pelas paredes à sombra nocturna da janela.
O meu corpo é essa memória e um tanto de futuro.
Talvez amanhã feche os portões do meloal
e me estenda sobre a última
alegria da aldeia,
veja o avô e a avó a fiarem-se as mãos
e me demore no pêlo dourado do cão
que, como todos nós, chorou porque viu
a ternura erguer a casa de todas as manhãs.
É óbvio que será esse o ar das minhas últimas palavras.
Ana Salomé em Resumo: a poesia em 2009
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