domingo, 22 de novembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


 Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

FELIZMENTE EXISTEM LIVROS


Comprar livros pelos seus começos, comprar livros pelos seus finais, comprar livros por uma frase, uma página, comprar livros pelas capas, comprar livros, signo diário de quem privilegiado se constitui por ter nascido e vivido numa casa em que havia uma pequena  estante com livros.

Aqui pelo Cais estivemos para apresentar começos e finais de livros, mas depois optámos por Olhar as Capas porque englobava tudo.

Maria Gabriela Llansol, e o começo do seu livro no seu livro Na Casa de  Julho e Agosto:

«O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a “decisão da intimidade” se pronuncie.»

Ocorrem-me, entre tantos e tantos, dois excelentes começos de livros de autores portugueses

O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago:

«Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado».

 Os Cus de Judas de António Lobo Antunes:

«Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do ringue de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua.»

E obviamente, não posso deixar de lembrar o magistral começo de O Fogo e as Cinzas de Manuel da Fonseca:

«Antigamente, o Largo era o centro do mundo.»

Todo este escrevinhar porque hoje, por mor de algo que precisava consultar, peguei em Os Nus e os Mortos, grande livro de Norman Mailer que tem um começo muito bem conseguido:

«Ninguém podia dormir. Mal rompesse a manhã as lanchas de assalto seriam lançadas ao mar e a primeira vaga de tropas cavalgaria a rebentação e atacaria as praias de Anopopei. Em todo o comboio, em cada um dos barcos, os homens sabiam que dentro de poucas horas muitos deles estariam mortos.»

São assim os livros, nossos companheiros de todas as horas.

Ou como escreve José Saramago em A Caverna:

«Felizmente existem os livros. Podemos esquecê-los  numa prateleira ou num baú, deixá-los entregues ao pó e às traças, abandoná-los na escuridão das caves, podemos não lhe pôr os olhos em cima nem tocar-lhes durante anos e anos, mas eles não se importam, esperam tranquilamente, fechados sobre si mesmos para que nada do que têm dentro se perca.»

Foi o que aconteceu com o livro do Norman Mailer.

E, de repente, saltou o começo.

 

Texto publicado em 14 de Março de 2019

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