Os Cus de Judas
António Lobo Antunes
Editorial Veja, Lisboa 1979
Eu odiava o rio Cambo e os arbustos decompostos que lhe limitavam o curso, os edifícios abandonados, de varanda de colunas, perdidos no capim, e de cujos sobrados em ruína os lagartos e os ratos nos espiavam com rancor. Odiávamos o rio em que tristes deuses de pau se chamavam com vozes guturais repletas de apelos e ameaças, o rio em que as lavadeiras esfregavam na pedra limosa a nossa roupa militar, seguidas pela fome suspensa dos soldados, masturbando-se, de joelhos na terra, junto da arma que esqueciam. Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, vinte e cinco meses de comer merda, e beber merda, e lutar por merda, e adoecer por merda, e cair por merda, nas tripas, de tal jeito ridículos que, por vezes, à noite, no jango de Marimba, desatávamos de súbito a rir, na cara uns dos outros, gargalhadas impossíveis de estancar, observávamos as feições uns dos outros e a troça escorria-nos em lágrimas de piedade, e de escárnio, e de raiva, pelas bochechas magras, até que o capitão, com a boquilha sem cigarro entalada nos dentes, se sentava no jeep e principiava a buzinar, espantando os morcegos das mangueiras e os insectos fantásticos de Angola, e nos calávamos como as crianças se calam a meio do seu choro, olhando as trevas em torno numa surpresa imensa.
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