segunda-feira, 20 de junho de 2011

SARAMAGUEANDO



A escritora Lídia Jorge, ao pequeno discurso que, no sábado, proferiu, aquando do lançamento á terra das cinzas de José Saramago, chamou  Palavras para Ti.

São estas as palavras:

Pediu-me Pilar del Río que dissesse umas palavras para ti nesta ocasião. Em seu nome, digo-te que ela deitará as cinzas do teu corpo à terra, e nós, teus amigos, testemunharemos este momento do teu percurso, acompanhando o seu gesto, e agradecendo à vida termos vivido contigo. Agradecendo termos sido teus contemporâneos, e podermos falar sobre ti de viva voz, sobre aquilo que continua a ser a tua vida.

Sim. Dentro de instantes, Pilar, a tua mulher, irá deitar parte do que sobejou do teu corpo ao chão, mas todos nós que aqui estamos sabemos que ao mesmo tempo que te deitamos na terra, não te deixamos na terra, nós todos levantamos-te do chão. Nós, teus amigos, teus leitores, teus companheiros, toda esta cidade, levantamos-te do chão neste momento. E o mesmo sucederá no futuro, cada vez que abrirmos os teus livros e lermos as tuas palavras, e imaginarmos as figuras que tu mesmo imaginaste. E entrarmos nas tuas razões, e nos teus combates, sobretudo, no edifício magnífico da língua escrita que tu inventaste. Cada vez que acontecer, seja onde for, e em que idioma for que sejas lido, em qualquer parte da terra que seja, tu não serás as tuas cinzas que irão ser depositadas neste jardim, à sombra duma oliveira. Serás sim, os milhares de páginas que escreveste sobre a Utopia e o desconcerto e o concerto do mundo. Sobre os vivos, os mortos, Deus, os reis e os pobres, o elefante e o Cristo. Um mundo acrescentado ao Mundo. E por isso, quando Pilar del Río colocar as tuas cinzas da tua matéria física na terra, só ficaremos tristes por pensar em como o teu corpo foi inteiro, e termos saudades dele.

De resto, nós queremos que este momento seja alegre. Que tu sejas seiva desta cidade, lugar de paragem dos apressados, banco onde se sentam os cansados, casa onde se façam leituras, que neste canto em frente ao Tejo tu sejas uma história na História, e a partir daqui, que a paisagem se mantenha azul e o mundo se faça mais próspero e mais justo, como tu tanto sonhaste, que tu sejas parte de tudo isso, e que a tudo isso que aqui fica estendido se chame tua alma.

Quanto a nós, enquanto formos vivos e pudermos recordar-te, recordar-te-emos com se estivesses entre nós. Nós próprios não temos outra eternidade para te dar.

Tenho dito.


Legenda: fotografia de Aida Santos

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