segunda-feira, 31 de outubro de 2011

JANELA DO DIA



1.

A Autoridade Palestiniana foi admitida como membro de pleno direito da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) com 107 votos a favor, 52 abstenções e 14 votos contra dos Estados membros presentes na votação, em Paris.

França, Espanha, Índia e China foram alguns dos países que votaram favoravelmente a admissão da Palestina, a par de quase todos os países árabes, africanos e latino-americanos.

Portugal absteve-se.

A admissão da Palestina na UNESCO afasta as perspectivas de um acordo de paz, afirmou, hoje o Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita, condenando a manobra unilateral dos palestinianos.

Israel rejeita a decisão da Assembleia-Geral da UNESCO de aceitar a Palestina como Estado-membro da organização", lê-se num comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros divulgado em Jerusalém.
Portugal absteve-se.

2.

Mais uma dos rapazes das gravatas-azul-bebé:

Os jovens portugueses desempregados devem emigrar, em vez de ficarem na sua zona de conforto, disse o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Alexandre Miguel Mestre.

Se estamos no desemprego, temos de sair da zona de conforto e ir para além das nossas fronteiras.

Legenda: imagem do Jornal de Notícias.

VENCER COM AS ARMAS QUE TEMOS NA MÃO


Pelo findar de Outubro regressamos ao Verão Quente de 1975.

Os tais tempos de brasa que José Cardoso Pires, assim desenhou: a gente adormecia, pode dizer-se em economia burguesia e quando acordava estava nacionalizado… Verdade: a partir do 25 de Abril passámos a viver mais numa hora do que num mês de fascismo.

Novembro está à porta e serão 25 os dias que, há 36 anos, nos separavam do primeiro grande revés que a nossa esperança sofreu.

Nunca mais a recuperámos.

O país assiste a uma onda de manifestações e contra-manifestações que mostram as diferentes sensibilidades político-partidárias em confronto.

A 23 de Outubro, em Lisboa, uma manifestação unitária de soldados, marinheiros, trabalhadores, reivindicava o poder popular.

A cabeça da manifestação arrancou do Marquês de Pombal, foi engrossando pelo caminho, e chegou ao Terreiro do Paço uma hora depois.

Gritava-se:

O Povo não quer fascistas no poder., Soldados e marinheiros sempre ao lado do povo.

Cantava-se:

 Venceremos com as armas que temos na mão.

A 25 de Outubro realizava-se no Porto uma manifestação convocada por forças democráticas. Presentes o PPD e, o PS, o CDS.

Segundo a reportagem do Jornal de Notícias Sá Carneiro e o Chefe do Estado Maior do Exército, desentenderam-se. Nos bastidores. Sá Carneiro disse a Fabião que ele vinha a atacar a social-democracia. O comandante Guerreiro assistia à conversa e disse: Mas o MFA fez a opção pelo socialismo!..

Sá Carneiro retorquiu que a social-democracia se integrava no socialismo.

A 29 de Outubro em Lisboa realiza-se em Lisboa uma reunião do Conselho Mundial da Paz. Presente esteve Carlos Altamirano, secretário-geral do partido Socialista do Chile, a viver na clandestinidade:

Em conversa com os jornalistas Altamirano abordou a situação que se vivia no Chile com a ditadura de Pinochet..

Em sua opinião no Chile viveu-se aquilo que Salvador Allende chamou um Vietname silencioso. A burguesia fazia boicote económico e sabotagem contra as conquistas populares.

As mulheres burguesas chegaram a desfilar pelas ruas, batendo em tachos e panelas e gritando que tinham fome. Isto foi perfeitamente ridículo, pois durante mais de cem anos foram elas, em todo o Chile, as únicas que comeram.
Quando se deu o golpe, o nosso povo estava lamentavelmente desramado. Nessas condições, as Forças Armadas, massacraram, pelo menos, trinta mil trabalhadores.
Quando lhe convém, a burguesia pede ajuda ao Exército, pretende servir-se dele, transformá-lo numa máquina de repressão. Quando as forças armadas são na sua maioria progressistas, a burguesia pretende que regresse aos quartéis e se mantenha neutral.

Perguntaram-lhe:

Portugal será o Chile da Europa?

Respondeu:

Embora seja difícil encontrar totais semelhanças entre dois processos revolucionários, tanto ontem no Chile como hoje em Portugal, as forças reaccionárias mundiais lideradas pelo imperialismo ianque, procuraram e procuram bloquear o processo revolucionário. No Chile a burguesia opôs-se a que se armasse o povo. No entanto ela armava grupos nos países limítrofes prontos a intervirem. Ao mesmo tempo defendia o carácter profissional do Exército.

Para a burguesia a democracia só vale quando lhe assegura a manutenção dos monopólios e da exploração.

Rodrigues da Silva em artigo publicado no Diário Popular de 24 de Outubro:

A criação de um Exército profissional, (1) inventado para substituir o Exército tradicional minado de dentro pela luta de classes e pela organização autónoma dos soldados, é a prova provada de que a burguesia não abdica de ter ao seu dispor o poder das armas, mesmo que para isso tenha que inventar leis que revoguem as que ela própria criou e que espezinha quando deixam de lhe servir. É a prova provada que a burguesia, também ela, sabe que o poder está no cano das espingardas. Compete ao povo lutar para que essas espingardas estejam sempre, sempre ao seu lado, se não quer ver as suas conquistas afogadas num banho de sangue e o processo revolucionário português voltar irremediavelmente para trás.


(1)   – Referência à criação do AMI (Agrupamento Militar de Intervenção).


Legenda. Título do Republica de 29 de Outubro de 1975.

DO BAÚ DOS POSTAIS

Do Afonso, da Cristina, do Mário, de Tavira em 14 de Agosto de 2005.

CHAMINÉS



Beato.

Noutros tempos, uma das zonas industrializadas de Lisboa que chegou a empregar milhares de trabalhadores.

Estas são as chaminés da Tinturaria Portugália.

Logo após o 25 de Abril a empresa ficou sem gestão efectiva, a sua situação económica e financeira não permitia qualquer recuperação.

Em 23 de Setembro de 1976, o Conselho de Ministros do governo liderado por Mário Soares decretou a sua falência.

Até hoje, não foi dada qualquer solução ao edifício e aos terrenos.

Ainda se conseguem ver os azulejos que mostravam o logótipo da empresa.

POSTAIS SEM SELO


O homem estava especado a olhar. Esquecido. Melhor perdido. Perdido no tempo. Era um homem modesto, vestido como os homens modestos que, por assim dizer, não se vestem, andam vestidos, sempre do mesmo modo e da mesma cor, cinzenta.

Maria Judite de Carvalho em Este Tempo.

Legenda: fotografia de Gerard Castello Lopes.

domingo, 30 de outubro de 2011

JANELA DO DIA


1.

Recordando um negócio de 2010, que passou de custos zero para prejuízos para o Estado de 1,42 mil milhões Euros, Marques Mendes denunciou  a possibilidade de haver um caso de polícia no negócio das SCUTt entre o Governo de José Sócrates e o Grupo Mota Engil.2.

Segundo o Correio da Manhã,  no próximo ano, quem não pedir recibos ou facturas pela aquisição de bens ou serviços fica sujeito a uma multa que pode chegar aos dois mil euros.

De acordo com o artigo 123º da Lei do Orçamento do Estado para 2012 (OE 2012) "a não exigência, nos termos da lei, da passagem de facturas ou recibos, ou a não conservação pelo período de tempo nela previsto, é punível com coima de 75 a 2000 euros".

Os rapazes das gravata-azul-bebé ensandeceram de vez!

Que mais irá acontecer?

3.

Na factura de electricidade que, mensalmente, os portugueses pagam EDP , existe uma rubrica intitulada Contribuição áudio-visual.
O valor da contribuição, com IVA, é de 2,39 euros.

Esta verba destina-se a subsidiar a chamada televisão pública.

 

Não se conhece tudo, mas o que transpira, permite concluir que o deboche campeia na RTP & Cª Lda.

A esmagadora maioria dos portugueses confronta-se com uma austeridade selvagem, mas na RTP, os ordenados são autêntico luxo asiático.

Segundo o Diário de Notícias, o presidente da estação recebe 15 mil euros mensais/brutos,  Nuno Santos, aufere 14 mil euros mensais, José Rodrigues dos Santos, 13 mil euros, Fátima Campos Ferreira 10 mil euros mensais, Catarina Furtado 30 mil euros, Fernando Mendes 20 mil euros, José Carlos Malato 20 mil euros, Maria Elisa 7 mil euros, Jorge Gabriel 18 mil euros, Sónia Araújo 14 mil euros, João Baião 15 mil euros, Tânia Ribas de Oliveira 10 mil euros ou Sílvia Alberto 15 mil euros), entre outros.

Está caríssimo o metro quadrado da javardice, da idiotice, de toda esta gente.

E, sem tugir, nem mugir, somos nós que pagamos!

Foi assim que chegámos ao ponto onde nos encontramos.

Legenda: imagem do Google.

FAROL DE SANTA MARTA


















Farol de Santa Marta, Cascais.

Mais rochedos, mais toalhas de areia, mais rendas de espuma desfazendo-se na crista das fragas. Ao longe, remata esse recorte da baía o farol de Santa Marta – a torre que se avista do Estoril na ponta extrema de cascais. Uma torre branca cortada por larga lista em azul vivo. Está ali desde 1866, à beira das águas verdes duma pequena enseada bordada de rochedos escuros. Uma restinga entre as ondas, um poiso ideal para morada de poetas.

Maria Archer em Memórias da Linha de Cascais, Parceria A. M. Pereira, Lisboa 1943, edição fac-similad, Câmara Municipal de Cascais, Março 1999.

MATINÉ DAS 3



21 Gramas
Realização Alejandro González Iñárritu (2003)
Com: Sean Penn, Beneicio Del Toro, Naomi Watts

A pergunta é:

Quanto pesa a vida?

Três histórias de vidas diferentes que se cruzam após um acidente fatal: Paul Rivers, um professor universitário com uma doença terminal que se envolve numa aventura extra-matrimonial, Cristina Pecks, uma mãe solteira e ex-viciada em drogas que perde toda a família e Jack Jordan, um ex-presidiário que procura redimir-se e torna-se religioso.

CASA


Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

David Mourão-Ferreira de Infinito Pessoal em Obra Poética

DO BAÚ DOS POSTAIS

Enviado pelo Domingos João, de Autun, (Saône-et-Loire), em 8 de Janeiro de 1988.

sábado, 29 de outubro de 2011

JANELA DO DIA

1.

Não tenho carta de condução, gosto de andar a pé e sou de opinião que Lisboa tem uma razoável rede de transportes públicos.

Mergulhado na loucura de, a todo o custo, cumprir as selvagens imposições da troika, o governo projecta a eliminação das carreiras de serviço nocturno da Carris e o encerramento do Metro de Lisboa às 23 horas. No caso do metro, algumas linhas podem passar a fechar às 21h, como é o caso da linha amarela entre Campo Grande e Odivelas.

Outra das medidas também em estudo é a supressão da carreira fluvial para o Seixal, podendo também a própria CP encurtar os horários de saída dos últimos comboios nocturnos das linhas de Cascais, Sintra e Azambuja, tanto mais que, a não haver Carris e Metro até mais tarde, também não faz sentido ter os comboios suburbanos a funcionar durante a noite.
Muito francamente isto não tem pés nem cabeça.

 Apenas, a minha esmerada educação, impede colocar outros comentários a mais um atentado do governo às populações.

Comentando este projecto governativo, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa considerou-o um absoluto disparate e mostrou-se desagradado por saber destas notícias pelos jornais e não pelo Ministro da Economia, com quem tem frequentes contactos.

A autarquia deve conhecer os assuntos vitais para a cidade directamente por via do governo e não através comunicação social, realçou António Costa

2.

Não esqueçam que A hora muda esta noite, às duas da madrugada.
Os relógios deverão atrasar uma hora.

Good night and good luck!

MEMÓRIA DE PITIGRILLI


Uma das mais antigas citações de livros que me recordo ter guardado, pertence a um livro de Pitigrilli: Dolicocéfala Loura. Li-o na edição que andava pela biblioteca do meu pai e que desapareceu - mais um! -  viajou até uma qualquer praia e nunca regressou.

Há tempos, numa dessas ocasionais feiras de saldos que acontecem no Mercado Da Ribeira, encontrei o livro que tem o título Loura Dolicocéfala.

É uma edição da Brasília Editora do Porto, composto e impresso na Tipografia Camões,
na Póvoa do Varzim, em Julho de 1973.

A versão portuguesa é de J. Silva Couto e a edição de J. Carvalho Branco, editor, que reserva todos os direitos para Portugal e Estados Portugueses do Ultramar.

A capa é simplesmente horrorosa, que, certamente, terá funcionado como chamariz.

A citação a que atrás me refiro é esta, aqui transcrita na versão de Silva Couto:

Minha filha, tens dezasseis anos, tens apetite, dormes bem, tens necessidade de movimento, és sadia, o teu cérebro está bem formado, as tua glândulas funcionam regularmente. Ouve-me: se puderes dispensar os machos, melhor; se não os puderes dispensar, não cometas tolices; mas se cometeres uma tolice não penses repará-la com um crime: deixa que a criança nasça; não te julgues descarada, não temas que eu te expulse. Vem procurar-me, dizer-me tudo, fica tranquila; se os outros te abandonarem e a sociedade te desaprovar, encontrarás em mim sempre em mim o homem que se compadece; serás ainda a minha filhinha.

Terei lido o livro pelos meus 14/15 anos mas tenho a lembrança que o pai de Juju também dizia à filha tens bons dentes, mas esse pormenor não aparece nesta edição.

A releitura do livro, deixou-me a estranha impressão de que o lera há meia dúzia de dias, tal a quantidade de citações que ainda lembrava.

Por mera curiosidade deixo-vos algumas:   

Ávido de silêncio tinha uma amigo surdo; quando se vive ao lado de um surdo, aprende-se como são poucas as coisas que merecem ser ditas.

Frequentava raramente as mulheres, esses maravilhosos seres, avessos ao raciocínio, que desabafam a própria cólera contra as coisas inanimadas e estão sempre na impossibilidade física de se calarem.

Nunca usava guarda-chuva. Dizia: Não há comparação entre o tempo durante o qual o guarda-chuva está a o meu serviço, e o tempo durante o qual estou eu ao serviço do guarda-chuva.

Quando estás só, actua como se alguém te observasse, e quando alguém te observa, faz com se estivesses só.

Um homem de alta sabedoria – disse o Marechal indicando o professor – mas é um matemático: os matemáticos submetem todos os factos do universo ao logaritmo e à raiz quadrada, como os médicos do século XVIII resolviam tudo com sangria e clister.

Bob tinha coisas a contar a Juju, o que a deixou sem tempo para falar de si. O ABC da psicologia ensina que à mulher nunca é preciso falarmos de nós, mas exclusivamente dela. Bob não era um psicólogo; era daqueles homens que renunciam a compreender as mulheres, como renunciaram a compreender a álgebra. Aliás a humanidade podia ter dispensado Diofante de Alexandria e Gustavo Flaubert.

O céu há-de castigá-la! como dizem aqueles que crêem em Deus e não querem gastar dinheiro com advogados.

Se uma criança tem uma frase feliz, não lhe digam que é divertida, se não querem que se torne insuportável; se uma mulher é inteligente, façam com que o não saiba.

Peço-te que desligues o aspirador. Esse zunido incomoda-me. A poeira não é mais do que a putrefacção seca das coisas, e a putrefacção é uma atitude da vida. É preciso respeitar a poeira. Gosto de falar contigo porque não compreendes nada. Uma vez tive um amigo surdo; vivendo-se ao lado de um surdo, aprende-se como são poucas as coisas que merecem ser ditas. Tens a mais bela forma de surdez, a inteligência. Não sabes se eu digo coisas loucas ou coisas sensatas, não é verdade?

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...

No meio de muita papelada encontrei este bilhete. da CARRIS.
Único exemplar da minha velha colecção de capicuas, que não era nada pequena.

OS CROMOS DO BOTECO

DO BAÚ DOS POSTAIS

Enviado pela Sara/Luís, de Madrid, casados de fresco, em 10 de Maio de 2006

POSTAIS SEM SELO


Durante as longas e chuvosas noites de inverno quando o vento uiva lá fora, minha mulher e eu jogamos às cartas. Jogamos em completo silêncio com os nossos corpos por aposta.
Mais ou menos meia hora depois, considero que já perdi o suficiente e levanto-me dizendo calmamente: «Não joguemos mais. Já não tenho mais nada a apostar. Já perdi todo o exterior do meu corpo». O interior quero guardá-lo.
Mas a minha mulher nunca consente isso. Ameaçadoramente obriga-me a continuar o jogo. E só paramos de jogar quando eu perco o meu corpo todo. Só as minhas doenças – dores de cabeça, constipações e todas as minhas febres – ficam do meu lado da mesa. Essas noites são de facto bastante tristes.

Ingemar Leckius, poeta sueco

Tradução de Ana Hatherly

Legenda: cena do filme Saraband de Ingmar Bergman (2003)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

JANELA DO DIA


1.

Entra pelos olhos dentro que a intenção de o governo  taxar a restauração no valor máximo do IVA é, não só um desastre, mas um crime.

Demonstram os governantes, o total desconhecimento do sector, certamente viciados em comezainas em restaurantes de luxo.

Alertados, admitem rever o aumento do IVA na restauração.

Em cima da mesa estão várias propostas para que o imposto nos restaurantes não suba para 23%, incluindo uma nova taxa intermédia, mais alta do que os 13% actuais mas abaixo do que a taxa normal que consta no OE para 2012,

São assim os brilhantes rapazes das gravatas-azul-bebé.


2.

O salário mínimo nacional teve um acréscimo de apenas 88 euros desde 1974, enquanto as pensões mínimas de velhice e invalidez aumentaram apenas 38 euros nos últimos 36 anos,

3.

Justiça.

O antigo oficial da Marinha Alfredo Astiz foi condenado a prisão perpétua por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983).

Astiz era conhecido como o “Anjo Loiro da Morte” e foi considerado culpado de tortura, assassínio e sequestros e principal responsável pelo desaparecimento de quase cinco mil opositores que foram detidos e torturados na Escola Superior de Mecânica da Armada. .Desta escola saíram largas centenas de pessoas para aviões que depois sobrevoavam o rio da Prata, para onde eram lançadas vivas, num grotesco ritual semanal.

Estima-se que durante a ditadura tenham morrido 30 mil pessoas.

Em 1998, Astiz gabou-se durante uma entrevista que era o melhor homem da Argentina a matar jornalistas e políticos.

Terminou a dizer:

 Não lamento nada!

QUOTIDIANOS


A história vem hoje no Jornal de Notícias.

Dois jovens portugueses do Porto, de 13 e 14 anos, fugiram para Vigo porque queriam viver juntos.

Foram localizados pela Polícia de Vigo quando andavam a pedir esmola pelas ruas da cidade galega.

Mostraram-se arrependidos e com vontade de regressar a casa.

Os pais já os foram buscar à Galiza.


Legenda: fotografia de Elliot Erwitt.

A "VERDADE", DIZ ELE


Crónica de Manuel António Pina no Jornal de Notícias de hoje

Não sei o que será pior, se um "pivot" televisivo ter escrito um romance de "tese", o que quer que isso seja, com o qual pretende revelar ao "grande público" a "verdade" de que Cristo não era cristão e a Virgem Maria não era virgem, se a decisão da Igreja de promover comercialmente o livro levando-o a sério.
Não tenho fé religiosa alguma (nem fé alguma na literatura, quanto mais naquilo a que o "pivot" chama de literatura, da qual só vagamente conheço um episódio erótico com "sopa de leite de mama"). A questão da virgindade de Maria é matéria de fé e não me diz, por isso, respeito. Só que, justamente por se tratar de matéria de fé, não me parece que seja coisa com que se devam fazer números de circo capazes de embasbacar o "grande público" pagante.
Por outro lado, a verdade da fé é distinta da verdade histórica ou da científica, quanto mais das "verdades" de feirantes de livros. Para se poder amar e admirar uma obra como, por exemplo, o "Génesis" (isso, sim, grande literatura) é preciso suspender a incredulidade. Não me espantará, pois, que o "pivot" venha, a seguir, denunciar mais essa "fraude" da Bíblia, "revelando" ao "grande público" a verdade sobre o Big Bang. Dispenso-me, claro, de comentar o disparate de que Jesus, por ter nascido judeu, não era... cristão.
Mas a Igreja, não poderia ela ter deixado a César o que é de César, que é como quem diz o negócio dos livros ao negócio dos livros?

Legenda: Cena do filme Nosfeartu de F.W.Murnau (1922).

DO BAÚ DOS POSTAIS

Enviado pela Isabel/Germano, de Tenerife, em 4 de Novembro de 2003.

PRIMUS INTER PARES


Há no Porto um café onde se pensa. Há no Porto um café onde se escreve. Há no Porto um café onde se discute. Há no Porto um café onde se é intelectual pelo preço acessível, a qualquer bolsa, de meia de leite e torrada bijou.
Tem um ar recatado, simples: o aspecto, doce e calmo, de um domingo de Novembro. Mas não se iludam, amigos: confesso que este café me preocupa e intimida. Que me suam as mãos, quando lá entro. Que me sinto mesquinho e sem valia, quando me atrevo a mergulhar na mansuetude quase líquida da sala.
Nesse
café do Porto, os intelectuais contam-se pelo número de clientes. Há-os verdadeiros e de pacotilha, circunspectos e irreverentes, académicos e revolucionários. Há-os de todas as escolas e matizes, novos, velhos, morenos, bexiguentos, altos, ínfimos, com rendosas conezias ou dificuldades de dinheiro. Escrevem, pintam, dissertam, analisam, definem. Sobretudo definem, quer dizer: classificam de acordo com a morfologia conveniente, etiquetam, intitulam, fossilizam. É um café virado do avesso, onde as janelas dão para o íntimo da pequenez das coisas: só por se estar olhando a rua através das cortinas ondulantes, a rua e o seu sentido hieroglífico tornam-se perigosamente inexistentes. Depois, quando se vem, de novo, para a alegria do sol, é indispensável e urgente reinventar a rua sem limites até ao mais inútil e inofensivo dos disfarces. E para quê, afinal?
Pois, senhores, é bem fácil a resposta: para que, à mesma hora do mesmo dia igual, qualquer cliente possa fechar os olhos à presença do mundo, pensando, discutindo, escrevendo. E registe-se, para uso dos iletrados irrecuperáveis, e nosso próprio conforto espiritual, que isto de latim é uma bela coisa.

Daniel Filipe em “Discurso Sobre a Cidade” Sagitário, Porto 1957


Legenda: são lindíssimos os cafés do Porto. Alguns ainda resistem.
Segundo o jornalista Germano Silva, o café que Daniel Filipe invoca nesta crónica, é o Café Rialto, que já não existe. Ficava na Praça D. João I  e uma das tertúlias reunia o Daniel Filipe, o Egito Gonçalves, o Papiniano Carlos, o Luís Veiga Leitão, o António Rebordão Navarro, às vezes o José Augusto Seabra. Mantinham na altura uma colecção de poesia: Notícias do Bloqueio.
Andei à procura de uma fotografia do Rialto, mas não encontrei.
A que ilustra o texto é do Café Majestic, um ex-libris da cidade.

À CONVERSA...


Perguntaram-lhe:

O povo grego aponta o dedo a quem?

Respondeu:

O bode expiatório é o mesmo de Portugal. Consumiu-se demasiado? Sim, é verdade. Mas quem criou as condições para as pessoas consumirem mais e mais? Os que dizem que gastámos mais do que devíamos também gastaram mais do que deviam. Mas gastámos porquê? Porque alguém nos deu a oportunidade de o fazer. Durante anos e anos, outros países e a própria Comunidade Europeia pagaram para não trabalharmos, para não produzirmos. Pagou para a gente acabar com os barcos, pagou para a gente acabar com as pescas, pagou para a gente acabar com a agricultura. Agora, fruto dessas medidas, Grécia e Portugal já não recebem  dinheiro e já não têm nada para produzir.

Fernando Santos, treinador da selecção nacional de futebol da Grécia, em A Bola de 22 de Outubro de 2011.

POSTAIS SEM SELO


Os comboios sempre me fizeram sonhar. Os comboios? Quase tudo me faz sonhar, que esquisito.

De uma crónica de António Lobo Antunes

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

JANELA DO DIA


1.

Cerca de 43 milhões de pessoas estão em risco de carência alimentar na Europa e não têm meios para pagar uma refeição completa e 79 milhões vivem abaixo do limiar de pobreza.

Entre 2005 e 2009, Portugal passou do 17.º para o 9.º país com a taxa de risco de pobreza mais alta da União Europeia.

Em Portugal é pobre quem vive com um rendimento mensal (por adulto) próximo dos 400 euros.

2.

Os Estados Unidos, até ao fim do ano, vão retirar todos o seus efectivos militares do Iraque.

A guerra no Iraque começou em 2003, quando as forças norte-americanas invadiram o país para derrubar o regime de Saddam Hussein.

Após quase nove anos de guerra, só os Estados Unidos terão sofrido cerca de 4.400 baixas, para além de milhares de milhões de dólares gastos com a guerra.

Hoje o  Iraque continua a ser palco de ataques diários entre curdos e árabes, que disputam, entre si, o controlo das regiões petrolíferas do norte do país.

EM REDOR DE LOBO ANTUNES


Outubro chegado, livro de António Lobo Antunes publicado.
E não só.
Como o Natal está aí à porta, mesmo que seja um Natal de muito pouco dinheiro, já se alinham os livros dos treinadores e jogadores de futebol, dos pivot da televisão, dos Paulo Coelho, das Margarida Rebelo Pinto, livros destinados a serem oferecidos a quem não lê livros.
 Acontece até que aquele rapaz, o Rodrigues dos Santos, acordou um destes dias com o cu virado para a lua, e, gratuitamente (?)  recebeu, um chuto, forte e colocado, de publicidade, com a Igreja Católica a arrasar o último livro, que o rapaz nem sequer sabe do que fala e esse falar tem a ver com o ter escrito que Cristo não era cristão e Maria não podia ser virgem.
Não sou tipo para odiar, mas fui coleccionando, ao longo dos tempos, alguns ódiozinhos de estimação. Para referir apenas escritores, cito três: Vasco da Graça Moura, Agustina Bessa Luís e António Lobo Antunes.
O primeiro porque sendo um belíssimo poeta, um excelente tradutor, entretém-se a fazer loas a Cavaco e ao PSD, a segunda porque sim – nunca li qualquer livro e as razões não se prendem com as qualidades da senhora que, dizem, as tem profusamente, mas por histórias que vêm muito detrás  (um dia as trarei aqui) quando nunca apoiou os seus pares na luta contra a ditadura, o terceiro por se ter tornado um chato.
Nunca percebi – não deve ser para perceber – porque Lobo Antunes passou os últimos anos a denegrir José Saramago, mas o que fez transbordar a taça da paciência foi, ter dito numa entrevista, que não tinha a menor dúvida de que não há, na língua portuguesa, quem lhe chegue aos calcanhares.

Tenho a certeza que serei lido para sempre!
Humildade e vaidade em excesso sempre me desconsertam.
Curiosamente, o meu contacto com António Lobo Antunes nasce com uma entrevista que deu ao jornalista Carlos Miranda de «A Bola», quando o jornal não era o pasquim que hoje é.
Perdi o recorte dessa entrevista, mas arrisco que terá sido no ano de 1982 porque a entrevista girava à volta do primeiro livro Memória de Elefante, a entrevista em que o autor declara a sua loucura benfiquista ao ponto de se sentar nas bancadas de gorro e bandeira.
Comprei o livro, fiquei um entusiasta-mor de Lobo Antunes e comprei, mal punham pé em escaparate de livraria, os que se seguiram.
 Mas à medida que foram sendo publicados ia também crescendo um certo esmorecimento.
Os livros continuavam a ser bem escritos mas tornaram-se pouco entusiasmantes. 

Passei a demorar muito tempo para que terminasse um livro. Desde  Exortação aos Crocodilos que já não os acabo – e o que detesto não conseguir acabar um livro!... – e Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo, uma oferta natalícia, nem o iniciei.
O novo livro chama-se Comissão das Lágrimas – Lobo Antunes continua encontrar títulos felizes para os seus livros – e anda à volta do período da vida política angolana, Março 1977, que envolveu Nito Alves e Agostinho Neto.
Diz quem já leu o livro, que Lobo Antunes continua a não fazer muita pesquisa histórica apenas se orientando por vozes, vozes que lhe chegam, vozes que e com essas vozes conta a história.
 Não irei comprar o livro e, como este Natal é um Natal negro, não dou – apenas a netaria está a salvo - nem recebo prendas pelo que nem sequer corro o risco de o ter
Não é que me orgulhe – nem pouco nem muito - pela companhia, mas Clara Ferreira Alves deixa cair, na revista Actual do Expresso, palavras que compreendo muito bem:
Alguns livros são ilegíveis, puro contorcionismo e acrobacia palavrosa, discursos e vozes sem rumo nem identificação, narrativa sem estrutura, personagens apenas nomeadas que nunca chegam a formar-se, muito menos a identificar-se fora da cabeça do escritor. Ele sabe do que está a falar, os leitores. O escritor deixa os livros.
Estas palavras fazem-me lembrar o meu pai, quando dizia que, mal dos escritores que tem de ir a casa de cada leitor explicar o que escreveu, o que, no fundo, pretendeu dizer.
Dentro desta amargura gostaria de ressalvar que aprecia muito as crónicas do António Lobo Antunes que as leio, com agrado e gosto, em jornais e revistas e depois, mal sejam reunidas em livro, apresso-me a comprá-lo.
As crónicas de António Lobo Antunes falam do quotidiano das gentes. Numa linguagem simples, clara, bonita e terna.
É pelas suas crónicas que ainda saúdo António Lobo Antunes.

DO BAÚ DOS POSTAIS


Enviado pelo Domingos João, da Cornualha, em 15 de Agosto de 1991.

QUOTIDIANOS


Não preciso de acreditar na existência de um deus para reconhecer que a ideia de Deus é bela e, continuando ateu, dar-me perfeitamente bem com essa ideia. (A existência de Deus seria, aliás, uma boa partida para muitos que se dizem crentes) E estou convencido de que sem a beleza da ideia de deus, tão corrompida pelo proselitismo religioso, o mundo seria decerto um lugar ainda pior do que é hoje.

Manuel António Pina

POSTAIS SEM SELO


É na maneira de esmagar a beata no cinzeiro que se reconhecem as mulheres cruéis.

Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

JANELA DO DIA


Hoje, na Presidência da República, durante seis-horas-seis, esteve reunido, o Conselho de Estado.

Duas doutoras, dez doutores, dois juízes, dois professores, dois senhores e um general, mais sua excelência o presidente Cavaco, reuniram-se num salão nobre para tomar o pulso ao país.

 Esperava – esperava mesmo? -  a populaça que algumas novas lhe dessem das nuvens negras que nos envolvem, da borrasca que em cima nos caiu.

Afinal tanto tempo para nada, ou melhor, para a paridela de um comunicado com seis-pontos-seis, em que não há uma palavra, uma única sequer, que já não tivesse dita por todas as excelêmcias do reino.

O paleio pode ser lido, na íntegra, aqui,

Dou nota dos dois últimos pontos, não sei bem porquê, não sei bem para quê.
Como se os portugueses já não soubessem – e bem! O que lhes vai acontecer.

O Conselho de Estado manifestou ainda a sua confiança em que Portugal saberá estar à altura dos desafios que tem à sua frente e em que será uma voz activa em defesa da moeda única e do reforço dos princípios da coesão e da solidariedade que alicerçam, desde há várias décadas, o projecto da construção europeia.

O Presidente da República e os Conselheiros de Estado entenderam ainda transmitir aos seus concidadãos uma mensagem de esperança, na certeza de que Portugal saberá ultrapassar as dificuldades com que actualmente se defronta, sendo essencial que os Portugueses congreguem esforços e vontades e tenham uma atitude activa de cooperação e solidariedade.

Já agora:

Quanto é que custou – money, money – a reunião?

O que terá dito o Alberto João, ou o que terão dito ao Alberto João, para na fotografai tão divertidos estarem?


Legenda: fotografia de Miguel Baltasar tirada do Delito de Opinião.

SARAMAGUEANDO


Arrancou hoje a Semana de José Saramago em Nova Iorque. Durante cinco dias, a cultura portuguesa faz-se representar através de conferências, exposições, concertos e exibições do filme José e Pilar, numa organização do Arte Institut e da Fundação José Saramago. O programa encerra com uma homenagem a José Saramago no dia 01 de Novembro no Museu de Arte Moderna (MoMA), em que será exibido o documentário "José e Pilar".

OS CROMOS DO BOTECO

DO BAÚ DOS POSTAIS


Aveiro, novamente o Helder em Nariz, Palhaça, 31 de Julho de 1967

SALVE, ÀGUIAS DE DEUS



A coisa aconteceu, era Manuel Damásio presidente do Benfica – o pior presidente de sempre, e o Glorioso tem tido muitos… - e sua esposa, Margarida Prieto, afligia-se com os jogadores a benzerem-se, a rezarem por tudo o que era canto do balneário.

A dama disso deu notícia ao esposo, e ambos, ou apenas ela como mandante-mor-do-jet-set, concluíram que seria uma ideia muito catita, a construção de uma capela no antigo Estádio da Luz.

Assim se fez.

Quanto custou não se sabe.

Também não há notícias da frequência da capela, mas sendo a dita católica, não se sabe o que passou com os que acreditam que  há mais que um deus, por demasiado grande ser para uma só religião.

A José Cardoso Pires, agnóstico militante, às 6h30, da manhã Deus estava de costas para mim e eu escrevia, que quando estava chateado dizia que a culpa é dos padres, não terá passado despercebido o ridículo da história, e numa crónica, publicada no Público de 26 de Março de 1995, com  o seu fino humor, deixou relato:


«Ave, aquilae Dei!» Foi assim, perfilada no clássico e no eterno diante dos televisores, que a comunidade benfiquista de todos os continentes saudou a cristianização do seu clube, que teve lugar há dias na cerimónia inaugural da capela do Estádio da Luz.

Ali, em hora única, universal, a fé clubista ascendeu à fé teológica revestindo de nobreza a soleníssima humildade do significado do acto. E então vimos o presidente em homenagem, aos pés do Senhor: assim como a planície sagrada transluz ao alvorecer dos querubins, assim brilhava ele de comoção «ab imo pectore», banhado em suores ardentes. E vimos o Celebrante de Deus, no branco-ouro das suas vestes, abençoar a verdade desportiva em nome do entendimento dos contrários: desse voto de pureza jamais podereis esquecer-vos, anunciavam os anjos cantadores que pairavam sobre o altar. E por baixo deles, à mão sinistra do presidente das águias cristãs, estava a primeira dama do império, sua esposa; recordemo-la, prestemos-lhe gratidão. Trajava de vermelho qual «papoila saltitante» por sobre as rimas do nosso hino e, voltada para o mundo, de evangelho aberto, lia capítulos e mensagens de promessa e exaltação. Em verdade se diga que, ao ouvi-la na sagração daquele retábulo de família, sentimos a paz sobre as angústias que nos emudeciam (era o dia do confronto com os do Milan em fogo, não o olvideis jamais, ó ímpios!); mas eis que sobre nós desceu a sombra protectora da santíssima bênção e logo o desespero se converteu em glória e a fé se confirmou numa promessa de triunfos que se iriam prolongar para todo o sempre dos sempres dos séculos, ámen.

Se Ruy Belo fosse vivo, ele que, como eu, alinhava com o Benfica, além de escrever futebol clandestino, não deixaria, tenho a certeza, de eternizar este dia de sagração num poema austero e campeador, digno de ser lido «a cappela» como um cântico transcendente. Declamado em moldura de arcanjos por uma alma iluminada, e com o estádio dos campeões em cenário de fundo, que melhor horizonte para te receber, Senhor?

Aceita, pois, aceita-nos. Faz com que a ave renascida, esta águia rubra que agora ganhou outro voo, suba alto e altíssimo, «sem temer as feras/e para lá das muralhas e fronteiras», como ordena San Juan de La Cruz, apóstolo dos poetas-mártires e magnífico universal.

Sim, somos católicos; o catolicismo é «uma religião desportiva», diz uma voz do filme «Palombella Rossa», de Nanni Moretti, perdida num purgatório metafórico da consciência política que o realizador localizou num campeonato de piscina. Para esse personagem, a prática desportiva, como a prática religiosa mais ecuménica não são um frente-a-frente dos bons contra os maus, mas dos bons contra os bons -- todo o «fair» desportivo assenta nisso, toda a humildade cristã vem daí.

Estádio, Igreja, política, as três praças dos mistérios públicos. Nanni Moretti tinha sido certeiro na sua associação. Mas estamos em hora mística, renovadora. Cumpre que falemos de Deus e das águias consagradas e só disso. Voltamos à cerimónia, continuamos presos à capela que se abriu para nós naquela quarta-feira de esperanças como uma caixinha de promessas. Vemo-la no televisor, é como se estivéssemos ainda a vê-la na sua intimidade acolhedora. Discreta, em luz de seda.

Ah sim, naquela altura não duvidávamos: a capela era a antecâmara das vitórias mais ousadas. Absolutamente. De resto, «no Benfica tudo é possível», tinha dito antes o nosso presidente. E nós sabíamos que sim. Que a partir dali Deus iluminaria o nosso irmão Cannigia e lhe daria pernas e argúcia para que usasse a bola em surpresa e confidência; e faria do campo verde um prado de liberdade das águias triunfadoras; e em tudo se voltaria a sentir a confiança no olhar veloz, no voo de presa e nos lances majestosos que tornam inatingíveis os campeões por destino.

Depois foi o fechar da cerimónia. O sinal da cruz sobre o branco final.

«Acta est fabula», alguém disse. E passámos ao estádio das águias onde, soube-se mais tarde, pairava, alheio a tudo, um estranho vento de maldição.

OLHAR AS CAPAS


Lisboa Livro de Bordo

José Cardoso Pires
Capa: Henrique Cayatte
Publicações Dom Quixote/Expo 98, Lisboa, 1997

A última Vista da Cidade será uma cortina de gaivotas enfurecidas a levantarem‑se entre mim e o Tejo.

Na altura estarei, ou estou ainda, sentado num café‑snack do Terreiro do Paço junto ao cais dos cacilheiros, com uma larga vidraça a separar‑me do rio. Café Atinel, que nome mais estúpido. Olho as mesas vazias e pergunto‑me por que razão é que um sítio assim, tão privilegiado, consegue estar desconhecido. Por mim não quero outra coisa: barcos que chegam, barcos que partem, gente de entrar e sair a servir‑se ao balcão, e eu sentado em cima do Tejo.

Tal como estou tenho a cidade pelas costas. Comércio, multidão, Europa, fica tudo para trás. Lá as pessoas andam todas a perguntar as horas umas às outras, enquanto que neste reduto para aqui esquecido sabe‑se do correr do dia pelo mudar da cor do Tejo, e não me digam que não é uma felicidade estar‑se assim, à mesa sobre as águas, com gaivotas a saírem‑nos de baixo dos pés e a passarem‑nos a dois palmos dos olhos num bailado de gritaria.

Tempo bom, o desta solidão. Tempo melhor ainda, lembram os eméritos de biblioteca num ulissiponês de fazer inveja, quando se via a olho a nu o Promontório da Lua por toda essa costa além. Tempo, dizem, em que nas margens da Outra Banda havia areias que escorriam ouro (Marco Terêncio fala disso) e pastagens celestes onde as éguas emprenhavam pelo vento. Tempo de poeiras luminosas e lágrimas lunares. E de pérolas. E de tritões. Tritões cantadores como aquele que consta da Descrição da Cidade de Lisboa de Damião de Góis.

"Noutros tempos, longos tempos, havia em Lisboa uma sereia..." Conheço uns versos de Robert Desnos que começam desta maneira mas é melhor ficar por aqui porque o Tejo não é de fábula nem de poema e corre sem nostalgias. E Lisboa a mesma coisa, disso podemos estar nós bem seguros. Só que, com o saber dos séculos e os sinais de muito mundo que a perfazem, sugere várias leituras, e daí que a cada visitante sua Lisboa, como tantas vezes se ouve dizer.

Daí também que nós, os que somos dela, lhe estejamos tão errantes na paixão. Um dia pode acontecer que, sentados como agora sobre o rio, a tentemos ler pela voz dos outros e então ainda nos sentiremos mais errantes, mais incertos. Entre uma Lisboa de Tirso de Molina, saudada como a “oitava maravilha”, e a Lisboa de Fielding, o genial, que a amaldiçoou como um pesadelo leproso, correm águas insondáveis. Beckford viveu-a em palácio, Sade inventou-a num cárcere de rancores. “Lisboa oferece uma apreciável variedade de escolhas para um nobre suicídio”, escreveu um dos grandes narradores dela, Antonio Tabucchi. Vozes, tudo vozes. Olhares. Memorações.

Quando por fim fechamos a página onde líamos a cidade, descobrimos que a vidraça do café está toldada por uma dança de gaivotas em turbilhão e que não há Tejo. Que desapareceu por trás duma desordem de asas e já não é prenúncio de oceano.
Então, ternamente, confiadamente, reconhecemo-nos ainda mais ancorados à cidade que nos viu partir.

E AGORA, JOSÉ?


José Cardoso Pires.

A mãe, como os salmões, gostava de desovar a norte e, numa obscura aldeia beirã, São João do Peso, no concelho de Vila Real, nasceu, a 2 de Outubro de 1925, o mais o mais lisboeta dos escritores portugueses, intimo dos bares, da noite da cidade, cidade onde veio a morrer, na madrugada de 26 de Outubro do ano de 1998. Tinha 73 anos.

Ainda tentou dançar uma valsa lenta com a velha senhora mas, como sempre, ela foi mais forte.

De Profundis.

Em 50 anos escreveu dezoito livros que, hoje, a não ser os do costume, ninguém lê.

Não acredito nos resultados práticos de uma autor que se preocupa em escrever para as massas.

O que custa ma literatura é que só tarde demais se sabe se valeu a pena, disse-lhe um dia Luís Sttau Monteiro.

Para escrever refugiava-se na sua casa virada para o lastro mar da Costa da Caparica, onde, um dia, fritou uns tordos que Fernando Assis Pacheco, bom gostador, achou fantásticos.

Escrevo com dificuldade. Penso muito com o aparo (a definição vem do Óscar Lopes, não de mim próprio). De qualquer maneira, escrevo cada vez com maior dificuldade e não vejo que isto seja saudável, nem condição para se escrever bem, disse, numa entrevista a Baptista-Bastos, publicada em Fevereiro de 1967.

O seu romance O Delfim, antes de ser publicado, teve quatro versões.

No dia 18 de Agosto de 1967, no café Bocage, encontra José Gomes Ferreira (Dias Comuns, vol. III), manda vir um conhaque e desabafa com sinceridade transida:

- Há sete anos que não publico uma obra original e não queria reaparecer com um livro fraco…

(Sinceridade é o que não se consegue esconder de nós mesmos)

- Mas O Delfim? Estamos todos à espera do Delfim…

- Já fiz quatro versões… Mas cheguei à conclusão de que tenho de reescrevê-lo…

Fitei-o com ternura. Bom Cardoso Pires! Implacável consigo mesmo. Sôfrego de vida, de amor e de êxito – mas de êxito sem transigências literárias, baseado em livros puros.
Sôfrego de caça, de mulheres, de bons vinhos, de Whislies, de touros… Sôfrego de repetir os prazeres sagrados pelos outros até encontrar os próprios…

Eu com a sensação agradável de que o Cardoso Pires ainda não se habituou à fatalidade de ter talento. Ainda se espanta.

José Cardoso Pires: só lhe faltam mais alguns pequenos vícios para ser perfeito, escreveu Alexandre Pinheiro Torres.

António Lobo Antunes, amigos de grandes cumplicidades, desenhou um retrato, à la minuta, de José Cardoso Pires:

É difícil, num meio literário pequeno e acanhado, cheio de invejas e de intrigas, encontrar uma pessoa com uma postura ética em relação à vida, de uma lealdade, de uma coragem, de uma amizade cheia de pudor, e de um rigor como se encontra em José Cardoso Pires, o que faz com que ele seja, de facto, enquanto homem, um homem de uma qualidade muito rara.
Quase todos os seus livros são fábulas. Fábulas sobre o poder, e muitos deles mesmo têm a estrutura de um romance policial, o que é extremamente curioso. E, através de meios aparentemente económicos, através de uma escrita despida de adjectivos, de metáforas, de imagens, de uma escrita escrita no osso, de uma escrita escrita com o gume da faca, consegue dar-nos da vida e das pessoas uma imagem de um apuro artístico e de uma verdade humana difíceis de encontrar na literatura portuguesa de qualquer época.