terça-feira, 31 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


Escusado será dizer que tosses, principalmente durante a noite, quando estás deitado de barriga para baixo, e, naquelas noites em que as tuas vias respiratórias estão excessivamente obstruídas, levantas-te da cama, vais para outro compartimento e tosses furiosamente até deitares cá para fora toda a porcaria. O teu amigo Spiegelman (o fumador mais furioso que conheces), sempre que lhe perguntam por que fuma, responde invariavelmente: «Porque gosto de tossir.»

Paul Auster em Diáriode Inverno

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OS IDOS DE MARÇO DE 1975


Nota final da II Parte «A Revolução Alarga o Passo» de Portugal Depois de Abril de Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Edição dos Autores,  Lisboa, Maio de 1976.

OLHAR AS CAPAS


O Revólver do Repórter

Eduardo Guerra Carneiro
Capa: Henrique Cayatte
Editorial Teorema, Lisboa 1994

Por vezes o repórter está sentado, quase de mãos no regaço, à espera que as notícias lhe caiam no colo, já maduras. Mas, noutras alturas, busca e rebusca a cidade, por tabernas e bares, e os factos aí estão a saltar, fresquinhos, vivos da costa.
Personagens são às dúzias, histórias dão para encher muitos blocos de notas. Trata-se então de seleccionar, separar o trigo do joio, guardar na manga alguns recados para outro dia, outra ocasião.

segunda-feira, 30 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


Há pessoas tão pobres no mundo, que Deus não lhes pode aparecer a não ser sob a forma de pão.

OS TESOUROS DE SINATRA


Frank Sinatra com Grace Kelly, 1956.



Telegrama de Grace Kelly para Frank Sinatra cumprimentando-o pelo recebimento do Óscar pelo filme From to Eternity.
Pouco depois de ganhar o prémio, Sinatra viria a protagonizar, em 1956, High Society com Grace Kelly e Bing Crosby. O filme, cuja banda sonora era de Cole Porter, teve um sucesso tremendo tendo sido o último trabalho de Kelly antes de ela se mudar para o Mónaco e se tornar Princesa Grace.

Charles Pignone

OS IDOS DE MARÇO DE 1975


30 de Março de 1975

Desde que no dia 24 foi dado conhecimento público da existência do ELP, segundo o matutino O Século, desse mesmo dia, uma organização secreta, com estrutura tipo militar, que pretende desenvolver e levar, até às últimas consequências, uma guerra revolucionária com vista à alteração da situação política em Portugal e territórios africanos sob administração portuguesa, que não param as notícias sobre a sinistra organização.

Na sua edição do dia 26, o vespertino A Capital revela que o ELP foi concebido e planificado nos laboratórios da CIA e que Frank Carlucci, embaixador norte-americano em Lisboa, é mesmo um operacional estratega da agência de espionagem.

Luís Miranda Rocha na Vida Mundial:

No fim de semana o País foi alertado para a existência duma organização clandestina de ideário fascista e intenções liquidatárias para o que já se vem chamando a «jovem democracia portuguesa». Trata-se de salazaristas, têm a sua actividade centralizada em Espanha, a sua actuação dirigida para Portugal (de onde terão fugido, e onde se encontram). Alguns elementos já foram detidos, procede-se a mais consequentes averiguações.


Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

Legenda: perfil de alguns conspiradores do ELP, num restaurante à entrada de Salamanca. Fotografia disponibilizada pela Região Militar do Norte e retirada de Os Dias Loucos do PREC.

OLHAR AS CAPAS


Não Percas a Rosa

Natália Correia
Capa: Fernando Felgueiras
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Dezembro de 1978

30 de Março de 1975
Começa a ver-se no escuro. O 11 de Março é um dos patamares da escalada comunista. Recolho informações e vou construindo um quadro que desfez a irracionalidade da estrambótica intentona.
Spínola conspirava. Com ele ou por outras vias conspiravam «todos» os militares que tinham olhos para ver uma influência dominante do PCP no MFA. Spínola retraía-se perante a impaciência dos militares que defendiam a urgência do putsch. Havia que aguardar as eleições. Se os resultados que se previam imponentes na grande área democrática não fossem respeitados, então sim, dariam o golpe militar restaurador das liberdades prometidas pelo 25 de Abril.

OS ÚLTIMOS SÃO OS PRIMEIROS


Tal como ficou prometido em AH!...AS ABÓBORAS!...

QUANDO OS RELÓGIOS BATEM TÃO CERTO


Quando os relógios batem tão perto
como dentro do próprio coração,
e as coisas com vozes débeis
perguntam umas às outras:
- Estás aí? - :

então não sou o mesmo que de manhã acordou,
a noite dá-me um nome
que nenhum daqueles a quem de dia falei
ouviria sem angústia -

Cada porta
cede dentro de mim...

Rainer Maria Rilke, citado por Ana Teresa Pereira em A Cidade Fantasma, Editorial Caminho, Lisboa Março de 1993.

domingo, 29 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


É este o problema com a bebida, pensei, enquanto me servia dum copo. Se acontece algo de mau, bebe-se para esquecer; se acontece algo de bom, bebe-se para celebrar, e se nada acontece, bebe-se para que aconteça qualquer coisa.

Charles Bukowski

Legenda: fotografia de Eve Arnold

POEMA PARA A CATARINA


A criança crescendo aprende o medo
sabe do vento os ombros intranquilos
descobre a gestação da flor      o riso
e a frequência anónima dos dias.

Arrisca
inventa o pão com lábios antiquíssimos
a cor feroz do trigo e da magia
alonga o espaço circular do mundo

Hélia Correia

(1970) 

DOÇURAS


E pronto.
Num domingo à tarde chegam ao fim as Doçuras.

OLHAR AS CAPAS


Poesia Toda
1º Volume

Herberto Helder
Capa: Alda Rosa
Plátano Editora, Lisboa, Fevereiro de 1973

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que quer dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas de melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha cara ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.

PORQUE HOJE È DOMINGO






Domingo de Ramos.
A um passo da Páscoa.
Um grande sorriso e uma canção de que eu muito gosto.
E são tantas.
Bom domingo!

sábado, 28 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes.

Manuel António Pina

Legenda: fotografia Marion Post Wolcott

QUE BOM NÃO TER DE DAR PELO NOME DE CRÍTICO


Não é preciso dizer nada. Sequer o nome dele. A ventania, toda a noite e dia, disse tudo. Se é verdade que o vento leva as palavras, as palavras dele não eram palavras: eram o vento. E o vento vem sempre ter connosco. Volta.
Não é preciso citá-lo. Dele se pode dizer que conseguiu, com divina dificuldade, dizer tudo o que tinha para dizer, se dizer é tornar ditas as coisas indizíveis das quais qualquer língua nos separa, não sendo a portuguesa a mais separadora.
Morreu quando disse que morreu. Escrever é uma coisa que se faz bem. Dizer é outra coisa. Não é qualquer um que diz e deixa dito. Contando pelos dedos não é quase ninguém. Contando pelos olhos que lêem e pelo barulho que levam à barriga da alma era só ele.
Tudo o que ele disse ficou dito. Não era maior do que ele: era do mesmo tamanho do que ele. Esta não é a melhor maneira. É a única maneira de dizer: a glória. Que não é só a glória da obra dele mas também a glória que era ele.
A beleza e o poder, a mentira, a invocação, a propaganda da poesia, a abertura da cabeça para o corpo: todas estas magias só eram humanas nele. Para ele apenas faziam parte da prática de viver. Para ele - apetece-me exagerar, como ele exagerará sempre - eram apenas pela poesia.
A poesia é que é. Ele é o poeta do que a poesia é. Mas, acima de tudo, a morte dele - um ser humano que, se não tivesse escrito um só verso, não poderia ser mais amado - é uma tragédia para a família e para os amigos que o amavam.

Legenda:
O título, é uma frase tirada de Retrato em Movimento de Herberto Helder.
A capa é a do Público que assinala a morte de Herberto Helder.
O jornalismo que se pratica pelo Público, não é o mais recomendável mas, como escreveu o Vitor Dias, de capas percebem eles.
O texto é a crónica de Miguel Esteve Cardoso publicada no Público.

OLHAR AS CAPAS



Trocar de Rosa

Eugénio de Andrade (Traduções)
Capa: João B.
Na Regra do Jogo, Lisboa, Janeiro de 1980

ENSAIO DE CÂNTICO NO TEMPLO

Ah, que farto que eu estou da minha
cobarde e velha terra, tão selvagem,
e como gostaria de abalar
para o norte
onde dizem que a gente é limpa e nobre, culta e rica,
viva, livre, feliz!
Então, na confraria, os irmãos diriam
reprovando: «Como pássaro que deixa o ninho,
assim o homem que deixa o lugar»,
enquanto eu, bem longe, riria
da lei, da sabedoria
antiga desta terra tão ávida.
Porém de que me serve prosseguir um sonho -
aqui  hei-de ficar até morrer,
pois cobarde e selvagem também eu o sou,
e além disso amando
com dor desesperada
esta pobre,
suja, triste, desgraçada pátria minha. 


sexta-feira, 27 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


Escolher a tempo a nossa morte e amá-la.

António José Forte

Legenda: imagem tirada de Huff Post Science

OLHAR AS CAPAS


Do General ao Cabo Mais Ocidental

Álvaro Guerra
Capa e ilustrações: Cruzeiro Seixas
Edições Afrodite, Lisboa, Março de 1976

o poder é só um
o de quem pode e mais nenhum
a verdade rafeira e envergonhada esconse-se num verso atraiçoado abanando o rabo e ladrando à lua a vida de cão que lhe trouxe a camuflada revolução
o absoluto gesticula na continência mudada em punho erguido por obra e graça da fulminante leninina matéria de formação acelerada de coronéis e ainda mais de capitães-generais em mea culpa de massacres coloniais.
Saiba
porém
o inimigo que também viver é comigo
de cravo na mão o digo
nesta luta sem luto que o projecto esgrime com a herança
a mor das coisas idas
ledas
desejo libertação
amor também cama comum
e pão
em verde lida pela liberdade e vida

OS TESOUROS DE SINATRA


Como Maggio, 1953.
O mais aclamado papel de Sinatra no cinema foi o do soldado Angelo Maggio em From toEternity. O papel de vira-latas estava a tal ponto ligado à suas raízes e era tão real para ele que inspirou a sua interpretação ao ponto de lhe ser atribuído um prémio da Academia.


Como actor de cinema, tento sempre lembrar-me de três coisas. A primeira éd que tenho sempre de saber pior que estou naquele filme, perceber todas as reações da personagem que estou a interpretar, perceber por que está ele a fazer o que está a fazer. A segunda é que tenho de conhecer o guião. A terceira é que tenho de aprender e ouvir o texto das outras personagens; saber só o meu texto não funciona.

Frank Sinatra


Com Montgomery Clift e Burt Lancaster, 1963.
Uma das facetas mais animadoras de trabalhar em From to Eternity, para Sinatra foi a oportunidade de trabalhar com a nata dos actores de Hollywood; muitos desses actores cedo perceberam que Sinatra estava a fazer uma interpretação digna de um Óscar.

quinta-feira, 26 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


Como posso eu começar alguma coisa de novo com todo este dia de ontem em cima de mim?

Leonard Cohen

DO BAÚ DOS POSTAIS


Chegado hoje de Hamburgo e enviado pelo meu amigo Luís.

OS IDOS DE MARÇO DE 1975


26 de Março de 1975

POSSE do IV Governo Provisório chefiado por Vasco Gonçalves e composto por personalidades do PS, PSD, PPD, PCP, MDP/CE, bem como personalidades independentes, algumas oriundas da esquerda.
No discurso de tomada de posse, Vasco Gonçalves realça que a diminuição da actividade económica vai orientar-se essencialmente na política de consolidação da política anti-monopolista do programa do MFA e na defesa das classes mais desfavorecidas. Esta política foi iniciada com a nacionalização da Banca e dos Seguros e com intervenção decidida em algumas empresas-chave de vários sectores da actividade económica.
Para a consecução desta finalidade é necessário pôr a funcionar uma nova economia que conduza a uma verdadeira democracia política, económica e social.
A crise que atravessamos será vencida na medida em que consolidarmos as conquistas já feitas num sistema económico mais avançado.
Como intenção do governo figura, entre muitas outras, o desencadear do processo da Reforma Agrária.

OS ACORDOS de Alvor são diariamente violados e multiplicam-se confrontos entre os movimentos de libertação que são parte do Governo Provisório de Angola.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

NAS BELAS LIVRARIAS DE BARCELONA


Nas belas livrarias de Barcelona
serpenteando, taciturno, pelo labirinto de estantes
dei-me conta que morreras.

Não mais te levarei livros, pai,
nem caminharás, fumando, pelas ramblas.
Não te perderás nos odores da cidade velha,
nem beberás cerveja pelas esplanadas.
não te indignarás pela infantil monarquia
e seu infantes e infantas de opereta.
Não levantarás escárnio sobre a soberba imobiliária
da burguesia catalã
nem clamarás contra Franco e a aviação ítalo-alemã
e seus mortos dilacerados, pessoas e cavalos, aqui,
na Praça da Catalunha.

Não, tu já não habitas os cafés do Porto,
fechado na lenta música do teu silêncio.
Já não abres, ardendo, os livros
página a página(tua fronte
sustentada em frágeis mãos, magros dedos;
teu barro trabalhado nos sulcos da face;
tua inquietação muda, resignada;
- teu olhar de ternura pelo mundo).

Que alucinação, imagina, sofri
ao passar noutro dia nesses cafés,
de saber-re ausente e ainda assim ver-te,
qual anjo adormecido no côncavo das palavras.

Morreste, pois deixaste de ser visto.
Mas jamais me reconciliarei com a tua morte
e esquecer não é o meu ofício.


João Teixeira Lopes

Barcelona, 5 de maio de 2011

Colocado por Nicolau Santos na sua coluna de Economia no Expresso s/d

OLHARES


Lisboa, Portas do Sol.

quarta-feira, 25 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO

Dispo
a saudade
como quem veste
manga curta
para receber
a Primavera.

OS IDOS DE MARÇO DE 1975


26 de Março de 1975

O EDITORIAL do nº 13, saído neste dia, do Boletim Informativo das Forças Armadas, faz eco que só avançando, sempre em frente, se dará cumprimento às promessas do 25 de Abril.



Fontes:
- Acervo pessoal;

Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


O 1º Encontro Nacional de Editoras Discográficas Independentes decorreu, no Seixal de 25 a 26 de Março de 1998.

MARCADORES DE LIVROS


terça-feira, 24 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


Morrer era agora a minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la pormenorizadamente

Herberto Helder em Retrato em Movimento

Legenda: fotografia de  Sheela Prakash

OLHAR AS CAPAS



Os Passos em Volta

Herberto Helder
Capa: José Brandão e Keith Trickett
Editorial Estampa, Lisboa, Novembro de 1970

Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos arredores, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Passara o natal. Alguma coisa desaparecera, alguma coisa importante em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro, nem livros, nem cigarros. Não tinha trabalho, nem ócio, porque estava desesperado. Por isso, passava o dia e a noite no meu quarto. Sobre a linha ao lado, em baixo, rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus, quando os comboios trepidavam nos carris, e quando apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho de Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus- com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus, um comboio- algo que existe, não há dúvida, mas algo absurdo, uma coisa que parte com um destino confuso que pode ser Antuérpia, que possivelmente (evidentemente ) não era.
Às vezes vinha à janela e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho de ferro. No entanto, antes de lá chegar, o meu olhar encontrava uma árvore esquisita que vivia em baixo num pequeno quintal burguês. Esta árvore metia-me medo como uma esperança em mim próprio, até como uma esperança mais vasta no destino dos homens. Dos homens? Há em mim a qualidade da confiança, mas sou um desesperado. Sinto-me, contudo, um homem. Possuo a propriedade do amor. Amo a minha semelhança com todos os homens, mas desespero junto desse mesmo amor. Estou fechado num quarto. Nem posso fumar. Não posso descansar. Imagino que é possível partir de Antuérpia, depois de lá ter chegado num desses comboios rangentes. Porém, Antuérpia não é um ponto de chegada. É uma cidade como as outras: com bares e nevoeiro, o silêncio das coisas, as pessoas, a matemática impenetrável das suas multiplicações e desmultiplicações, e com a música dos minutos que se corrompem. Em Antuérpia há prostitutas, há um calor humano degradado, e a embriaguez. Lá também se morre. Talvez alguém um dia tenha ressuscitado em Antuérpia. Não sei.
O lugar em que penso é difícil, sempre difícil.
Sei que ao norte existe o rio Escalda. De lá parte-se, alcança-se o mar. Uma vez alguém me disse:
- A gente que nasce e vive junto do mar é mais pura.

HERBERTO HELDER (1930-2015)


Corria o Natal de 1970 e eu encontrava-me na Livraria Portugal à procura de um livro para oferecer a mim mesmo.

Herberto Helder apenas o conhecia de nome, referido nos suplementos literários que, uma vez por semana, os jornais publicavam.

A capa colorida da 3ª edição de Os Passos em Volta de Herberto Helder, publicado pela Editorial Estampa, chamou-me a atenção.

Peguei-lhe e os olhos caíram logo nas palavras iniciais.

Gosto imenso de começos de livros. Nem todos ficam para a minha história.

Este ficou.

- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade enorme de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio.

Herberto Helder morreu ontem.

Tinha 84 anos.

Fugia de holofotes, multidões, mediatismos.

Em 1994, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa pela sua obra que, segundo o júri, iluminava a língua portuguesa.

Uma pipa de massa para quem tinha uma reforma curta.

Mas Herberto Helder recusou a distinção.

António Alçada Baptista e Clara Ferreira Alves, em nome próprio e do Expresso, tentaram demovê-lo.

Conta o Alçada Baptista:

O Herberto estava na sala. Falou à Clara e depois a mim.

Eu disse, meio a brincar meio a sério:

 - Vimos numa difícil missão...

Ele, com toda a simplicidade dele, disse-me logo que não, calculando que era um prémio.

Não foi possível demovê-lo e sentimos que aquilo era tão fundo e tão importante para ele que não devíamos insistir. Ele disse:

- Vocês não digam a ninguém e dêem o prémio a outro...

- Não pode ser, o júri escolheu-te a ti, a decisão está tomada; respeitamos que digas que não...

Ele ainda acrescentou:

- Peço que sejam meus mandatários e digam ao júri que eu agradeço mas não posso aceitar.

Eu queria transmitir bem que não havia aqui nenhuma arrogância: a sua recusa não era contra ninguém. Era uma decisão do seu eu mais íntimo, que logo nos mereceu o maior respeito.
Eu só lhe disse:

- Eu já gostava de ti e vi agora que é possível ainda gostar mais.

Em Julho do ano passado publicou o seu último livro.

O título diz tudo: Morte Sem Mestre.

Um escritor como Herberto não necessita de palavreado encomiástico.

Porque sempre o considerou inútil e perene de hipocrisia.

Não gostava de dar entrevistas, nem de se deixar fotografar.

Foi um Natal feliz aquele de 1970.

Gosto de poetas misteriosos.

Gosto de autores que não consigo entender.

Sempre passos em volta.

Em volta sabe-se lá de quê.

Maria Teresa Horta:

Quantas vezes me prendi eu nas malhas envolventes da poesia de Herberto Helder e senti medo de não ser capaz dos seus poemas.

Luna Levi sobre Photomaton e Vox:

Devorei-o de um fôlego, num acesso de bebedeira deslumbrada.

É suficiente.

O resto é pegar nos seus livros.

Alguns de há muito esgotados.

Mas, certamente, irão ser reeditados.

Não os percam!

DOÇURAS


Biscoitos de avelã para um dia com o namorado...

QUOTIDIANOS

segunda-feira, 23 de março de 2015

RITMOS


Porque um blogue não é só quem o faz – é também quem o lê.
Um exercício de respiração colectiva.
Não importa quantos são.
Onde nos lêem.
Juntos, acertamos um ritmo.
Não o mesmo, possivelmente.
Mas um ritmo.

Se fores escritor vê lá como tratas o leitor. Escreve sempre com receio de que alguém te leia.

Eduardo Valente da Fonseca

Não escrevo para ninguém.
Seria a última coisa, rebaixar-me a isso! Escreve-se pela coisa em si.

Céline

Supõe-se que todo o livro tem, pelo menos, dois leitores: o que o escreve e o revisor de provas. Mas claro, não passa de uma suposição.

Gustav Flaubert

Em Salónica conheço alguém que me lê. E em Bad Nauheim. Já são dois.

Gunter Eich

Escrever é que é o verdadeiro prazer, ser lido é um prazer superficial

Augusto Abelaira


Legenda: ilustração de Norman Rockwell

OS TESOUROS DE SINATRA


Com Dean Martin em 1958.

Alguns dos momentos mais felizes de Sinatra eram aquele em que podia combinar o amor pelo trabalho com os amigos e a família que ele adorava. Aqui, vemo-lo a falar com Dean Martin enquanto ambos trabalhavam no álbum «Sleep Warm» de Martin, cuja direcção de orquestra foi de Sinatra.


«É raro eu ouvir as minhas próprias gravações. Uma vez, há muitos anos estive em Catalina Island num lugar chamado Christian+s Hut, e o Duke Wayne estava no bar. De repente, o juke box começou a tocar «One For My Baby, e o John Wayne virou-se para mim e disse: “Que diabo ouves tu quando estás acordado às três da manhã?”»

Frank Sinatra

OS IDOS DE MARÇO DE 1975


23 de Março de 1975

NUMA ASSEMBLEIA, realizada em Sacavém, foi aprovado que uma comissão directiva provisória passou a gerir o Sindicato dos Metalúrgicos do Distrito de Lisboa, que conta com 64 mil associados.

O DECRETO-lei nº 238/75 torna obrigatório o seguro de responsabilidade civil automóvel a partir de 1 de Julho.

MAIS DE 400 trabalhadores da RTP aprovaram uma moção na qual manifestam o maior apreço pela integridade e rectidão de conduta do major Ramalho Eanes e pedem que ele volte a dirigir a empresa.
Ramalho Eanes demitiu-se após saber que, na reunião plenária do MFA, realizada na madrugada de 12 de Março, o seu nome surgiu entre os acusados de envolvimento na tentativa de golpe militar do 11 de Março.

O CONSELHO da Revolução não aceitou o símbolo partidário da FEC (ML), com vista às eleições do próximo mês de Abril, porque considera que esse símbolo, bem como o da UDP, podem confundir-se com o do PCP.
O mesmo decidiu em relação à Frente Socialista Popular cujos símbolos foram considerados demasiado semelhantes aos do PS.
A foice e o martelo são o símbolo internacional do comunismo, não são uma marca registada de qualquer mercadoria capitalista, disse o dirigente da UDP Vladimiro Guinot.

O MINISTÉRIO da Educação e Cultura determinou a substituição imediata de todos os directores escolares do continente e ilhas adjacentes.


Fontes:
- Acervo pessoal;

Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

domingo, 22 de março de 2015

POSTAIS SEM SELO


O tempo tem passado extraordinariamente.

Ruy Belo em Aquele Grande Rio Eufrates

OS IDOS DE MARÇO DE 1975


22 de Março de 1975

AO FIM da manhã é nomeada para  a Rádio Renascença uma comissão mista constituída por um delegado do MFA, um delegado do Ministério da Comunicação Social, um delegado a nomear pelo Ministério do Trabalho e um delegado da 5ª Divisão do estado-Maior das Forças Armadas.
Resolvido que seja o conflito entre os trabalhadores e a entidade patronal, a comissão dissolver-se-á.

SEGUNDO o Expresso, uma das consequências da nacionalização da banca remete para a circunstância de alguns jornais e semanários ficarem sob o controlo económico do Estado.
Estão neste caso o Diário de Notícias, O Século, Jornal do Comércio, Jornal de Notícias, parcialmente o Diário de Lisboa, Sempre Fixe, Vida Mundial, Século Ilustrado, Modas & Bordados, Flama, Record e o Mundo Desportivo.
Escapam a este controlo A Bola, o vespertino República, o matutino O Primeiro de Janeiro e o semanário Expresso.

NOS ÚLTIMOS dias, conduzidos, pela FSP e a LUAR, tem-se vindo a assistir ao processo de ocupação de edifícios vagos e abandonados.

JOSÉ GOMES FERREIRA em Intervenção Sonâmbula:
- É tão difícil ser revolucionário.
- Pois é. Para mim é uma espécie de religião que, em lugar de ligar, desliga as pessoas para s ligar melhor.
E então, já arrependido de não lhe ter falado apenas de «vigilância popular», de «aumento de produção», de «trabalho», de «coragem indomável para enfrentar o possível bloqueio» (conselhos também necessários e indispensáveis), resolvi animá-la com o melhor sorriso que tirei do coração e do cérebro:
- Bem vê: devemos aproveitar a Revolução para sermos melhores e maiores do que somos.
(Mas em geral todos se tornam mais anões e medíocres do tamanho de picadelas de alfinetes.)

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira;
- Intervenção Sonâmbula, José Gomes Ferreira, Diabril Editora, Lisboa 1977.

Legenda: Título da República de 22 de Março de 1975

OLHAR AS CAPAS


Outras Fitas

Eduardo Guerra Carneiro
Capa: Fernando Mateus
Editorial Teorema, Lisboa Maio de 1999

A bibliotecária traz a angústia agarrada à pele, mas procura desfazer-se dela, como as serpentes que se esfregam nas areias e nas pedras para mudarem as suas “cascas”. Só que, para os humanos, mudar de pele, mesmo no sentido figurado, não é assim tão fácil.
Ele encontra-se muitas vezes num bar ribeirinho, onde os veleiros navegam nas paredes, em aguarelas antigas, de azuis e amarelos desmaiados, a cortarem as vagas, lutando contra as tempestades. Em tempos diferentes, talvez ela lhe fizesse companhia nos álcoois fortes, que ele teima em beber aos fins-de-semana. Agora, fica-se pelas águas tónicas, cigarro atrás de cigarro, enquanto lhe fala de mágoas, e conta histórias terríveis, onde se podiam colocar os versos de Maiakovski: Nesta vida é mais fácil morrer do que viver.

DITOS & REDITOS


Para o homem do campo nunca chove ou faz sol no tempo certo.

A vida não é justa e a morte é uma banalidade.

Viver é apenas um problema de coragem e paciência.

Em enterro de cão, gato não chora.

E ouvir o silêncio.

Antes que o diabo saiba que morreste.

A realidade é sempre má ficção.

A brincar, a brincar, é que o macaco fez o filho à mãe.

NOVA PONTE JÁ SE VÊ


O Público de 22 de Março de 1995 dava conta que perto de Beirolas já se avistavam os primeiros sinais da futura Ponte Vasco da Gama.
A Ponte Vasco da Gama foi inaugurada a 29 de Março de 1998.


Numa outra página do jornal, a Expo 98 procurava interessados em participar no desenvolvimento do complexo de lazer aquático, termal e lúdico-desportivo.
Expo 98 abriu portas no dia 29 de Março e fechou-as no dia 30 de Setembro.

PORQUE HOJE É DOMINGO



Desculpem voltar à Luna de Miel.
Quando há dias andei à procura da versão de Marino Marini acabei por encontrar esta de Paloma San Basilio que, com o seu toque de música grega, acho bastante interessante.
Gosto de canções dançadas não fosse a dança uma das minhas maiores pancadas,
Bom domingo!

sábado, 21 de março de 2015

POSTAIS EM SELO


- Acreditas no sonho?
- Acredito na utopia, esse território invisível onde se pode semear a maior esperança.

Dinis Machado em Reduto Quase Final

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

VELHOS DISCOS



O Que é Que a Baiana Tem é uma canção que ouço desde criança.
Quando topei com a edição a edição deste disco da Carmen Miranda, em Portugal, comprei-o de imediato.
Talvez um qualquer ano da década de 80.
Já me tinha esquecido da sua existência.
A limpar o pó dos discos, encontrei-o.
Uma maravilha esta rapariga nascida em Marco de Canaveses e que fez sucesso no Brasil e nos Estados.
A capa não é muito feliz, mas é um prazer (re)ouvir estas canções.


O que é que a baiana tem?
O que é que a baiana tem?
Tem torso de seda tem (tem)
Tem brinco de ouro tem (tem)
Corrente de ouro tem (tem)
Tem pano da Costa tem (tem)
Tem bata rendada tem (tem)
Pulseira de ouro tem (tem)
E tem saia engomada tem (tem)
Tem sandália enfeitada tem (tem)
E tem graça como ninguém...!

O que é que a baiana tem? (bis)
Como ela requebra bem...!
O que é que a baiana tem? (bis)
Quando você se requebrar caia
por cima de mim (tris)
O que é que a baiana tem?
Mas o que é que a baiana tem?
O que é que a baiana tem?
Tem torso de seda tem (tem?)
Tem brinco de ouro tem (ah!)
Corrente de ouro tem (que bom!)
Tem pano da Costa tem (tem)
Tem bata rendada tem (e que mais?)
Pulseira de ouro tem (tem)
Tem saia engomada tem (tem)
Sandália enfeitada tem
Só vai no Bonfim quem tem...
O que é que a baiana tem? (bis)
Só vai no Bonfim quem tem...
O que é que a baiana tem? (bis)
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Ai, quem não tem balangandãs
não vai no Bonfim
Ôi, quem não tem balangandãs
Não vai no Bonfim
Ôi, não vai no Bonfim 


OLHAR AS CAPAS


O Que Diz Molero

Dinis Machado
Capa: Saldanha Coutinho
Livraria Bertrand, Lisboa, Setembro de 1977

«Último cliché do bairro, enquadrado na cidade, e esta no rio, envolvendo o segundo amor da sua vida, que o primeiro, esse terá sido, segundo apurou Molero, a Greta Garbo, temos um poema dedicado à menina Mariana, formosa e intangível, a mais fugaz e pudica das aparições lá numa janela alta, o seu Amor de Perdição, caiu nas mãos dele, certa noite, o romance de Camilo, leu-o de um fôlego, enfeitiçado pela maneira como uma simples história de amor pode assumir a grandeza, estava repleto de febre e de Simão quando rompeu a aurora», disse Austin, e fez uma pausa. «O poema diz: Há pombos esquecidos nas estátuas desta cidade naufragada. Mastros de sombra escrevem o teu nome e em cada letra reconheço a madrugada. Mulheres e homens, enlaçados de cansaço, dormem um sono fundo, com raízes. Das margens desse sono se levantam as pedras das palavras que não dizes. Foge o mar dos meus dedos entre a noite, e a noite é uma canção que te procura. Nos meus olhos ardem estrelas encharcadas que rodeiam de azul a tua altura. Cada esquina é um cais à tua espera. Faróis e candeeiros chamam por ti. Como um sonho deslizo e permaneço na rua da janela onde te vi. Finalmente os pombos largados, partindo desta estátua que tu és». Houve outra pausa. «Este poema», disse Austin, «intitula-se The High Window, germinou muito tempo dentro dele e foi escrito anos depois, quando começou a ler e a amar os livros de outro escritor, Raymond Chandler, homem triste cheio de humor, que criou uma espécie de herói de aluguer, labiríntico e algo macerado, a quem os outros serviam logo ao pequeno-almoço, e sem direito a notícia nos jornais, pontapés na boca do estômago misturados com traição».