quinta-feira, 31 de julho de 2014

OLHAR AS CAPAS


A Morte Branca

Pierre Kyria
Capa: avenida Designers
Tradução: Marai Antónia Câmara Manuel e Patrick Quillier
Edições Salamandra, Lisboa, Novembro de 1986


Se algum dia tivesse de falar da memória, dar-lhe-ia uma cor. Branca, como a tela dos écrans, a margem dos livros, o olhar dos afogados. No seu vai e vem fulgurante, dar-me-ia a posse do território da ausência que é de todos o mais vasto. Aí encontraria de novo rostos, palavras, talvez mesmo nomes.

OS IDOS DE JULHO DE 1974

  
22 a 31 de Julho

FACE aos últimos acontecimentos ocorridos em Angola com a população branca é criada uma Junta Militar à qual preside o vice-almirante Rosa Coutinho membro da Junta de Salvação Nacional.

FOI ENTREGUE ao Conselho de Estado pelo advogado Dr. Afonso de Carvalho um requerimento para que o referido órgão se pronuncie sobre a inconstitucionalidade do artigo 26 da Concordata celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé em 1940 e do artigo 1790 do Código Civil em vigor que vedam aos cidadãos que contraíram casamento canónico depois de 1 de Agosto de 1940 o direito de obterem o divórcio através dos tribunais.

NA SUA PRIMEIRA conferência de Imprensa o CDS, através do Prof. Freitas do Amaral, apresenta-se ao povo português afirmando que deseja uma distribuição melhor do rendimento do povo português.

EM MATOSINHOS termina a greve da pesca da sardinha.



REALIZA-SE no Estádio 1º de Maio uma grandiosa manifestação de apoio ao MFA e ao Governo Provisório na qual tomam parte os Partidos Comunista, Socialista e Popular Democrático.

HELENA NEVES publica no República do dia 24 um trabalho sobre os informadores da PIDE/DGS. Por ano eram gastos mais de nove mil contos com a rede de informadores. Vendiam tudo: a família, os amigos, os vizinhos, os companheiros de trabalho, a escola, o sindicato. Alimentavam a repressão e alimentavam-se dela.. Até simples casamentos eram objecto da vigilância dos informadores da PIDE. Uma denúncia valia ente 250 e 750 escudos.

A POLÍCIA JUDICIÁRIA Militar levou a tribunal um processo-crime em que é arguido o agente da ex-PIDE/DGS António Domingues acusado do assassínio do pintor e militante comunista na clandestinidade, José Dias Coelho.

ÀS 12,00 HORAS DE 27 de Julho o Presidente a República General António de Spínola anunciou perante o País que, sobre reconhecer o direito dos povos das colónias a assumirem o seu próprio destino, podendo encaminhar-se sem qualquer ambiguidade para a independência política, Portugal está pronto a iniciar o respectivo processo de transmissão de poderes.


Do discurso de António Spínola:




Legenda: Título da 1ª página do Diário de Lisboa de 27 de Julho de 1974.
Mário Soares, Magalhães Mota, Álvaro Cunhal no comício no Estádio 1º de Maio.
.


Fontes: Recortes de acervo pessoal, Diário de Uma Revolução, Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978, Portugal Depois de Abril de Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Edição dos Autores, Lisboa, Maio de 1976, Portugal Hoje, edição da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, A Funda, Artur Portela Filho, Editora Arcádia, Lisboa.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

NOTÍCIAS DO CIRCO


Título e imagem de A Bola. 

EU NÃO QUERO PAGAR POR AQUILO QUE NÃO FIZ


Eu não quero pagar por aquilo que eu não fiz
Não me fazem ver que a luta é pelo meu país
Eu não quero pagar depois de tudo o que dei
Não me fazem ver que fui eu que errei

Não fui eu que gastei
Mais do que era para mim
Não fui eu que tirei
Não fui eu que comi

Não fui eu que comprei
Não fui eu que escondi
Quando estavam a olhar
Não fui eu que fugi

Não é essa a razão
Para me quererem moldar
Porque eu não me escolhi
Para a fila do pão
Este barco afundou
Houve alguém que o cegou?
Não fui eu que não vi

Eu não quero pagar por aquilo que eu não fiz
Não me fazem ver que a luta é pelo meu país
Eu não quero pagar depois de tudo o que dei
Não me fazem ver que fui eu que errei

Talvez do que não sei
Talvez do que não vi
Foi de mão para mão
Mas não passou por mim

E perdeu-se a razão
Todo o bom se feriu
Foi mesquinha a canção
Desse amor a fingir

Não me falem do fim
Se o caminho é mentir
Se quiseram entrar
Não souberam sair
Não fui eu quem falhou
Não fui eu quem cegou
Já não sabem sair

Eu não quero pagar por aquilo que eu não fiz
Não me fazem ver que a luta é pelo meu país
Eu não quero pagar depois de tudo o que dei
Não me fazem ver que fui eu que errei

Meu sonho é de armas e mar
Minha força é navegar
Meu Norte em contraluz
Meu fado é vento que leva e conduz
E conduz
E conduz

TiagoBettencourt

terça-feira, 29 de julho de 2014

CONSTRUTORES DO CAOS


O caso GES-BES tem suscitado uma pergunta simples: como foi possível que gravíssimas práticas fraudulentas tivessem escapado durante anos à vigilância das autoridades de regulação, incluindo à vigilância da troika sobre o setor bancário? A resposta é tão dura quanto simples: nos últimos 30 anos muitos governos (de direita e de esquerda) foram responsáveis pela criação dos alçapões e das opacidades que transformaram o sistema financeiro europeu (e mundial) num campo minado onde aventureiros põem em perigo a segurança de milhões de pessoas. Em 1933, em plena Grande Depressão, o Congresso dos EUA produziu uma lei (Glass-Steagall Act) que restaurou a confiança no sistema financeiro: separou e protegeu os bancos comerciais, face aos bancos de investimento. Por outras palavras: os bancos que recebiam as poupanças dos depositantes e que emprestavam às empresas na economia real não podiam fazer operações especulativas com produtos financeiros. Durante décadas essa higiénica distância permitiu prosperidade económica, a par de visibilidade e eficácia no trabalho dos reguladores. Contudo, o lóbi financista, embalado pelo mantra do neoliberalismo, não descansou enquanto não meteu no bolso os governos e os parlamentos necessários para misturar tudo de novo. Em 1999, o Congresso americano revogou a lei de 1933, regressando à promiscuidade especulativa. Por todo o lado, incluindo a UE, as leis "liberalizaram-se", no sentido de criar obscuridade, onde antes havia transparência. Criaram-se condições para mascarar a exposição da poupança das famílias, no labirinto arriscado das ações, das obrigações e de uma miríade de derivados toxicamente imaginativos. Os políticos que se queixam dos banqueiros deveriam ter vergonha. O caos habita nas leis que eles próprios assinaram. Seria interessante saber como e porquê...


Viriato Soromenho-Marques, hoje, no Diário de Notícias

OLHARES



Avª dos Estados Unidos da América em Lisboa.

QUOTIDIANOS


Vim no autocarro até à central de camionagem. Apanhei lá um táxi. Se for preciso, é o que vou dizer.
Mentiras inocentes nunca magoaram ninguém. Pelo menos era o que a sua mãe costumava dizer-lhe. O problema era conseguir fazer a diferença entre o preto e o branco. Rose achava que tinha conseguido organizar a vida dela até aqui com uma série de manipulações acinzentadas da verdade.

Em Hotel Finbar

 Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


Programa detalhado em Musica.Gulbenkian.pt/Jazz

segunda-feira, 28 de julho de 2014

DO BAÚ DOS POSTAIS


Postal da Editorial Caminho para comemorar o Dia Mundial da Poesia: 21 de Março de 2004
Saudade, poema de Mia Couto.

AVISO


Anúncio publicado na última página do Diário de Lisboa de 28 de Julho de 1970.

LIVRO DE LEITURA


Quando chegamos a certa idade, a memória começa a atraiçoar-nos. Embora saibamos perfeitamente quem é aquele actor que está no ecrã de televisão, não conseguimos pura e simplesmente recordar-nos do seu nome, nem do título do filme, que por acaso até vimos quando estreou, há coisa de cinco anos; se é que nos lembramos do enredo, o que vai sendo cada vez mais raro... Pois, é uma chatice – mas não há nada a fazer e o melhor é aceitarmos que a idade não perdoa. Com os livros, custa mais, evidentemente – e os que lemos há menos tempo são, curiosamente, os que desaparecem primeiro, tal como as recordações de infância são, frequentemente, aquelas que permanecem mais vivas na memória de um velho. Mas agora há um objecto muito útil à venda, que pode dar uma ajudinha e servir-nos de bengala nos momentos em que estivermos desesperados por já não sabermos de que tratava determinada obra. É uma espécie de caderno que podemos trazer sempre connosco, chamado Diário de Leituras, e no qual podemos anotar os títulos que nos vão passando pelas mãos, os seus resumos, as frases preferidas – e bem assim atribuir-lhes pontuações, o que evita que se vá reler um mau livro por não nos vir à ideia se dele gostámos da primeira vez. O preço é apenas de 7,5 euros e vende-se, tanto quanto sei, nas Livrarias Bertrand. Eu vou ser cliente, de certeza absoluta.

Maria do Rosário  Pedreira em Horas Extraordinárias

domingo, 27 de julho de 2014

FICOU FOI MAL ENTERRADO


Dois dias depois do ocorrido, a Gazeta das Caldas do dia 29 de Julho de 1970, declarava ao mundo que Salazar não morrera.

O mundo gargalhou.

Mas morreu mesmo.
.
Ficou foi mal enterrado.

Daí que,  passados que são quarenta anos sobre o 25 de Abril ainda seja, amiúde, ouvir: o que nos está a fazer falta é um novo Salazar!

Querem esquecer, fazer-nos esquecer, que o Nofesratu de Santa Comba, deixou: um país pobre, analfabeto, subdesenvolvido, a braços com uma onda imensa de emigrantes e uma guerra trágica em África.

Página de um Diário de João Medina, publicado na Seara Nova de Julho de 1974:

 Às 11 horas telefono para a Espiral para falar com o Ary. – Uma boa notícia! diz-me ele. A velha morreu! Será possível? Hesito por um segundo em acreditar na notícia que tantos anos venho esperando. Morreu? O Salazar? – Morreu, morreu!

Do Diário de Miguel Torga:

PORQUE HOJE É DOMINGO


Sim, hoje é Domingo.
Mas que Domingo?
Para trás ficou uma semana trágica: aproxima-se do milhar o número de mortos, em Gaza, provocados pelos ataques dos israelitas. Grade parte são crianças.
Faltam as palavras.
É em circunstâncias como esta, que a minha fé sofre terríveis abalos:
Onde está Deus?

O CAMINHO É PELA ESTRADA


Nós precisávamos, Sílvia, de um comboio que ultrapassasse este tempo de derrota e angústia e nos conduzisse já ao futuro. Tempo que nada nos dará, embora depois dele possamos beber o vinho dos heróis. E quem sabe se sobreviveremos à noite da vergonha… Mas não é este o comboio, não é um comboio que nos levará aonde queremos. O nosso caminho, Sílvia, é pela estrada, a pé, sempre, sem um desfalecimento ou um assomo de desânimo.

Mário Ventura em A Noite da Vergonha

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

sábado, 26 de julho de 2014

MARCADORES DE LIVROS

NOTÍCIAS DO CIRCO


O Centro de produção da Peugeot Citroën em Mangualde vai despedir cerca de 280 trabalhadores. A decisão está relacionada com a redução de um dos três turnos. O objetivo é adaptar a produção à procura. O terceiro turno estava pensado para durar 16 meses, mas só durou nove.

SENHOR DA PANDEIRETA


Ei! Sr. da Pandeireta, toque uma canção para mim
Não tenho sonho e não há lugar para onde eu vá
Ei! Sr. da Pandeireta, toque uma canção para mim
Irei atrás de si na manhã melodiosa e barulhenta

Embora eu saiba que o império da noite tenha voltado a ser areia
Sumida da minha mão
Deixou-me aqui cego de pé mas sem dormir ainda
A minha fadiga espanta-me, tenho os pés em brasa
Não tenho com quem me encontrar
E a antiga rua vazia está demasiado morta para sonhar

Ei! Sr. Da Pandeireta, toque uma canção para mim
Não tenho sono e não há lugar para onde eu vá
Ei! Sr. Da Pandeireta, toque uma canção para mim
Irei atrás de si na manhã melodiosa e barulhenta

Leve-me de viagem no seu navio mágico em rodopio
Os meus sentidos estão embotados, as minhas mãos não conseguem agarrar com
      firmeza
Os meus dedos dos pés demasiado entorpecidos para caminhar
Esperam apenas pelos tacões das minhas botas para ficarem a vaguear
Estou pronto para ir a qualquer lado, estou pronto para me desvanecer
No meu próprio
Desfile, lance o seu feitiço de dança na minha direcção
Eu prometo submeter-me

Ei! Sr. Da Pandeireta, toque uma canção para mim
Irei atrás de si na manhã melodiosa e barulhenta

Ainda que possa ouvir riso, a girar a a baloiçar loucamente frente ao sol
Não é dirigido a ninguém, está apenas a fugir à solta
E não há mais barriras em frente a não ser o céu
E se ouvir vagos rastos de saltitantes danças com rima
Ao som da sua pandeireta, é só um palhaço esfarrapado lá atrás
Eu não lhe prestaria atenção alguma
O que vê é apenas uma sombra que ele persegue

Ei! Sr. da Pandeireta, toque uma canção para mim
Não tenho sono e não há lugar para onde eu vá
Ei! Sr. da Pandeireta, toque uma canção para mim
Irei atrás de si na manhã melodiosa e barulhenta

Leve-me então a desaparecer através dos anéis de fumo da minha mente
Por baixo das enevoadas ruínas do tempo, bem longe das folhas geladas
Das árvores assustadas, assombradas, até à praia batida pelo vento
Longe do alcance retorcido da louca mágoa
Sim. Para dançar sob o céu de diamante com uma mão acenando livremente
Recortada sobre o mar, rodeado pelas areias do circo
Com toda a memória e o destino levados profundamente por sob as ondas
Deixe-me esquecer do dia de hoje até amanhã

Ei! Sr. da Pandeireta, toque uma canção para mim
Não tenho sono e não há lugar para onde eu vá
Ei! Sr. da Pandeireta, toque uma canção para mim
Irei atrás de si na manhã melodiosa e barulhenta

 Bob Dylan

Canção do álbum Bringing It All Back Home (1965)

Bob Dylan em Canções Volume I (1962-1973) Relógio D’Água, Lisboa Setembro de 2006.


Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.


sexta-feira, 25 de julho de 2014

À LUZ DE CANDEEIROS

NOTÍCIAS DO CIRCO


PSD e CDS rejeitaram hoje, no parlamento, dois votos de condenação pela acção militar de Israel na faixa de Gaza, um deles apresentado em conjunto por PS e Bloco de Esquerda e outro pelo PCP.

Detalhes em Notícias ao Minuto

SOBRE A CIÊNCIA DOS MERCADOS


Há coisas que custam a engolir mas, pronto, tenho de aceitar. Eu já não tinha gostado da PJ a vasculhar os papéis nas minhas duas salas no Hotel Palácio, mas lá aceitei. Depois, quando o juiz me avisou de que ia interrogar-me no dia seguinte, levantei a sobrancelha, incomodado. Mas, pronto, tive de aceitar. Disse-lhe que lá estaria, o meu motorista haveria de me pôr no Campus de Justiça à hora marcada, mas ele respondeu que iriam à minha casa buscar-me. Que remédio, aceitei. De manhã, bem vi o ar pasmado da minha empregada, ao dizer: "Estão à porta dois polícias que perguntam pelo senhor doutor." Custou-me? Muito, mas aguentei. Percebi os sorrisinhos trocados entre o guarda e o motorista, mas pus cara de quem não viu. Chegado ao TIC, no corredor cruzei-me com olhares impertinentes dos beleguins, mas aguentei. No juiz topei o revanchismo dos sans-culottes, mas respondi a tudo, calmo. Na pausa de almoço contaram-me a histeria das rádios e televisões - "detido!", gritavam todos - e aguentei. Voltei ao interrogatório do Robespierre, aturei as perguntas, sofri a condição de arguido, tolerei as acusações, resignei-me à caução a pagar... Aceitei tudo! Mas há uma coisa que não admito. A mim, que fui estes anos todos o rosto do mercado de capitais, o epítome da bolsa de valores, não se devia ter feito este insulto: no dia em que fui detido, interrogado e constituído arguido, as ações do BES sobem?!


Ferreira Fernandes, crónica no Diário de Notícias de hoje.

Legenda: imagem do Diário de Notícias.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

NOTÍCIAS DO CIRCO


O principal rosto desse enorme escândalo em que transformou a família Espírito Santo, foi hoje detido, ouvido por um juiz e, mediante caução de 3 milhões de euros, encontra-se em liberdade.

Se este homem tiver a coragem de pôr a boca no trombone, passaremos a saber como se processa a promiscuidade entre a política, os grandes grupos económicos,os grandes escritórios de advogados, os construtores civis, os sucateiros.

Se tal acontecer, saberemos dos restantes rostos que constituem os gangs que levaram o país ao estado em que se encontra, uma gentalha que chamou aos portugueses tudo o que lhes deu na real gana, quando, verdadeiramente, não passam de uma corja de malandros, vigaristas e corruptos.

Ainda hoje o cândido banqueiro João Salgueiro se surpreendia como foi possível esta crise no GES, e que não é nada normal que problemas com esta dimensão tenham passado despercebido às entidades competentes.

 É um bocado inexplicável acabou por concluir, como se a criatura não soubesse como tudo se faz e acontece.

São cada vez mais sombrios os dias que nos esperam.

Tempos de trevas.

Tão cedo nos libertaremos do grito de Alexandra Alpha:

«Isto não é um país, é um sítio mal frequentado.»

OS IDOS DE JULHO DE 1974


15 a 21 de Julho

VERGÍLIO Ferreira no seu Conta-Corrente sobre a demissão de Adelino Palma Carlos:
O desarrói político. Palma Carlos demitiu-se. Juntaram-se-lhe os ministros PPD. Boatos de um novo ministério presidido por um militar do MFA e uma representação militar em várias pastas. Se assim for, saber-se-á enfim o que é politicamente o MFA.

NO DIA tomou passe o II governo Provisório sendo Primeiro-Ministro o Coronel Vasco Gonçalves.
No discurso de tomada de posse, a hipocrisia de António Spínola: «Limitar-me-ei portanto a destacar a reconhecida estatura moral e intelectual do coronel Vasco Gonçalves e o facto de ser o cérebro da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas e, como tal, o primeiro responsável pelo sei ideário.»
Do discurso de Vasco Gonçalves: «Sem trabalho árduo de todos os portugueses, sem um esforço gigantesco a todos os níveis (Estado, empresários e calasses trabalhadoras), no projecto de reconstrução e modernização nacionais, que deve ser o lema instalado na cabeça de todos nós, jamais será levado a cabo o desenvolvimento do País. Simultaneamente, todos teremos de viver, durante este período, em atmosfera de austeridade, gastando menos no supérfluo e poupando quanto possível para aplicação no esforço global de investimento, que a todos, mas a todos, diz respeito.
Composição ministerial do novo governo:
Ministros Sem Pasta – Majores Vitor Alves e Melo Antunes e drs. Álvaro Cunhal e Magalhães Mota.
Ministro da Defesa – Tenente-Coronel Mário Miguel
Ministro da Coordenação Interterritorial: - Dr. António Santos
Ministro da Administração Interna - Tenente-Coronel Costa Brás
Ministro da Justiça - Dr. Salgado Zenha
Ministro da Economia - Dr. Rui Vilar
Ministro das Finanças - Dr. Silva Lopes
Ministro dos Negócios Estrangeiros – Dr. Mário Soares
Ministro do equipamento Social e Ambiente – Coronel José Augusto Fernandes
Ministro da Educação e Cultura – Prof. Vitorino Magalhães Godinho
Ministro do Trabalho – Capitão Cosa Martins
Ministro dos Assuntos Sociais – Engª Maria de Lurdes Pintasilgo
Ministro da Comunicação Social – Major Sanches Osório

O NÚNCIO APOSTÓLICO recusou-se a receber a Comissão Pró-Divórcio.

COMO NOVO PARTIDO político é constituído o CDS – Centro Democrático Social: «Somos uma organização aberta a todos os democratas do centro – quer do centro esquerda quer do centro direita – que, sinceramente identificados com o 25 de Abril, aceitem o humanismo personalista como filosofia de acção. Representamos todos os portugueses que defendem uma nova concepção da iniciativa privada, com base no aprofundamento da solidariedade nacional e da fraternidade social.
Nos seus fundadores encontram-se Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, Basílio Horta.

Legenda: tomada de posse do II Governo Provisório

Fontes: Recortes de acervo pessoal, Diário de Uma Revolução, Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978, Portugal Depois de Abril de Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Edição dos Autores, Lisboa, Maio de 1976, Portugal Hoje, edição da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, A Funda, Artur Portela Filho, Editora Arcádia, Lisboa.

ALEGORIA


Junto do Mar canta a Cigarra.
Canta p'ra iludir
a fome e a solidão;
p'ra fingir que tem pão
e p'ra fingir que está acompanhada.

Tremeluzem os Astros no céu nítido:
Dona Cigarra faz serão.
Como há-de ela dormir, se a vida é curta?
-:Cigarra que se preza quando morre
não deve estar a meio da canção.

Ninguém pára a saber porque é que canta.
Ninguém lhe dá ouvidos nem conforto.
Melhor, assim:assim, não perde tempo
quem não pode cantar depois de morto.

A parte que lhe coube por destino,
tem de morrer deixando-a já cantada.
Que faz que a não escutem nem lhe acudam?
É preciso é sentir que se está vivo.
É preciso é que as asas que sosseguem
o tenham merecido.

Canta a Cigarra à sombra da montanha
e à sua voz a solidão alastra,
deixa-a mais longe, sempre, dos que dormem.
Só a noite a entende e a agasalha.
Mas a voz não acusa nem se cansa
nem laiva de azedume ou amargura.

Ei-la crucificada de indiferença.
Serve-lhe a Noite de mortalha.
Morno ainda do Canto,
seu coração evola-se em ternura
que vai poisar no sonho dos que dormem...

Sebastião da Gama em Pelo Sonho é que Vamos

quarta-feira, 23 de julho de 2014

POSTAIS SEM SELO


E, no perpétuo Verão húmido, desafio o seu espírito de imaginação, a não regressar ao grito da cor, ao arrepio límpido do ar gelado, ao cheiro da lenha de pinho a arder e ao calor acariciante das cozinhas. Pois como pode alguém conhecer a cor no meio do verde perpétuo, e para que serve o calor sem o frio para lhe dar doçura?

John Steineck em Viagens com o Charley

terça-feira, 22 de julho de 2014

OLHARES


Traseiras de um prédio na Avª dos Estados Unidos da América em Lisboa.

AS SENHORAS TÊM NOJO!


E como Carlos lembrava a política, a ocupação dos inúteis, Ega trovejou. A política! Isso tornara-se moralmente e fisicamente nojento, desde que o negócio o constitucionalismo como uma filoxera! Os políticos hoje eram bonecos de engonços, que faziam gestos e tomavam atitudes porque dois ou três financeiros por trás lhe puxavam pelos cordéis… Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Aí é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas… Coisa extraordinária, que em país algum sucedia, nem na Roménia, nem na Bulgária! Os três ou quatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem for, largamente, excluem a maioria dos políticos. E porquê? «Porque as senhoras têm nojo»!

Eça de Queiroz em Os Maias

NOTÍCIAS DO CIRCO


O Banco Espírito Santo adiou hoje a apresentação dos resultados relativos ao primeiro semestre deste ano para dia 30 de Julho, quarta-feira da próxima semana, após o fecho do mercado.

O vice-primeiro-ministro Paulo Portas disse hoje em Luanda que os bancos centrais de Angola e de Portugal estão a trabalhar em conjunto na situação no Grupo Espírito Santo e ramificações nos bancos do grupo nos dois países.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

NOITE DE VERÃO


Quando é no Verão das noites claras
e faz calor dentro da gente,
… aquela menina casadoira,
que mora junto ao largo,
vem à varanda ver a Lua.

Roçando o corpo, devagar,
descem por ela as mãos da noite:
sente-se nua.
Sente-se nua, na varanda,
já tão senhora do seu destino,
sem medo às estrelas nem às mãos da noite
– mas baixa os olhos se algum homem passa…

Manuel da Fonseca em Poemas Completos

COM O PÉ ESQUERDO


Nota do Dia assinada por Norberto Lopes e publicada em A Capital de 21 de Julho de 1969.

O HOMEM DESCEU NA LUA


O homem desceu na lua. Ensacado num fato espacial e de foguetão no rabo, tanto teimou que conseguiu pôr os pés fora da terra. E lá anda aos saltos, a lutar com a imponderabilidade, ridículo, mas triunfante. Como é natural, vivi intensamente as diversas fases da viagem, e foi num misto de alívio e orgulho que ouvi a notícia do seu desfecho feliz.Agora, porém, passada a ansiedade e o entusiasmo, sinto-me triste. Que monótonas e desconsoladas aventuras nos restam no mundo! Primeiro, comandadas por  computadores depois em vez de sonhos de arredondamento da fraternidade, propósitos objectivos de alargamento da solidão...


Miguel Torga em Diário, Vol. XI

Legenda: 1ª página do República de 21 de Julho de 1969.

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


Encontrei este anúncio em A Voz de 12 de Maio de 1967.
Veio à memória que na Instrução Primária da rapaziada do meu tempo, tínhamos de saber os rios, as montanhas, as linhas ferroviárias das então províncias ultramarinas, principalmente Angola e Moçambique.
Há uma canção de Simon and Gafunkel (Kodachrome) em que se diz: Quando penso em todas as cisas que aprendi na escola é um espanto conseguir ainda pensar...


QUOTIDIANOS


Tropeçou em arbustos, se enredou pelo chão. Ajudei a levantar-se. Mas ele preferiu ficar sentado.
- Me deixe morrer um pouco aqui. Me arraste só um nada para esse lado. Sim, aqui está bom, aqui corre um raiozito de sol.
Ficou um tempo de olhos fechados. Voltou a tirar um pedaço de coral e pousou-o no chão. Era outra oferta dos Deuses.
-E agora, pai?
-Agora vou para o outro lado do mar...
-Eu vou aprontar o barco e sigo com o senhor.
- Não. Voçê fica, eu vou sozinho.
Meti-o no barco mais seu velho saco. Fui empurrando até onde havia pé. Apontei a direcção certa e disse-lhe:
-Siga sempre a direito, não desvie...
- Estou no mar, meu filho, já não preciso condução.
E se afastou. Foi a única vez que me chamou de filho. Era, eu sabia, a despedida. Ouvir da boca dele essa palavra poderia ser uma infância nascendo. Mas era o adeus dela.


Mia Couto em Mar me Quer

domingo, 20 de julho de 2014

OLHAR AS CAPAS


Poesia Reunida
(1974-2001)

Manuel António Pina
Capa: Ilda David
Assírio &Alvim, Lisboa Outubro de 2001

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher? 
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

PORQUE HOJE É DOMINGO


                         

Tem sido um verdadeiro Verão da treta.
Porque hoje é domingo,volto à Trafaria, aos anos 60, à esplanada do Marques na Praia da Lurdes.
Bom domingo!

Quando eu morrer,
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela

Não quero flores
Nem coroa com espinho
Só quero choro de flauta
Violão e cavaquinho

Quando eu morrer,
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela

Se existe alma
Se há outra encarnação
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão

Quando eu morrer,
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela

Os inimigos
Que hoje falam mal de mim
vão dizer que nunca viram
uma pessoa tão boa assim


Quando eu morrer,
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela.

sábado, 19 de julho de 2014

OS IDOS DE JULHO DE 1974


8 a 14 de Julho

As minas do Pejão continuam ocupadas pelos trabalhadores.

Um comunicado do Partido Socialista chama a atenção do Governo provisório e dos democratas em geral para a gravidade das situações que estão a ser criadas em todo o país com a nomeação ou a conservação em cargos de responsabilidade de pessoas ligadas à política fascista e altamente comprometidas com ela.

É anunciado que Franco se encontra gravemente doente.

A grande preocupação dos Estados Unidos neste momento é a situação em Portugal, declarou o Secretário de Estado Henry Kissinger ao jornal brasileiro Tribuna da Imprensa.

Um despacho do general Costa Gomes, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas datado de 5 de Julho gradua no posto de brigadeiro o major de artilharia Otelo Saraiva de Carvalho
No acto de posse, Otelo Saraiva de Carvalho afirmou: «que foram os jovens oficiais dos 25 aos 40 anos que derrubaram o governo anterior, salientando que «os generais apesar de toda a sua juventude não tiveram coragem de o derrubar.»

Numa entrevista à Emissora Nacional, Adelino Palma Carlos anunciou ter formulado pretensões concretas para poder continuar nas funções de primeiro-ministro:

- eleições do Presidente da República no prazo de três meses;
- referendo para a aprovação de uma Constituição Provisória como adiamento das eleições para a Assembleia Constituinte, até Novembro de 1976;
- amplos poderes ao Primeiro-Ministro.

Reunido o Conselho de Estado, houve decisão favorável à terceira pretensão, sendo as restantes rejeitadas.
 Palma Carlos disse que lhe alargaram os poderes mas «simplesmente não lhe deram o poder.» razão que o levou a pedir a demissão do cargo de primeiro-ministro.
Solidarizaram-se com ele, o ministro sem pasta Sá Carneiro, o ministro da Administração Interna Magalhães Mota, Vieira de Almeida, ministro da Coordenação Económica, Tenente-Coronel Firmino Miguel, ministro da Defesa Nacional. Todos os outros membros do governo mantiveram-se nos seus cargos.
«Saio agora para evitar ter de o fazer mais tarde, envolto num banho de sangue e de lama.»
Em 25 de Junho, numa entrevista ao Diário de Notícias, alertara: «as maiorias silenciosas têm de sair do seu comodismo ou do seu temor e de pronunciarem abertamente.»
A História regista este episódio como «Golpe Palma Carlos», mas por trás encontramos Spínola e Sá Carneiro, numa tentativa desesperada de um retorno à direita. O objectivo  consistia em consolidar o poder pessoal do Presidente da República e consequente afastamento dos ministrosde esquerda do governo.

António Spínola iniciou consultas para a escolha de novo Primeiro-Ministro. Hipóteses várias foram aventadas e chegou a dar-se como certa a escolha do tenente-coronel Firmino Miguel para Primeiro-Ministro, mas a escolha veio a recair no Coronel Vasco Gonçalves.

Adelino da Palma Carlos forma um novo partido: o Partido Social Democrata Português do qual fazem parte também Norberto Lopes, Adão e Silva, Ângelo Almeida Ribeiro, Paradela de Abreu, Jacinto Simões, Alfredo Guisado.

A crise provocada por Palma Carlos, é acompanhada em Moçambique e Angola por um surto de terrorismo branco. Consta que em Luanda o governador Silvério Marques esteve implicado num golpe de estado para a proclamação da «independência branca».

Legenda: título da 1ª página do República de 10 de Junho de 1974.

Fontes: Recortes de acervo pessoal, Diário de Uma Revolução, Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978, Portugal Depois de Abril de Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Edição dos Autores, Lisboa, Maio de 1976, Portugal Hoje, edição da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, A Funda, Artur Portela Filho, Editora Arcádia, Lisboa.

DO BAÚ DOS POSTAIS


Castro Marim, Algarve

sexta-feira, 18 de julho de 2014

OLHAR AS CAPAS


O Último Faroleiro de Muckle Flugga

Mário Cláudio
Capa: Luís Filipe Cunha
Expo 98, Lisboa, Janeiro de 1998

Com os cotovelos da camisola gastos por se apoiar no balcão de linóleo, levantando a caneca de lager, e os fundilhos dos jeans puídos por se suster no banco do costume, à espera da tarde ou da noite de inopinada maravilha, decidiu que se impunha, que diabo, radicalizar a mudança de vida. Persistia a chuva de Aberdeen que molha profundamente, ainda quando não parece cair, e tardava a Primavera mais do que seria admissível, pondo a doer, de tão imobilizadas, as ubíquas lâmpadas de vapor de mercúrio.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

QUOTIDIANOS


O tempo urge. Eu deveria acelerar os movimentos para chegar a tempo e, em vez disso, vejo-me obrigado, dia após dia, a mover-me cada vez mais devagar. Emprego mais tempo e disponho de menos tempo. Pergunto a mim mesmo, preocupado: Será que vou conseguir? Sinto-me compelido pela necessidade… E, contudo, sou obrigado a marcar passo, embaraçado nos movimentos, desmemoriado e portanto obrigado a deter-me para anotar tudo de que preciso em folhas que, no momento oportuno, não encontrarei.

Norberto Bobbia citado por José Tolentino Mendonça na revista do Expresso.

Legenda: fotografia do The Guardian.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

NOTÍCIAS DO CIRCO


João César das Neves afirmou, em entrevista à Renascença, que “é criminoso subir o salário mínimo”, acrescentando que um eventual aumento teria “consequências dramáticas sobre os pobres”.
Para o economista, a subida do salário mínimo teria como consequência a queda de empresas mais frágeis: “vão abaixo e deixam no desemprego os mais frágeis”, nas palavras de César das Neves.
Para César das Neves, a questão é a defesa dos pobres: “As pessoas que não são pobres acham que aquilo tem impacto benéfico sobre os pobres, mas a pobreza é muito traiçoeira”.

Fonte: jornal I

UM PRÉMIO SIMPÁTICO...


Tal como ficou prometido em AH!...AS ABÓBORAS!...

terça-feira, 15 de julho de 2014

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS

DITOS & REDITOS


Reatar é voltar ao que nunca se quis interromper.

Tudo começa sempre pela morte.

Quem já caçou sabe bem que a perdiz nem sempre é de quem a matou.

É proibido o massé.

Ter tempo para ter tempo.

Entrada livre, saída fácil.

Um encontro no canto da memória.

Quanto mais se vive menos se dura.

OLHAR AS CAPAS


Hotel Finbar

Dermint Bolger, Roddy Doyle, Anne Enright, Hugo Hamilton, Jennifer Johnston, Joseph O'Connor, Colm Tóibín
Criado e organazizado por Dermont Bolger
Tradução: Maria Filomena Louro
Capa: Henrique Cayatte
Publicações Dom Quixote,  Lisboa Junho de 2004

O vento assobiava fora da janela. Ele olhou fixamente para o tecto e suspirou. Permaneceu em silêncio durante o que me pareceu uma eternidade. Quando recomeçou a falar, a sua voz saiu firme e calma.
«O que eu sinto realmente, pela primeira vez na minha vida, como uma certeza absoluta e derradeira, é que não existe Deus, nunca existiu e nunca existirá. E que estou certo em pensar assim. Que o salão de cabeleireiro, as garrafas cheias de líquido coloridas na prateleira, a cadeira de barbeiro – que só isso existe. Os miúdos de rua a baterem com a bola de ténis na veneziana. Nada mais. Estas pessoas, sim. As suas esperanças por um Deus, sim. Mas nenhum Deus. Nenhum grande ser lá fora. Nenhuma coisa escura. Existe esta conversa, este momento, e é tudo. Aqui e agora, por exemplo, existe apenas este quarto, existe você e eu a conversarmos neste quarto, neste hotel, nesta cidades, onde nenhum de nós mora. Nunca nos conhecemos antes. Hoje à noite conhecemo-nos e falámos. Cinco minutos mais cedo ou mais tarde e não teria acontecido. Mas aconteceu mesmo. Esse é o momento sagrado. Se houver um sacramento é esse. Algo mais abrangente que isso? Muito pouco. As coisas que nos acontecem na vida, sim. As nossas memórias, sim. Os nossos desejos, sim. O trabalho que os artistas fazem. Se temos filhos, então os nossos filhos. E todaos aqueles que amamos. Talvez todos aqueles que já amámos até agora. Mas nada mais. Andamos por cá uma vez e acaba-se tudo. Mas não faz mal.»
«E não há vida após a morte?», perguntou ela.
«Não», respondeu. «Para mim, não. Porque viver pelo menos uma vez, bem, já é milagre suficiente.»

Nota do editor: o organizador desta antologia, Dermont Bolger esclarece: Cada capítulo foi escrito por um autor diferente, estando estes ordenados alfabeticamente e não na ordem em que aparecem. Deixamos aos leitores a tarefa de os identificar.
Como os meus conhecimentos da literatura irlandesa são largamente escassos, não consigo identificar o autor do conto de onde a transcrição foi retirada.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

MARCADORES DE LIVROS

A CIÊNCIA DAS GRANDES MIGRAÇÕES


Havia girassóis à volta da casa
e as palavras imortais dos espantalhos, uma forma
de evitar que endoidecêssemos. E havia um muro
que era preciso saltar, a manhã gloriosa
da escalada, a ciência das grandes migrações.


Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

domingo, 13 de julho de 2014

PORQUE HOJE É DOMINGO


Sim, hoje é domingo, mas esta canção de Elis Regina é uma canção de, e para, todos os dias.
Também uma saudade imensa de Elis Regina.
Bom domingo!


Os Dias eram assim
Perdoem a cara amarrada,
Perdoem a falta de abraço,
Perdoem a falta de espaço,
Os dias eram assim...

Perdoem por tantos perigos,
Perdoem a falta de abrigo,
Perdoem a falta de amigos,
Os dias eram assim...

Perdoem a falta de folhas,
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha,
Os dias eram assim...

E quando passarem a limpo,
E quando cortarem os laços,
E quando soltarem os cintos,
Façam a festa por mim...

E quando lavarem a mágoa,
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água,
Lavem os olhos por mim...

Quando brotarem as flores,
Quando crescerem as matas,
Quando colherem os frutos,
Digam o gosto pra mim...
Digam o gosto pra mim...

UM POETA EM NOVA IORQUE


 Não haverá muitos “pequenos” livros com tanta história atrás de si.

Falamos de Um Poeta em Nova Iorque, o livro de poesia que Federico García Lorca (1898-1936) escreveu quando estudou na Universidade de Columbia, na Big Apple (1929-30), mas que só seria publicado já postumamente, quase em simultâneo nos Estados Unidos e no México, pelo seu amigo editor José “Pepe” Bergamín.

Desde a data da edição no final dos anos 30 que se discute se os 32 poemas de Um Poeta em Nova Iorque correspondiam ao projecto original de Lorca. Parece que não. Mas agora é possível perceber porquê. É que o original que o poeta assassinado pelos franquistas logo no início da Guerra Civil, em Agosto de 1936, deixara um mês antes no escritório de Bergamín, em Madrid, foi redescoberto várias décadas depois. E foi reeditado em Espanha, pela Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores, supostamente mais de acordo com a proposta original.

No dia 13 de Julho de 1936, Lorca deixou no escritório de Bergamín, que na altura estava fora, o original de Um Poeta em Nova Iorque, acompanhado por esta nota: “Vim aqui para te ver, e devo voltar amanhã”. Não voltou. Seguindo a descrição de Andrew A. Anderson, um hispanista britânico, especialista na obra de Lorca e responsável pela nova edição da Galaxia Gutenberg, o texto original continha poemas manuscritos e outros dactilografados, além de desenhos, distribuídos por 124 páginas. A ideia do autor seria discutir com o editor a organização do livro, e Anderson admite que alguns dos poemas pudessem ficar de fora: “Lorca queria incluir a grande maioria, mas não todos. Aos sobrantes, chamar-lhes-ia ‘órfãos’”, nota o investigador, citado pelo El País.

Bergamín pensou inicialmente em editar o livro em Paris. Acabou por fazê-lo em Nova Iorque e no México, país onde se exilou fugindo do regime de Franco — coube-lhe, por exemplo, como organizador do Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura de 1937, encomendar Guernica a Picasso.

Depois de editar Um Poeta em Nova Iorque, Bergamín ofereceu o original a um amigo no México, Jesús de Ussía. No final dos anos 1990, estava na posse da actriz espanhola Manola Saavedra que, então se apercebeu do valor comercial do caderno e decidiu levá-lo a leilão na Christie’s. Os descendentes de Lorca, através da fundação com o nome do poeta, contestaram o direito da actriz ao manuscrito. O Tribunal de Londres deu razão a Manola, e a fundação acabou por adquirir o documento em leilão, em 2003, por cerca de 200 mil euros.

Dez anos depois, é sobre esse material que a nova edição chegou às livrarias.

Mas continuará por se saber qual era a ideia de Lorca para o seu livro.
  
Fonte: Público


Legenda; Imagem de parte da Oda Walt Whitman em Poeta en Nueva York,  em Obra Completa de Federico Garcia Lorca, Aguilar Ediciones, Madrid 1965.

sábado, 12 de julho de 2014

QUOTIDIANOS


As tabernas antigamente. As tabernas eram sítios onde as pessoas não se esqueciam de si próprias. Sítios onde as pessoas falavam e eram ouvidas. Sabes?, eu era miúdo e gostava de ver os homens a beber copos de vinho. Bebiam os copos de vinho, assim, de repente, sem parar, e eu não percebia o prazer que eles tinham em beber assim, de um trago, sem parara, só mais tarde é que percebi, ficavam sem cólera e sem tranquilidade, bebiam apenas, de um trago, vinho tinto em copos de três. As tabernas eram sítios de prazer, uma reserva de conivências aonde os homens iam com prazer e sem preocupações.

Baptista-Bastos em O Cavalo a Tinta-da-China.


Legenda: fotografia de Luísa Ferreira.

POSTAIS SEM SELO


Neste nosso mundo
qual não devia existir?
Aquele que esquece
ou o outro, aquele
que logo é esquecido?


Isumi Shikibu

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

QUOTIDIANOS


Se nem os carolas da política, da economia, da finança conseguem entender o filme que se anda a passar no grupo BES, que dizer dos pobres diabos que a única coisa que sabem é viver acima das suas possibilidades e que levaram o país à bancarrota?

O estranho disto tudo é que o Banco de Portugal não tenha aprendido nada com o caso BPN.

A falta de transparência dos negócios da família Espírito Santo já se arrasta há anos e é inadmissível que, por compadrio-político-financeiro, à espera de um qualquer milagre, o Banco de Portugal tenha deixado chegar este caso à miserável situação a que chegou.

E à volta do BES, para além de outros, ainda existe o estranho caso da Portugal Telecom.

Não tardará muito que nos venham dizer que, a exemplo do BPN, terão de ser os contribuintes a pagar os desvarios, a incompetência, os gamanços de uma família que, segundo uma sua representante, gosta de brincar aos pobrezinhos nas herdades da Comporta.

Mais ainda: que, no meio de toda esta bagunçada, ninguém ainda se tenha demitido, ou que ninguém tenha colocado esta gentalha atrás das grades.

O José Cardoso Pires tinha razão quando pôs a Alexandra Alpha a dizer:

«Isto não é um país, é um sítio mal frequentado.»