quinta-feira, 30 de abril de 2020

AMANHÃ É DIA DE FESTA!


Está quase a bater a meia-noite do ainda 30 de Abril de 1974.

Se agora lhe perguntassem o que fez depois da madrugada por que esperava, diria que daí até ao 1º de Maio, necessariamente, terá dormido mas, do que lembra bem, é que andou num turbilhão vertiginoso ao ponto de dizer que esse dia 25 não foi um dia, foram mais: que vai desde 25 de Abril até ao primeiro 1º de Maio.

Dirá então que acontecesse o que acontecesse – e muita coisa iria acontecer - obviamente aquela festa de ilusões, aquele património, já ninguém lhe tirava. 

Mais tarde dirá aos filhos, aos netos que só quem andou naquela nave de loucos,  viveu aqueles tempos de miragens, perceberá o que foi o 25 de Abril. 

E não mais esquecerá aqueles dias luminosos em que tudo parecia ser possível.

Os jornais tentam dar notícia de tudo o que está acontecer, também do que virá. 

Já foi extinta a PIDE/DGS, a Legião e as Mocidades Portuguesas, o povo persegue os pides nas ruas e, entregando-os às forças militares, são encarcerados em Caxias, conhecem a casa, mas agora olham-na com uma perspectiva bem diferente, sabe-se que os funcionários públicos despedidos por motivos políticos serão reintegrados, começam a regressar mais exilados políticos, os desertores querem voltar e pedem amnistia, Tomaz, Caetano, e outros ministros, estão no Funchal a aguardar guia de marcha para o exílio, os trabalhadores tomam conta dos seus sindicatos, um decreto-lei determina que quem quiser sair do país só poderá levar 50 contos.
 
Mas neste dia de há 46 anos, uma notícia ressalta, quase única: a Junta de Salvação Nacional faz publicar o decreto-lei que determina que o 1º de Maio será feriado nacional.
 
Durante a ditadura, o 1º de Maio era um dia que trabalhadores e estudantes estavam impedidos de comemorar.

Mas com coragem e determinação, aqui e ali, sempre encontraram forma de o assinalar, se bem que sujeitos a brutal repressão: pedras e palavras de ordem contra bastões, espingardas, carros-de-combate-lança-tinta-azul.

A mudança ia acontecendo, lenta, lenta, lenta, éramos tão poucos.

E onde estava aquele gente que, no amanhã de há 46 anos, encherá as ruas transformando-as num imenso oceano.

Nesta noite, Sá Carneiro será entrevistado pelo Telejornal. 

Dirá ao povo para, no 1º de Maio, actuar disciplinada e ordeiramente.

No dia seguinte, no Canal da Crítica do Diário de Lisboa, Mário Castrim escreverá que compreende a preocupação dos políticos, mas adianta:
 
«Depois, amigo Sá Carneiro, deixe lá o povo manifestar à vontade por esse país fora. Deixe-o mostrar a sua alegria, a sua vitalidade. Deixe-o à vontade matar a fome do pão que durante 50 anos lhe negaram. Tempos virão de trabalho e organização. Mas que se deixe, agora, que o Povo Português seja dono das ruas de Portugal e saborei a liberdade reconquistada. Então agora sem pide, sem Censura, sem prisões, então agora o povo não deve manifestar e cantar?
Amanhã é dia de festa. Viva o 1º de Maio!»

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


Há um pedacinho, de que gosto muito, no livro Blackpot de Dennis McShade, pseodónimo de Dinis Machado enquanto escritor de romances policiais:

«Ao segundo dia sentira a náusea mais intensa dos últimos anos. Vomitara tudo o que comera e mais ainda não sabia o quê. Quando olhou para o espelho, os olhos, do outro lado, disseram-lhe coisas estranhas. Por exemplo: pode-se vomitar tudo menos o medo e a solidão.»

Poder vomitar tudo menos o medo e a solidão.

É esse medo que não sai no vómito, que me percorre quando vou ouvindo algumas das medidas que o governo preparou para a entrada do país, a partir do dia 2 de Maio, no estado de calamidade.

O comando distrital de Aveiro revela que deteve, em Ovar, uma mulher de 76 anos, infectada com Covid-19, a circular na via pública e sem qualquer meio de protecção individual, máscara e luvas, violando o confinamento obrigatório.

Inconsciência? Maldade? Loucura? Indolência? Ignorância? Estupidez?

É este um dos medos que me deixa às aranhas, sem vislumbrar estratégia alguma para me defender, sentindo que a única hipótese é mesmo não sair de casa.

Será possível?

Preocupar-me é o meu signo diário.

A preocupação deu-te para lembrar aquele filme do René Clement que em português se chamou Brincadeiras Proibidas.

Esta é a música que percorre o filme.

Amanhã será outro dia.

E em verdade vos digo que, quando houver condições mínimas para zarpar, arranco por aí abaixo e só páro no «Beira-Gare» para devorar bifanas, metidas naquela molhanga que faz arregalar os olhos, e junto-lhes uma garrafa de verde Ponte de Lima estupidamente gelada.

Há caminhos que eu sei de cor.

Alguém irá dizer que aquelas bifanas são brincadeiras proibidas.

Que sejam!


1.

Por finais do ano de 2008, numa sessão solene realizada na London School of Economics, a Rainha Isabel II lançou a seguinte pergunta aos economistas aí reunidos:

«Como é que ninguém viu aproximar-se a crise?»

Ano de 2010, poderemos perguntar: «como é que ninguém viu o vírus aproximar-se?»

2.

O tempo de quarentena deu para algumas pessoas conhecerem os vizinhos dos prédios onde habitam.

Muitos, afazeres diversos, como trabalhar-sair-de-manhã-regressar-à-noite, nunca se cruzavam.

A vizinha de cima do Dudu chateia-o quando percorre a casa, pela noite, de socas ou tamancos, ou lá o que é.

- Porquê? - pergunta, sentado à mesa do café.  

Rostos que o olham, que dizem que não sabem.

- Será solidão?

3. 

Talvez a despropósito, este poema de Leonard Cohen:

«Pergunto-me quanta gente nesta cidade
vive em apartamentos mobilados.
Altas horas da noite quando olho os outros prédios
juro que vejo um rosto em cada janela
que me olha também
e quando volto para dentro
pergunto-me quantos se sentam às suas escrivaninhas
e escrevem isto mesmo»

4.

Será que vai chover amanhã?

Importa assim tanto?

Sobre isso Rui Manuel Amaral tem uma opinião:

«As previsões meteorológicas interessam-me pouco. Pelo menos tal como se apresentam neste momento. E porquê? Porque são escandalosamente incompletas. O boletim meteorológico só será realmente útil quando incluir as previsões sobre o tempo que fará dentro de nós: sol ou chuva; céu limpo, neblina ou nevoeiro; o estado do mar no meu norte e no meu sul.»

5.

De acordo com o New York Post foram descobertos entre 40 e 60 corpos, empilhados, dentro dos veículos, mas também no chão das instalações da própria funerária. O alerta foi dado depois de vários moradores darem conta de um odor desagradável, provocado pelo facto de os corpos estarem armazenados naquele local há várias semanas.

6.

À vista desarmada, parece existir uma série de empresas que, dado os lucros, que foram registando, não deveriam recorrer ao lay-off.

Apenas as empresas em dificuldades deveriam ter esse direito.

O governo tem mecanismos que evitem estas trafulhices?

Duvida-se.

Quem ainda acredita que depois desta pandemia passaríamos a ter novos e decentes procedimentos, que tire o cavalinho da chuva.

Digo-o com mágoa!

7.

O Conselho Nacional de Saúde classificou de irresponsáveis, criminosas e genocidas as ações do Presidente Jair Bolsonaro, face à pandemia da Covid-19  e apelou ainda a que a população brasileira mantenha o isolamento social como medida preventiva contra a Covid-19, ao contrário do defendido por Jair Bolsonaro.

8.

Os negros números:

As mortes provocadas pela pandemia nos Estados Unidos registam 60.999 mortos.

 Portugal regista 989 óbitos.

Itália: 27.967 mortos
Grã-Bretanha: 26.771 mortos
Espanha: 24.543 mortos
França: 24.376 mortos

Em todo o mundo já morreram 231.808 pessoas.

CANTIGA, PARTINDO-SE


Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.


João Roiz de Castel-Branco em Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa de Eugénio de Andrade

Legenda: pintura de Ernest De Nagy

quarta-feira, 29 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS



Hoje, o sol continuou a fazer birra, e só quase no findar do dia, fez uma aparição, tímida, envergonhada.

Desde esta janela, fiquei a olhar esse azul vermelho laranja do entardecer, que vai ser a cor da noite até um outro nascer do sol.

Apesar da beleza, a ansiedade do raio do vírus acaba por estragar qualquer tentativa de pensar positivo.

Como diria o Eugénio de Andrade:

«Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar o coração, a minha face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu…»

O rosto lunar dos bêbados, de que fala o Eugénio, levou-me, sei lá porquê, até ao Passeio Musical em Trenó de Leopold Mozart, pai de Wolfgang.



 

1.

O mundo saloio, hipócrita, javardo e corrupto do futebol português, ainda não percebeu que não há condições para que se possam concluir os campeonatos que estavam a decorrer quando o Covid-19 nos bateu à porta.

Ao longo dos que os clubes endividaram-se até mais não, e agora sentem-se com as calças a caírem e prestes a mostrarem o cú.

Os operadores de televisão já lhes disseram que vão fechar a torneira, porque se não há palhaços, não há dinheiro.

Receio que o governo lhes vá dar uma mãozinha.

E isso é um crime!

2.

A Diocese do Porto revelou que, devido à quebra de receitas motivada pela suspensão de atividades de culto em virtude da covid-19, colocou uma parte dos seus colaboradores em ‘lay-off’, situação que inclui elementos do clero.

«Os direitos e deveres neste contexto são iguais aos de qualquer outro trabalhador», lê-se numa nota da Diocese a que a Lusa teve acesso.

3.

Um homem com cerca de 80 anos agrediu a empregada da limpeza com 30 anos, com uma catana num bairro da Ameixoeira em Lisboa.

As autoridades registam que a fragilidade sócio-económica por que muitas pessoas estão a passar, poderá suscitar situações de violência.

4.

O ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, afirmou que  «a TAP não tem condições de sobreviver sem intervenção pública».

5.

Regras dos restaurantes na Ásia: clientes fazem fila na rua, medem a temperatura, preenchem formulários e tiram a máscara só para comer. E só há grupos de quatro pessoas.

6.

Os negros números:

As mortes provocadas pela pandemia nos Estados Unidos superam os americanos mortos na guerra do Vietname: 58.365.

A Grâ-Bretanha passou a ser o segundo país europeu com mais mortes devido ao Covid-19.

Portugal regista 973 óbitos.

Itália: 27.682 mortos
Grã-Bretanha: 26.097 mortos
Espanha: 24.275mortos
França: 24.087 mortos

Em todo o mundo já morreram 225.927 pessoas. 

7.

Não consegui saber a data desta afirmação de José Saramago:

«O mundo é o inferno. Não vale a pena ameaçarem-nos com outro inferno porque já estamos nele. A questão é saber como é que saímos dele.»

TO ELVIS, WITH LOVE





Os muros que ladeiam a casa de Elvis estão apinhados de mensagens dos seus fãs.

Da maneira como as mais recentes se sobrepõem, fiquei com a ideia de que todo o muro é lavado de tempos a tempos para permitir novas levas de mensagens.

Aqui está uma respeitável Senhora apanhada em pleno ato… Procurou, procurou e lá encontrou um pedacinho onde escrever.

Comovente...

Cada um é como é e longe de mim censurar…

Deus sabe como sou fã de Gram Parsons e já  andei a perseguir as suas memórias em todo o lado por onde caminhou, mas nunca me passaria pela cabeça deixar-lhe um bilhetinho... 

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

terça-feira, 28 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse, hoje, que não vai propor nova renovação do estado de emergência.

O governo irá agora decidir os instrumentos e as medidas que serão aplicadas depois de 2 de Maio.

E aqui começa um novo mar de incertezas, novos estados de angústia, de ansiedade.

Já estamos tão fartos do que nos está a acontecer.

Mas estaremos preparados para enfrentar este outro desafio?
O surto continua por aí.

E nós?

Serve esconder as nossas fragilidades?

Que mais desculpas nos damos?

Quem ensinou Mona Lisa a rir daquele modo?

Que música para hoje?

Vivaldi.

Que muitos dizem ser um clássico demasiado repetitivo, quase chato.

Eu gosto.

Saudades de ouvir, com o meu pai, a Cecília Bartoli, a cantar Vivaldi, ou o tempo em que punha a rodar «Alla Rustica», e ele começava a mexer os braços qual maestro, e falávamos do homem da bandeira que, juntamente com o meu avô e outros republicanos históricos, nunca faltavam para que um dia o botas-de santa-comba caísse, fosse lá como fosse, mas caísse.



1.

Em Harbin, uma cidade na China, vivem 10 milhões de pessoas e teme-se que está ali a desenvolver-se um novo surto de epidemia.

E agora já sabemos de que Harbin, estando tão longe, isso não é impeditivo de o vírus galgar fronteiras.

As informações sobre este surto, como velho péssimo hábito chinês, são quase inexistentes.

2.

«Moro há 45 anos mesmo ao lado do Estádio do Glorioso, E, nunca, mas nunca, tinha ouvido tantos pássaros em frente à minha janela! Um novo e estranho mundo».

Joana Lopes

3.

Billy Wilder. num delicioso filme do pós-guerra «A sua Melhor Missão, em que uma maravilhosa Marlene Dietrich anda por lá a dizer:

«Troco pastilhas elásticas por beijos.»

4.

Grupo que lidera a British Airways quer despedir 12 mil trabalhadores.
No primeiro trimestre, os prejuízos da companhia aérea britânica foram superiores a 500 milhões de euros e as receitas caíram 13 por cento.

5.

A Segurança Social aprovou 61,7% dos 62.341 pedidos de adesão ao `lay-off` simplificado que foram requeridos pelas empresas até ao início de Abril.

Os 15,1% dos pedidos (9.458) foram indeferidos por vários motivos, entre eles porque as empresas não tinham a sua situação contributiva regularizada ou não tinham certificação do contabilista ou por não cumprirem as regras da data de início do apoio.

6.

As Nações Unidas alertaram que o isolamento obrigatório de milhões de pessoas em casa vai originar um aumento em 20 por cento da violência doméstica.

7.

As creches são dos primeiros estabelecimentos a ter ordem de abertura, mas deixam um aviso aos pais: só vão aceitar as crianças de volta, caso os pagamentos estejam em dia.

8.

A SAS, a transportadora aérea mais importante de Escandinávia, anunciou que vai colocar cinco mil trabalhadores em lay-off.

A Bosch de Braga vai entrar em lay-off total.

Atualmente, os 3800 funcionários estavam num regime parcial de redução temporária dos períodos de trabalho. No entanto, perante uma descida na procura, a unidade de produção de componentes automóveis vai suspender a atividade.

9.

Os negros números:

Os Estados Unidos passaram a ser o primeiro país do mundo a ultrapassar um milhão de casos confirmados da covid-19, enquanto o número de mortos se cifra em 57.266.

Portugal regista 928 óbitos.

Itália: 27.359 mortos
Espanha: 23.822 mortos
França: 23.660 mortos
Grã-Bretanha: 21.768 mortos

Em todo o mundo já morreram 216.808 pessoas. 

GRACELAND


“I’m going to Graceland
Memphis, Tennessee
I’m going to Graceland
Poor boys and pilgrims with families
And we are going to Graceland
…………………………………….
…………………………………….
Ooh, ooh, ooh,
In Graceland, in Graceland
For reasons I cannot explain
There’s some part of me wants to see
Graceland”

(Paul Simon – “Graceland”)

Paul Simon nasceu em 1941 e teria 13 anos quando Elvis Presley fez as suas primeiras gravações no “Sun Records”, em Memphis.

É natural, portanto, que sinta uma certa nostalgia em relação a  Graceland, mesmo que não nos saiba  explicar muito bem porquê.

Não é o meu caso.


Respeito a memória do Elvis  e tudo o que ele representou para o surgimento de um novo tipo de música de que, muitos anos mais tarde, aprendi a gostar.

Também sei separar o trigo do joio, ou seja, as qualidades de Elvis, o cantor, das muitas vezes grotescas trapalhadas em que Elvis, o Homem, se viu envolvido ao longo da sua vida…

E se uma das primeiras músicas em língua inglesa que me lembro de ter gostado, em criança de 7 ou 8 anos, foi “Wooden Heart”,  era preciso ter um coração de pedra para não ter ficado com um pouquinho do Elvis dentro de mim.


Mas isso não teria sido suficiente para me fazer voar para Memphis, Tennessee…

As memórias musicais que mais me aquecem o coração não habitam por aqui…

Mas também ir a  Memphis sem passar por Graceland seria uma pura estupidez…

E assim aconteceu.

Cheguei lá e – sacrilégio…!!! - acabei por não fazer a visita à Casa.


Naquele lugar os cifrões giram à volta da nossa cabeça.


Não admira… É a Casa mais visitada em todos os Estados Unidos da América…. Uma verdadeira máquina de fazer dinheiro!

Paga-se para ver o interior da casa, paga-se para ir ao “Meditation Garden”, onde se encontra o túmulo de Elvis, paga-se para  ver a coleção de automóveis e de motas, paga-se para entrar nos dois aviões privados, eu sei lá… Só falta mesmo pagar para se poder respirar no interior…

Julgo que foi na “Estratégia da Aranha”, do Bertolucci, que ouvi ou li algo que me parece ter sido uma citação de Brecht e que dizia mais ou menos o seguinte: “Felizes dos Povos que não precisam dos seus Heróis”.

Eu não tenho rigorosamente nada contra o facto de toda esta gente vir aqui em peregrinação saudar a memória do seu Herói.

Bem pelo contrário…


Mas confesso que me incomoda bastante o cheiro a ganância que se sente no ar num lugar como este.  

Fiz as contas por alto e  uma curta visita não me ficaria por menos de 120 €…

Não sou forreta nem fundamentalista….. Seria uma vez na vida e em circunstâncias normais confesso que talvez me tentasse a ir, embora a Cristina me tivesse logo avisado que não estava nada p’raí virada.

Mas a Casa encerrava às 17h00 e já passava  das 16H00 quando lá chegámos. Teria de comprar o bilhete e apanhar um “bus” no outro lado da avenida, na zona onde estão os dois aviões privativos de Elvis, pelo que me restaria muito pouco tempo útil para a visita…  


É claro que poderia lá ter ido no dia seguinte, mas se em circunstâncias normais já não consegui cumprir o programa que tinha estabelecido para dois dias em Memphis, se tivesse regressado a Graceland estava frito… É que se diz que isto fica em Memphis mas, na realidade, fica muitíssimo  longe do centro da cidade.

Assim sendo, cheirei a propriedade por fora, li algumas das inscrições nos muros que a rodeiam, vi ao longe os dois aviões, o maior “Lisa Marie” e o mais pequeno “Hound Dog II”, comprei um catálogo para mim e algumas recordações para os amigos, e zarpei.

 Mas não me despedi do Elvis para o resto da viagem porque, uma vez que iria  andar lá por perto, ainda tinha previsto passar por Tupelo, no Mississippi,  ver a casa onde ele nasceu, o que até se iria revelar bastante mais interessante, como na altura própria vos contarei. 

Em tempo:

Quem estiver interessado em dar uma olhadela ao interior da Casa não terá de ir a Graceland.  Bastará ir ao YouTube…. 

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

segunda-feira, 27 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS

O Director-Geral da Organização Mundial da Saúde disse, hoje, que o mundo devia ter ouvido, em 30 de Janeiro, o alerta máximo da Organização.

Nesse dia a Organização lançou o alerta sobre os riscos do coronavírus, e havia apenas 82 casos, e nenhuma morte, fora da China.

Foi então dito pela Organização o que os governos deveriam fazer para controlar o coronavírus, como decretar quarentenas, pedir que a população ficasse em casa se possível e respeitar o distanciamento social.

Porém, nem todos os países acataram as recomendações.

Hoje, no Mundo, há mais de 3 milhões de pessoas infectadas e já foi ultrapassado o número de mais de 200 mil mortes.

Quando no final do ano passado, começou a ler notícias do que estava a acontecer numa localidade da China, comentou de si para si, que isso era lá longe, muito longe mesmo, e que os chineses rapidamente resolveriam o problema.

Quando na página 21 do Público de 23 de Fevereiro, um domingo, leu a notícia, a 2 colunas, que se registaram duas mortes e seis dezenas de infectados por coronavírus, em Itália, ficou assim a olhar, meio aparvalhado, e guardou o recorte.

Porque a Itália não é tão longe como a China.

Não saberia, contudo, imaginar o inferno que se iria abater sobre a Europa, sobre o Mundo.

Não por acaso, foi reler páginas de Graciliano Ramos, livros vindos da biblioteca do pai, principalmente aquela frase de Vidas Secas em que Fabiano diz a Tomás da Bolandeira: “Seu Tomás, vossemecê não regula. Para quê tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros”.

Claro que sim, mas se a gente não ler, a estrepa é bem pior.

Mas como lembrava hoje, Maria do Rosário Pedreira, citando C.S. Lewis: «lemos para saber que não estamos sozinhos».

Hoje, visitamos Joann Sebastian Bach, o Prelude 1C Major  BWV 846.

1.

Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores de Hospitais, diz, hoje no Diário de Notícias:

«Os que aplaudem o Serviço Nacional de Saúde são os que vão querer cortar salários depois.»

A memória é curta.

No dia 28 de Junho de 1979 foi aprovada na Assembleia da República a Lei Arnaut.

Votaram a favor: PS, PCP, UDP.

Votaram contra; PSD e CDS.

A direita sempre lutou pela medicina privada e, ao longo dos anos, os sucessivos governos, foram cortando nas verbas para o Serviço Nacional de Saúde.

Hoje batem palmas à capacidade de resposta que, apesar de todas as tropelias e boicotes, o Serviço Nacional de Saúde deu no combate ao Covid-19.

2.

Tudo indica que o estado de emergência, em vigor até à meia-noite do próximo 2 de Maio, seja substituído por estado de calamidade, um patamar inferior de medidas excepcionais.

3.

Quase 60% da população activa está a sofrer redução de rendimentos devido à perda de emprego ou à diminuição do trabalho como consequência da pandemia Covid-19, segundo os resultados de um inquérito publicado pela Deco Proteste.
Segundo o inquérito da Deco - associação de defesa do consumidor, a vaga de desemprego causada pela crise relacionada com a pandemia tem atingido três vezes mais mulheres do que homens, com 13% e 4% respetivamente.
Uma em cada 10 famílias viu, pelo menos, um dos elementos perder o trabalho e até ao momento, 4% dos agregados têm os dois membros do casal sem actividade profissional.
 A vaga de desemprego tem atingido três vezes mais mulheres do que homens.

4.

A ONU pediu aos países que respeitem o Estado de direito, limitando o período de vigência das medidas excepcionais para o combate da pandemia de Covid-19, para evitar um catástrofe em relação aos direitos humanos.

«Dada a natureza excecional da crise, é claro que os Estados precisam de poderes adicionais para lhe responder. No entanto, se o Estado de direito não for respeitado, a emergência de saúde poderá tornar-se uma catástrofe de direitos humanos, cujos efeitos nocivos superam a pandemia em si».


5.

Cerca de 9,2 milhões de pessoas nos Estados Unidos da América perderam o seguro de saúde por terem ficado desempregadas.

6.

Quando ficamos a saber que o presidente de um país, como os Estados Unidos, é influenciado por um vendedor-de-banha da-cobra que, para combater o Covid-19, mandou as pessoas beber lixivia, sabemos em que mundo estamos.
Agora diz que vai deixar as conferências de imprensa pois é um mero tempo perdido e porque os jornalistas só fazem perguntas estúpidas e tendenciosas.
O mundo agradece. porque Donald Trump não é um palhaço de que se possa gostar.

7.

Os negros números:

Portugal regista 928 óbitos.

Os Estados Unidos já contam com 54.841 mortos. o mais elevado número de mortos: 53.511 pessoas.

Itália: 26.977 mortos
Espanha: 23.521 mortos
França: 23.293 mortos
Grã-Bretanha: 21.092 mortos

Em todo o mundo já morreram 210.374 pessoas.

OLHAR AS CAPAS


Vidas Sêcas

Graciliano Ramos
Capa: Santa Rosa
Livraria José Olympio Editora, S. Paulo, Janeiro de 1947

Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porquê? Só se era porque lia de mais. Êle, Fabiano, muitas vezes dissera: - “Seu Tomás, vossemecê não regula. Para quê tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros”.

domingo, 26 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


E se todos os sacrifícios por que vamos passando não servirem para nada?

Cumpro as regras que me impõem mas se, por um segundo apenas, uma leve distracção o sacana do vírus me entra porta dentro?

Cada doente de Covid-19 transmite a infecção a outra pessoa. Este risco tem vindo a aumentar, disse, hoje, a senhora ministra.

Os investigadores científicos são de opinião de que o governo faz mal em precipitar-se nas aberturas que, mesmo por etapas, quer começar a pôr em prática quando chegar Maio.

Mas esses sábios não têm tido reuniões com o governo, com o presidente da república?

Falam de uma segunda vaga que, depois desta, aparecerá.

Continuam a dizer que até existir uma vacina, não vamos poder dormir descansados.

A GNR notificou padre que celebrou missa com fieis na igreja de Castelo de Paiva.

Mas os que têm necessidade de deus, apenas sabem do terrível silêncio que lhes é oferecido.

Os restantes prosseguem a estrada, tirando obstáculos da frente, inventando saídas, soluções.

Eu sou tão pessimista que acho que a humanidade não tem remédio. Vamos de desastre em desastre e não aprendemos com os erros,
escreveu José Saramago.

Os meus dias são, continuarão a ser, um mar de incertezas.


Estou tão confuso, tão sem ideias, que, para a música de hoje, não encontrei melhor que Carl Orff.



1.


A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros revelou que o sector sofreu uma quebra de cerca de 80% nas vendas devido à pandemia de covid-19, situando-se o prejuízo em mais de 20 milhões de euros.

2.

A maior empresa de entretenimento do mundo, mantém encerrados os parques temáticos, com centenas de hotéis, lojas e restaurantes, à excepção de Xangai.
Os parques temáticos da Disneyland e Disney World, encerrados há várias semanas devido à pandemia da covid-19 e sem data prevista para reabrir, suspenderam contratos a 100 mil trabalhadores, mais de metade da sua força de trabalho.

3.

Em alguns sites da imprensa portuguesa passou a existir esta mensagem:

«Olá, para continuar a ler os nossos conteúdos registe-se no NÓNIO.»

Não sei o que é o Nónio, nem quero saber.

Só quero saber do Nónio inventado pelo matemático português Pedro Nunes.

Claro que não me registo.

É o primeiro passo para me baterem à porta para tentarem vender-me um aspirador.

Chega de aldrabices!

Agora também passei a ler:


A Worten contribui para que esta informação, essencial para o conhecimento público, seja de leitura aberta e gratuita para todos.

4.

Os negros números:

Portugal regista 903 óbitos.

Os Estados Unidos continuam a ser o país do mundo a registar o mais elevado número de mortos: 53.511 pessoas. Nova Iorque ultrapassou 0s 22.000 mortos.
A Grã-Bretanha ultrapassou 0s 20.000 mortos.

Itália: 26.644 mortos
Espanha: 23.190 mortos
França: 22.856 mortos
Grã-Bretanha: 20.732 mortos

Em todo o mundo já morreram 205.724 pessoas.

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

ESTES PUBLICITÁRIOS!...

Contam os experts, que deve-se a Fernando Pessoa o slogan para a Coca-Cola:

Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Os intelectuais deram à publicidade um toque único.

Alexandre O’Neill e José Carlos Ary dos Santos, na publicidade, são o exemplo perfeito do direito à diferença.

Pela publicidade dos anos 60 andaram, entre muitos outros, Luís de Sttau Monteiro, Vasco da Costa Marques, Alves Redol, José Cardoso Pires, Alberto Ferreira, Álvaro Guerra, Cipriano Dourado.

Ary, nos anos 60, inventa:

Cerveja Sagres, a sede que se deseja.

Para a Wollmark:

Minha lã, meu amor.

Também:

Knorr é naturalmente melhor.

Para o Grémio Nacional dos Seguradores:

Mais seguro, mais futuro.

Para o Banco Pinto & Sotto Mayor:

Deposite confiança no futuro.

Numa reunião para encontrar um slogan para o Halazon, um spray oral, Ary, durante a mesma, mostrou um perfeito desprendimento,  está em toda a parte menos ali.

Mas quase no final da reunião rabisca num papel:

Halazon, a melhor invenção depois do beijo!

Legenda: cartaz tirado de Ary dos Santos; O Homem, o Poeta, o Publicitário.

Texto publicado em 17 de Outubro de 2015.

SALAS DE CINEMA DE OUTROS TEMPOS - SAVANNAH, GEORGIA


Existe um preconceito que tende a considerar os americanos um povo  primitivo e pouco iletrado,  que não tem uma relação com a Cultura – assim mesmo, com cê grande – como aquela que nós, europeus, temos.

O que me oferece dizer é que, ao longo de quatro prolongadas viagens que já fiz pelos Estados Unidos da América, nunca me apercebi que a Cultura fosse tratada a pontapé. Bem pelo contrário…

Alguns dos melhores museus do Mundo estão na América, e não apenas em Nova Iorque, Washington, Los Angeles ou São Francisco, mas também em cidades mais pequenas.

O país dispõe de  inúmeras Organizações federais, estaduais e privadas de renome no domínio da Cultura. A “Smithsonian”, por exemplo, é uma das mais prestigiadas a nível mundial

É certo que a América não tem um património cultural de excelência como o da Europa, mas agarram-se com unhas e dentes ao que têm e preservam-no cuidadosamente.

Um exemplo desse património mais antigo que conheço relativamente bem são as velhas Missões espanholas californianas do Séc. XVIII que existem entre San Francisco e San Diego, que vi num excelente estado de conservação.  

Em todos os Estados, grandes casas senhoriais do tempo colonial e dos primórdios da Independência, inseridas nos seus espaços circundantes,  foram preservadas e estão abertas aos visitantes.

Por todo o lado parques temáticos permitem-nos viajar no tempo e conhecer um pouco melhor a Cultura e as condições de vida  das diversas gerações pioneiras, e dos próprios Índios, como vi em Natchez.

No que respeita às chamadas “belezas naturais”, elas são sobejamente conhecidas. São 62 Parques Naturais Nacionais pouco tocados pelo Homem, de uma beleza de cortar a respiração, proporcionando inesquecíveis experiências de harmonia e de comunhão com a Natureza. E se pensarmos nos Parques Estaduais, este número aumenta consideravelmente...

Dir-me-ão que muitos desses espaços parecem ser demasiado destinados ao turismo… E Versailles,  os castelos do Loire, o Louvre, a Tate Gallery ou os Uffizi, não o são também…?   

É verdade que, quando dela necessitamos, temos alguma dificuldade em  encontrar uma boa livraria, mas isso parece um (mau…) ar dos tempos e não algo específico dos Estados Unidos...


As próprias cidades nem sempre são feitas de grandes arranha-céus. Existem verdadeiras “cidades-museu”, como St. Augustine, Charleston, Natchez ou Savannah, para só vos referir aquelas que  mais recentemente visitei. E é um prazer passear pelas  ruas dessas cidades e ver a diversidade de estilos que oferecem ao viajante, em edifícios muito antigos criteriosamente recuperados. Puxando a brasa à minha sardinha, não imaginam a maravilha que é encontrar, em excelente estado de conservação, velhas salas de Cinema centenárias em quase todos os lugares por onde passamos.

Quando paro defronte delas e as olho parecem querer falar comigo e contar-me as suas histórias… O “glamour” que viveram nos tempos áureos, quando o Cinema era belo… As alegrias, as tristezas e os dramas que deram a ver… O que riram, o que choraram, o que cantaram e dançaram, descalços no parque, à chuva ou sobre as nuvens… A excitação da sala cheia e a agonia de vê-la vazia…

Parecem querer contar-me de tudo o que o vento já levou… Dos esplendores na relva, das condessas descalças, de tudo o que o Céu permite, das lendas dos beijos perdidos, dos filhos da noite, dos rebeldes sem causa e de todos os que só Deus sabe quanto amaram...

Mas da  história delas eu nada sei. Quando as vejo  estão quase sempre fechadas e nem as entranhas lhes consigo vislumbrar… Só à noite, quando regresso ao quarto do hotel, posso ir à “net” tentar perceber por onde passei...

Com regularidade irei enviar-vos fotografias de algumas dessas Salas de Cinema, com informações acerca da sua história, nos casos em que as consegui obter.

E vamos começar hoje com o belíssimo “Lucas Theatre”, em Savannah, na Geórgia.

Foi mandado construir por um senhor chamado Arthur Lucas, abastado proprietário de uma grande cadeia de Salas de Teatro, e foi inaugurado, com pompa e circunstância, há quase 100 anos, no dia 26 de Dezembro de 1921. Foi uma sessão dupla,  com a curta “Hard Luck”, com Buster Keaton, e “Camille” como filme principal, com a diva Alla Nazimova e o divo Rudolfo Valentino, realizado por um tal Ray C. Smallwood de que não reza a História.

À sua época, com 1237 lugares sentados,  era o cineteatro mais luxuoso de Savannah e o primeiro a possuir ar condicionado.

Resistiu durante mais de cinco décadas, mas em meados dos anos 70, com o enorme sucesso dos primeiros “blockbusters” e a progressiva passagem do Cinema para as grandes superfícies comerciais com as suas salas “multiplex”, foi obrigada a encerrar as suas portas, tal como sucedeu a muitas outras salas por esse Mundo fora. O último filme que passou foi  “O Exorcista”.

Dez anos mais tarde foi criada uma associação não lucrativa – “The Lucas Theatre of the Arts” - que tinha como objetivo angariar fundos para a recuperação do edifício, o que ainda levaria muitos anos a concretizar.


Mas isto está tudo ligado, e um grande impulso para a recuperação acabou por ser dado por Clint Eastwood ao fazer nessa sala, ainda em obras,  a festa de encerramento das filmagens de “Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal”, de que ainda há bem pouco vos falei,  e ao doar à Associação  os lucros obtidos nesse evento.

A recuperação foi concluída e a nova abertura teve lugar no dia 1 de Dezembro de 2000, com “E Tudo o Vento Levou”, como não podia deixar de ser…

Hoje o “Lucas Theatre” é um espaço multifacetado.

A sua exploração é gerida pelo “Savannah College of Arts and Design”, que fica lá mesmo ao lado, e promove a exibição de teatro clássico e de vanguarda, de eventos musicais variados e, naturalmente, de Cinema, com particular atenção na divulgação dos grandes clássicos do cinema americano. 

É, igualmente, palco de realização de grandes festivais anuais, como o “Savannah Film Fest”, o “Savannah Philharmonic” e o “Savannah Music Festival”.

Reabilitação conseguida com sucesso, portanto, o que nem sempre acontece nestes casos…

Mas não estaríamos em Savannah se não houvesse, pelo meio, uma história de fantasmas…

Há quem garanta que este teatro está assombrado, que se veem estranhas sombras e se ouve bater palmas quando está vazio, e o “Lucas Theatre” é paragem obrigatória do “Ghost City Tours”...

Tudo terá acontecido em 1928, dizem, quando um grupo de “gangsters”, provavelmente porque o proprietário do teatro não lhes pagou a “comissão”, avançou a tiro pelo meio de uma multidão em fila de espera e matou pelas costas o pobre empregado da bilheteira, que procurava fugir, quedando-se o seu fantasma  para sempre nos corredores do teatro.

Parece que os jornais da época não registaram qualquer acontecimento parecido com este, mas já se sabe o que acontece na América quando a lenda se sobrepõe à realidade…

Mas eu gosto desta história…

Apetece-me é acrescentar-lhe outros fantasmas muito meus, aqueles que morreram nas mais belas mortes do Cinema…

Thomas Mitchel, apoiado por Cary Grant, a dar uma última passa no cigarro no “Only Angels Have Wings”…

Louis Jourdan a deixar-se matar em duelo, depois de ter lido a carta de uma desconhecida…

Margaret Sullavan a abrir a janela e a roubar um último sopro de vida em “Three Comrades”…

O soldadinho de “A Time to Love and a Time to Die” a puxar pela última vez da carta que transportava bem junto ao coração e a vê-la fugir por entre as águas... 

Sterling Hayden estendido sobre a relva com que tanto sonhara, com o cavalo a beijar-lhe a face, em “The Asphalt Jungle”

James Mason a entrar no mar e a libertar, de vez, Mrs. Norman Maine, no “A Star is Born”, do Cukor, e Pandora a fazer o mesmo, por amor ao holandês voador…


Aqueles que os próprios fantasmas se encarregaram de vir buscar, como Mrs. Muir, Jeanette Macdonald no “Maytime” e o velho marido nas duas versões de  “Smilin’ Through”...

E como fantasmas não escolhem antigas ou novas vagas, lá estará, também, o Belmondo de “A Bout de Soufle”, qual James Cagney dos tempos modernos, a ser baleado pelas costas e a andar aos esses pela rua fora antes de se estatelar no chão e levar o dedo aos lábios pela última vez, como Bogard…

E também por lá andarão aqueles que morreram de mãos dadas, como os amantes crucificados do Mizoguchi,  Joel McCrea e Virginia Mayo nesse tão belo e tão esquecido “Colorado Territory” ou  Jennifer Jones e Gregory Peck, depois de se destruírem  mutuamente, no “Duel in the Sun”…

E ainda Helen Hayes nos braços de Gary Cooper, no “Farewell to Arms” do Borzage, naquela que hoje me apetece dizer que é a mais bela morte  no Cinema…

E como os anjos também serão admitidos,  não faltará por lá aquele que tão galhardamente ganhou as suas asas ao levar James Stewart a perceber que a Vida é, na verdade, uma coisa Maravilhosa…

Tanta e tão boa gente que nos encantou e emocionou ao longo da Vida lá deve estar… 

Porque talvez que o Cinema não passe disso mesmo: bons fantasmas que povoam o nosso imaginário e nos ajudam a viver…

E é por isso que  me comove sempre tanto ver um velho Cinema ainda vivo...

Texto e fotografais de Luís Miguel Mira

sábado, 25 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


No dia 24 já havia muito Abril, muita esperança no amanhã... e também muita poesia...

Em 2014 apeteceu-me fazer uma exposição com fotografias, cravos e poemas. Chamei-lhe, "Cravos da Liberdade - Fotografias com Palavras" e viveu no "Espaço Doces da Mimi", em Almada, no mês de Abril.

Este foi um dos poemas, e esta, uma das fotografias...


RECEBESTE CRAVOS
na quase caixa do correio
do teu portão azul que dança
de braço dado com a amargura e o vento
que só muito raramente te oferece
uma nesga de esperança...


Ele sabia que hoje chegaria aqui e tropeçava.

Ontem ainda deu para disfarçar, mas agora sabia que lhe iam faltar ideias, palavras, vontades, sabe-se lá mais o quê.

Claro que recusa o apagamento da memória, mas o estupor do Corvid-19 dá-lhe cabo dos dias.

Acontece, porém, que ele é visita diária do Largo da Memória.

E esse largo, essa memória, tiraram-no do limbo de fantasmas em que se sentia enredado, um passo, outro, passo, quantos mais passos…

Não lhe apetecia lembrar as palavras do costume que dizem que, depois de momentos de exaltação e esperanças, arrastou-se por momentos de angústias e desesperanças.

Não.

A fotografia, o texto, o poema são do Luís Eme, e foi esse o passe de mágica que arranjou para não aparecer embrulhado em alegrias, próprias e datadas, daquela nave de sonhos e loucuras em que andou mergulhado e que ninguém lhe tira.

 E, à fotografia e ao poema, que bem lhes fica o Abril.

Em tempo de escolher a música, ainda andou às voltas, seleccionou algumas, mas em cada esquina acabou sempre por encontrar a mesma canção: Utopia do José Afonso.

Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?