sexta-feira, 24 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


Um dia se saberá das razões que levaram, na manhã de 16 de Março de 1974, que uma coluna militar saísse do Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Raínha, em direcção a Lisboa.

Considerando os respectivos interesses, são possíveis duas hipóteses:

a)      Tentativa de os spinolistas se apropriarem da liderança do Movimento das Forças Armadas.
b)      Tentativa de os spinolistas serem afastados do processo em curso.

Um país triste, miserável, inculto, militares cansados de uma guerra que durava há 13 anos e em que morreram cerca de 10 mil portugueses, e uns bons milhares não facilmente contabilizáveis ficaram estropiados e outros acordam a meio das noites. Raro existir um português que não tivesse um familiar, um amigo morto nessa guerra.
 
era um tempo com barcos por dentro dos sonhos
era um tempo com meninos por dentro dos olhos
era um tempo de saber dos homens as mãos
era um tempo de saber das fontes as sedes
era um tempo de cais de lenços de raivas

tempo de espera,
tempo de qualquer tempo
tempo de contratempo
tempo de ser o tempo de o tempo nos  revisitar

Em Março de 1974, Marcelo Caetano, numa mensagem estranha, aos seus ministros, deixa implícito que só as grandes patentes militares do regime se deixavam corromper, lembrava:

«Cuidado com os capitães, o perigo vem deles, pois não têm ainda idade suficiente para poderem ser comprados.»

Marcelo Caetano, no seu Depoimento, escreve que o episódio das Caldas da Raínha não devia ter sido subestimado.

Não se percebe bem a observação na medida em que, linhas à frente, escreve que «… a revolução veio efectivamente de surpresa.»

A 24 de Abril, ao fim da tarde Marcelo Caetano, falava ao telefone com um dos seus ministros e comentava os rumores sobre um levantamento militar iminente:

«Isso é mais um boato desgastante», garantia.

Para o dia 25, os serviços de Meteorologia previam: Céu pouco nublado, por vezes muito nublado; vento fraco de norte; possibilidade de trovoada e aguaceiros.
Na noite de 24 de Abril, no Coliseu, representava-se La Traviata de Giuseppe Verdi

A sala estava completamente cheia e a reportagem do Diário de Notícias, do dia seguinte, dava conta que no meio das ovações vibrantes e intermináveis, cravos foram lançados das frisas.

A reportagem do Diário de Notícias dava conta que, no meio das ovações intermináveis, cravos tinham sido lançados das frisas.

Regressando a suas casas, a maioria daqueles espectadores desconheciam que esse começo de 25 de Abril não era mais um dia do calendário, um dia como outro qualquer.

Estava a chegar o Dia de Todas as Surpresas.

Se outros caminhos não o tivessem desviado, Otelo Saraiva de Carvalho teria um dos espectadores da representação da Traviata.

Otelo diz à mulher que chegou a hora, e se ela, no rádio, ouvir os sinais, é porque tudo está acorrer bem.

A mulher pergunta-lhe o que acontecerá se não ouvir os sinais.

Otelo responde-lhe:

Então, não sei ainda o que me poderá acontecer. Presumo que serei demitido, entregue à PIDE, passado a civil e vá aboborar por uns anos largos em Caxias ou, quem sabe, faça uma viagem só com bilhete de ida para o Tarrafal. Uma coisa te garanto: nunca mais farei guerra nenhuma no Ultramar.

No livro Alvorada de Abril, onde conta esta história, adianta:

«O gracejo final fora chocho. Tinha a sensação de que o panorama se apresentava negro. Tentei dar-lhe uma pincelada de cor:
- Mas não te apoquentes com nada disso nem tenhas pensamentos desse género. Porque eu tenho a certeza de que, em poucas horas, ganharemos esta guerra. Dominamos quase todas as unidades do País, a malta está com uma gana formidável, temos a nosso favor o efeito surpresa. É canja!
Ela quis também dar ao ambiente um pequeno toque de humor:
- Queres então dizer com isso que amanhã não vamos à ópera?
Tinha-me esquecido completamente do assunto. Comprara bilhetes para a Traviata, que se cantava na noite de 24 no Coliseu dos Recreios, aproveitando o preço mais baixo que nos era facultado através da Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar.
- Olha, guarda-os para recordação. É claro que não vamos.
Com o permanente espírito de economia caseira retorquiu:
- Leva-os antes contigo e procura entregá-los amanhã na Academia. Pode ser que devolvam o dinheiro.
- Não vou fazer isso. Entregá-los agora depois de tanto os ter pedido, dizendo que já não me interessa, pode levantar qualquer suspeita. Paciência. Outra vez virá. Além disso, já vimos a Traviata do alto do galinheiro do São Carlos.
Ainda hoje tenho comigo esses bilhetes. No sobrescrito timbrado da Academia Militar dentro do qual mos entregaram, minha mulher inscreveria mais tarde a frase: "Faltámos por motivo imprevisto".»

Naturalmente, a música que vos escolhi, é um trecho do 1º acto da Traviata: «E strano, e strano...Follie, follie...Sempre Libera», interpretado por Maria Calas.



Há quarenta e seis anos, por esta hora, findava mais um dia do nosso cinzento quotidiano.

No seu romance A Lei, Roger Vailland escreve:

«Um Verão, quando voltava de Londres, ao ir embarcar em Valência para Nápoles, tinha passado por Portugal. Tinha posto a si mesmo mil perguntas sobre o declínio dessa nação cujo império se tinha estendido à volta do Globo. Tinha conhecido escritores que não escreviam para ninguém; homens políticos que governavam para os Ingleses; homens de negócios que liquidavam os seus estabelecimentos do Brasil e viviam de pequenas rendas, em cidades de província, sem finalidade. Ele tinha pensado que era a pior das infelicidades nascer Português. Em Lisboa, pela primeira vez na vida, tinha-se encontrado com um povo que se tinha desinteressado.»

Legenda: Um Coliseu cheio para na noite de 24 de Abril de 1984 assistir à representação da Traviata. Fotografia do Diário de Notícias.

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