sexta-feira, 10 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS



Sexta-feira, dita de Paixão.

Por causa de um vírus, a Páscoa deste ano será diferente.

A fé é um tormento, dizem.

«Morrer é só não ser visto», escreveu o poeta.

Nos dias que correm quanta dor, quanta fome, quanto abandono?

«Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?»

Li a Bíblia, volto lá algumas vezes, mas, como houve autores (Albert Camus, Bertrand Russell, entre outros) que me fizeram ver que aquela história, pode estar muito bem contada, mas não tem pernas para andar.

Respeito a fé, as crenças, tudo, de quem entenda a isso dedicar-se.

Gostaria que respeitassem o facto de não frequentar deuses, mas não acontece facilmente.

«Só Deus sabe da tranquilidade do meu ateísmo e do respeito que tenho pela fé dos outros.»

A fé será mesmo um tormento?

Fica-te por aqui, não abras janelas que depois não consigas fechar.

Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que ouça.

Lembra-te que um dia alguém te disse que há quem procure pedras para atirar e quem as procure para construir.

Deixa que os poetas contem as coisas melhor do que tu poderias fazer.

E por estes dias regista apenas o essencial, não te alongues muito, e também faz por pensar, tal como José Saramago deixou num final de livro: «No dia seguinte ninguém morreu» e enquanto os dias forem de Paixão, faz por esquecer os negros números, é difícil, mas faz isso.

Já agora, como vais tendo todo o tempo do mundo, terás de contar a história de como procuraste, e encontraste, a música que hoje vais colocar aqui.


Rogo 


Não, não rezes por mim.
Nenhum deus me perdoa a humanidade.
Vim sem vontade
E vou desesperado.
Mas assinei a vida que vivi.
Doeu-me o que sofri.
Fui sempre o senhorio do meu fado.

Por isso, quero a morte que mereço.
A morte natural,
Solitária e maldita
De quem não acredita
Em nenhuma oração
De salvação.
De quem sabe que nunca ressuscita.

Miguel Torga


«Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foi propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direção das nascentes.»

Eugénio de Andrade

Os Justos

«Começam o dia louvando o imperfeito
O tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho

Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado

Estão sentados à soleira dos espaços
trabalhados devagar pelo silêncio

Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas»

José Tolentino Mendonça
  
1.

Marcelo Rebelo de Sousa deixou hoje a indicação de que o estado de emergência, até 1 de Maio, deverá manter-se.

2.

Após longa reunião, o Eurogrupo deu 540 mil milhões aos países membros para mitigar as dificuldades decorrentes do Covd-19.

No fim, bateram-se palmas.

Palmas.

Não sei bem por quem… porquê…

3.

As inscrições diárias nos centros de emprego duplicaram face a 2019.

Há 4.098 novos desempregados por dia. Despedimentos coletivos disparam em Abril e a «lay-off» já abrange 40 mil empresas.

4.

Hart Island, no estado de Nova Iorque, a cerca de 25 quilómetros do centro da cidade, é uma ilha utilizada para sepultar as pessoas que não são reclamadas pela família, está a ser utilizada para enterrar as vítimas do Covid-19.

Os enterros, que antes ocorriam semanalmente, agora acontecem cinco vezes por semana.

Os caixões são colocados numa espécie de vala comum.

Nova Iorque é o estado mais afectado com mais de 5.000 mortos e 160 mil casos de pessoas infectadas.

5.

«Não merecemos muito respeito como espécie.»

José Saramago

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