As crianças, às vezes, são como os animais. Pressentem os perigos…
Naquele dia
em que a amiga Kernona Clayton o foi buscar a casa para o conduzir ao
aeroporto, os filhos não o queriam deixar sair.
Taparam-lhe a
porta de saída de casa, gritando-lhe “Oh! pai, não nos deixes”…
Bloquearam-lhe
as escadas, insistindo “Oh! pai por favor não vás… Não nos deixes”…
Saltaram para
o “capot” do carro numa última e desesperada tentativa de o dissuadirem.
“Mas o que
aconteceu com estes miúdos?”, comentou com a amiga. “Devem estar a
dizer-me que sentem a minha falta… Quando voltar tenho de mudar os meus
hábitos. Não posso passar por isto…”
Aqueles
tinham sido os piores 18 meses da sua vida.
Estava
doente, exausto e sob uma enorme pressão.
O mais fácil
teria sido ficar em casa. Descansaria, aproveitaria o aconchego do lar,
brincaria com os miúdos, faria mais companhia aos seus pais e refletiria, com
maior tranquilidade, acerca das prioridades futuras do Movimento (o SCLC, “Southern
Christian Leadership Conference”).
Mas os
trabalhadores de limpeza da cidade de Memphis precisavam dele… Eram explorados
e estavam há muito em luta por salários dignos e melhores condições de
trabalho. Queriam ser tratados com dignidade, como Seres Humanos e não como
animais… “I’M A MAN” era a mensagem que, em letras garrafais, levavam pendurada
ao pescoço quando se manifestavam
Os colegas do
Movimento estavam contra o envolvimento nas ações de Memphis. Estavam
agora envolvidos na luta contra a pobreza nos Estados do Sul, a “Campanha dos Pobres”,
para a qual já tinham obtido o apoio de Robert Kennedy. Naquele momento ir para
Memphis era uma dispersão e, na sua luta, as dispersões nunca deram muito bons
resultados.
Mas ele
insistiu que tinham de ir… Racismo e exploração económica eram as duas faces de
uma mesma moeda, e não poderiam erradicar um sem lutarem, também, pelo derrube
da outra.
Sim, estes
estavam a ser, realmente, os piores tempos da sua vida, os de maior pressão.
Em 1966, a
sua intenção de levar o Movimento para o Norte, para a industrializada Chicago,
aproveitando aquilo que pensaria ser uma maior recetividade e apoio por parte
de uma população branca mais tolerante e esclarecida, redundara num quase
fracasso.
Envolvera-se,
pessoalmente, até ao limite. Levou mulher e os filhos para Chicago e
instalaram-se num bairro miserável.
Entre outras
coisas, o Movimento propunha-se lutar contra a discriminação imobiliária, que
condenava os negros a ficarem acorrentados aos bairros mais pobres e degradados
da cidade, negando-lhes o acesso aos de melhor qualidade de vida, mesmo quando
tinham condições financeiras para o fazer... Os negros, que asseguravam a base
da força de trabalho nas grandes Indústrias de Chicago e que eram, por isso,
responsáveis por uma boa parte da riqueza gerada na cidade…
Organizar a
luta revelar-se-ia difícil. Tiveram de lutar contra o Mayor Richard Daley
e a sua Polícia, contra o radicalismo branco, que muitas vezes era infiltrado
pelo próprio Ku-Klux- Kan e, o mais inesperado, contra os próprios
representantes locais da Igreja a quem desagradavam os seus métodos e a sua
intromissão.
Tudo
culminou, da pior forma, na marcha de Gage Park, no dia 5 de Agosto de 1966. O
Kan interveio às claras, lançando o pandemónio na manifestação, a qual acabou
por ser desmobilizada, com muita confusão, violência e dezenas de feridos à
mistura.
O Governo
Federal fez ouvir a sua voz e, em conjunto, o Movimento e os poderes locais
conseguiram negociar um “Acordo de Não Descriminação Imobiliária”, feito mais
de supostas boas intenções do que de projetos concretos, o que não passara de
uma meia-vitória e de uma forma airosa de saída...
Mais tarde
diria que tinha sentido muito ódio e raiva nos Estados do Sul, mas como no
Illinois nunca tinha visto nada…
Estava
fisicamente exausto e começava a ter sérias dúvidas quanto às sua capacidades
de liderança.
Parte do
Movimento, entretanto, radicalizara-se, primeiro influenciado pelas ideias
de Malcom X e depois com a subida de Stokely Carmichael à presidência do
SNCC (“Student Nonviolent Coordination Committee”), o ramo estudantil do
Movimento.
“Black
Power” em oposição a “White Power” era algo absolutamente
contrário a tudo o que tinha defendido e pelo qual tinha lutado até então, ele
que sempre advogara a não violência e que sempre deixara bem claro que o
objetivo do Movimento não era substituir o poder de uma raça pelo poder de
outra, mas sim uma coligação positiva entre ambas para o bem comum.
Já não lhe
bastava lutar contra um inimigo externo. Tinha agora outro bem dentro de si, já
que Stokely Carmichael se empolgara, assumira cada vez maior
preponderância e criticava abertamente os seus princípios de não violência,
apelando a manifestações com cada vez maior raiva e grau de destruição.
Estalaram
motins e outras manifestações de violência por todos os Estados Unidos da
América (Harlem em 1964, Watts em 1965 e, mais tarde, o “long hot summer”
de 1967...), que ele abertamente condenava mas aos quais acabaria sempre,
fatalmente, por ficar associado, já que, escreviam, tinha sido ele o responsável
pelo desencadear das hostilidades.
Não obstante
tudo isto, uma nova frente de batalha se abria.
Tinha
resistido durante muito tempo a manifestar-se publicamente acerca da guerra no
Vietname, mas agora sofria enormes pressões para erguer a sua voz sobre o
assunto. Dos estudantes, da Esquerda e de muitos elementos mais radicais
do Movimento. A sua própria mulher, Coretta, era já uma conhecida
militante anti-intervenção…
Ele sabia
muito bem que existia um terceiro pilar fundamental em que assentava o regime
opressivo sob o qual viviam, que se vinha juntar ao racismo e à exploração
económica da pobreza, e que era o militarismo. Todos estavam intimamente
ligados entre si e não seria possível livrar-se de um sem ter de se
livrar, também, dos outros dois...
Não poderia
deixar de falar do Vietname, portanto… Como ele próprio depois disse, “a
time comes when silence is betrayal”.
E a ocasião
surgiu em Nova Iorque, no dia 4 de Abril de 1967, na Igreja de Riverside.
Diz quem
conhece bem a sua vida que foi o melhor discurso de tantos quantos alguma vez
tinha feito.
Mas iria
sair-lhe muito caro, esse discurso…
No dia
seguinte os jornais de todo o país chamavam-lhe “traidor”, não só à Pátria mas
também ao presidente Lyndon B. Johnson, que o havia apoiado com a publicação da
“Lei dos Direitos Civis”, em 1964, e da “Lei dos Direitos de Voto”, em
1965, e no peito do qual ele acabara, agora, de espetar um punhal.
No interior
do Movimento e da própria comunidade negra, muitos também o censuravam por misturar
“Direitos Civis” com assuntos da política externa do país, numa palavra, por se
ter metido onde não era chamado…
A sua
popularidade descera a pico na América, e nunca estivera tão baixa, não
obstante o Prémio Nobel obtido em 1964. Voltara a ser, nas palavras do
sinistro Edgar Hoover, que o odiava profundamente, “o negro mais perigoso do
País”...
A pressão e o
cansaço psicológico acumulavam-se... O seu médico particular aconselhara-lhe
tratamento psicológico, que os Companheiros dissuadiram com receio de que
tudo quanto dissesse aos médicos viesse parar aos arquivos do FBI, e se virasse
contra ele.
Mas chegaram
a aconselhar-lhe um ano sabático. Porque não aceitar, mesmo que
temporariamente, o convite que lhe fora feito para ser o novo Pastor da Igreja
de Riverside, o que tanto prazer lhe daria…?
Recusou
veementemente.
Nas suas
próprias palavras, ele sabia que o Senhor o tinha escolhido e lhe tinha
atribuído uma Missão, da qual não poderia desistir sem provocar um total
descrédito e um rombo insuperável no respeito que tinha por si próprio.... Como
poderia ele, em boa Fé e Consciência, pregar em Riverside a abnegação, o Amor
pelos outros e a necessidade de uma permanente luta contra as adversidades,
sabendo que tinha, ele próprio, virado as costas às suas responsabilidades…?
Seguiria em
frente e a “Campanha dos Pobres”, nos Estados do Sul, seria uma excelente
oportunidade para mobilizar as pessoas e relançar o Movimento. Por uma vez não
seria uma mobilização apenas de negros, mas de pobres, que incluiria
ameríndios, mexicanos, portoriquenhos e brancos pobres, todos em uníssono a
marchar em Washington, como em 1963...
Mas o desejo
de apoiar a luta dos trabalhadores de recolha do lixo da cidade de Memphis
levou-o a dar um passo em falso e a participar, a 28 de Março de 1968, numa
marcha mal organizada e infiltrada por extremistas negros e brancos que acabou
em motim e teve de ser interrompida, deixando pelo caminho dezenas de feridos e
a morte de um negro.
Por uns foi
considerado moralmente responsável pelos ferimentos, pela destruição e pelos
prejuízos que provocados…
Por outros
foi apelidado de cobarde por ter abandonado a manifestação…
Nada pior
para quem precisava de levantar a cabeça. Pela primeira vez zangou-se
verdadeiramente com os seus Companheiros, por não lhe terem manifestado
suficiente apoio num momento tão importante da vida do Movimento
Mas não seria
agora que iria desistir.
Não iria
recusar o seu apoio aos companheiros trabalhadores do lixo…
Voltariam a
Memphis, tomariam eles a cargo, desta vez, a organização de uma marcha não
violenta e tudo iria correr bem.
E era neste
estado de tensão e exaustão, mas também de esperança, que se encontrava
quando naquele dia deixou os filhos para trás e se dirigiu ao aeroporto de
Atlanta para voar, de novo, para Memphis.
No dia 3 de
Abril chovia torrencialmente e estava marcado um comício na “Mason Temple
Church”, onde deveria discursar. Mas sentia-se adoentado e ficou no quarto do
hotel, pedindo aos outros que se encarregassem dos discursos.
Não lhe
serviu de nada. Comício sem a sua presença não era comício, tal como um dos
Companheiros lhe explicou ao telefone, quando já estava de pijama vestido e
pronto para se deitar.
Vestiu a
camisa branca, o fato escuro e a gravata e dirigiu-se ao local do Encontro.
A voz
tremia-lhe ligeiramente, os olhos pareciam perscrutar tudo à sua volta e a
excitação era maior do que o habitual quando fez o seu último discurso, o
arrepiante “I’ve Been to the Mountaintop”, como se tivesse um presságio
de que qualquer coisa de grave lhe iria acontecer.
Quase
desmaiou nos braços dos Companheiros quando terminou...
Mas no dia
seguinte acordou calmo e bem disposto.
Tinha chegado
a notícia de que a realização da nova marcha tinha sido aprovada pelas
entidades locais, e todos festejaram no quarto atirando as almofadas uns aos
outros, como crianças.
Antecedendo
um novo comício previsto para essa noite, o jantar seria no exterior em casa de
um Companheiro, a hora combinada 18h00 e já estavam atrasados.
Vestiu-se a
preceito, como era seu hábito, e da varanda do hotel perguntou a Jesse Jackson
se não iria subir para pôr uma gravata, tendo-lhe este respondido que o
pré-requisito para jantar era apetite, e não uma boa apresentação...
Chamou-lhe
doido e parece que ainda foi a tempo de incentivar o músico Ben Branch, que
atuaria nessa noite.
E foram as
suas últimas palavras e o seu último ato.
O disparo
vindo de um prédio do outro lado da rua fez-se ouvir e a bala entrou-lhe pela
base do pescoço e arrancou-lhe metade do maxilar, tendo morte quase imediata,
embora o óbito só tenha sido confirmado no hospital uma hora depois.
Eram 18h01 do
dia 4 de Abril de 1968, e tudo se passou aqui à porta do quarto 306 deste Lorraine
Motel que vos mostro e que é, hoje, um museu.
Os carros que
se encontravam defronte do hotel no momento do assassinato foram recuperados e
estão, de novo, nos lugares em que então se encontravam, integrando o complexo
do Museu.
O quarto de
Martin Luther King foi mantido intacto.
É impossível
estar aqui sem que sintamos um enorme nó na garganta e sem que as lágrimas nos
venham aos olhos… Disfarçamos pondo óculos escuros, afastando-nos das pessoas
que estão mais próximas e olhando o vazio, não se sabe bem para onde…
Comoção assim
só me lembro de ter sentido em dois lugares: no cemitério americano da II
Guerra Mundial em Colleville- sur- Mer, na Normandia, ao ver aquela relva tão
verde e aquela quantidade de cruzes brancas tão impecavelmente alinhadas
e a perder de vista, e no Campo de Concentração de Dachau, perto de Munique, defronte
dos fornos crematórios.
O verdadeiro
nome do assassino de Martin Luther King ainda hoje é uma incógnita.
Um homem de
nome James Earl Ray foi feito prisioneiro uns meses depois e condenado a 99
anos de prisão, tendo sempre clamado inocência até vir a falecer, em 1998.
Muitos consideram
que não passou de um bode expiatório e que o FBI, provavelmente em articulação
com a Máfia, teria sido o verdadeiro mentor do assassinato.
Disse-vos
atrás que em 3 de Abril Martin Luther King tinha feito o seu último discurso
público, mas faltei à verdade…
No dia 9 de
Abril, na Ebenezer Baptist Church de Atlanta, já depois de morto, dirigiu-se às
pessoas uma última vez...
A vontade
dele é que não houvesse grandes elogios fúnebres no seu funeral. Obedecendo a
esse desejo a mulher pediu que nesse serviço fúnebre fossem apenas
escutados excertos de um discurso que tinha proferido nessa mesma Igreja poucos
meses antes, no qual, por ironia do destino,
se referia ao seu próprio funeral...
E é com essas
breves palavras que vos deixo:
“Every now
and then I guess we all think realistically about that day when we will be
victimized with what is life's final common denominator--that something we call
death.
We all think about it and every now and then I think about my own death and I think about my own funeral. And I don't think about it in a morbid sense. And every now and then I ask myself what it is that I would want said and I leave the word to you this morning.
If any of you are around when I have to meet my day, I don't want a long funeral. And if you get somebody to deliver the eulogy tell him not to talk too long. Every now and then I wonder what I want him to say.
Tell him not to mention that I have a Nobel Peace Prize--that isn't important. Tell not to mention that have 300 or 400 other awards--that's not important. Tell him not to mention where I went to school.
I'd like somebody to mention that day that Martin Luther King Jr. tried to give his life serving others. I'd like for somebody to say that day that Martin Luther King Jr. tried to love somebody.
I want you to say that day that I tried to be right on the war question. I want you to be able to say that day that I did try to feed the hungry. I want you to be able to say that day that I did try in my life to clothe the naked. I want you to say on that day that I did try in my life to visit those who were in prison. And I want you to say that I tried to love and serve humanity.
Yes, if you want to, say that I was a drum major. Say that I was a drum major for justice. Say that I was a drum major for peace. I was a drum major for righteousness. And all of the other shallow things will not matter.
I won't have any money to leave behind. But I just want to leave a committed life behind. And that is all I want to say. If I can help somebody as I pass along, if I can cheer somebody with a well song, if I can show somebody he's traveling wrong, then my living will not be in vain.”
We all think about it and every now and then I think about my own death and I think about my own funeral. And I don't think about it in a morbid sense. And every now and then I ask myself what it is that I would want said and I leave the word to you this morning.
If any of you are around when I have to meet my day, I don't want a long funeral. And if you get somebody to deliver the eulogy tell him not to talk too long. Every now and then I wonder what I want him to say.
Tell him not to mention that I have a Nobel Peace Prize--that isn't important. Tell not to mention that have 300 or 400 other awards--that's not important. Tell him not to mention where I went to school.
I'd like somebody to mention that day that Martin Luther King Jr. tried to give his life serving others. I'd like for somebody to say that day that Martin Luther King Jr. tried to love somebody.
I want you to say that day that I tried to be right on the war question. I want you to be able to say that day that I did try to feed the hungry. I want you to be able to say that day that I did try in my life to clothe the naked. I want you to say on that day that I did try in my life to visit those who were in prison. And I want you to say that I tried to love and serve humanity.
Yes, if you want to, say that I was a drum major. Say that I was a drum major for justice. Say that I was a drum major for peace. I was a drum major for righteousness. And all of the other shallow things will not matter.
I won't have any money to leave behind. But I just want to leave a committed life behind. And that is all I want to say. If I can help somebody as I pass along, if I can cheer somebody with a well song, if I can show somebody he's traveling wrong, then my living will not be in vain.”
Fontes:
Não sou
historiador do “Civil Rights Mouvement”...
Para além das
informações localmente obtidas nos diversos museus que visitei, outras boas
fontes de informação para a elaboração deste e de outros textos que se seguirão
foram três documentários e um livro:
1) O
documentário “clássico” de Sidney Lumet e Joseph Mankiewicz “King: A Filmed
Record
- Montgomery to Memphis”, de 1970, que se encontra parcialmente disponível
no
YouTube;
2) O
documentário HBO “King in the Wilderness” (2018), de Peter Kunhardt
3) O
documentário “I Am Martin Luther King Jr.” (2018), de John Barbisan e Michal
Hamilton que,
tal
como o anterior, esteve em 2019 durante muitos meses disponível nos canais
Telecine;
4) O
monumental livro “Civil Rights Chronicle” (2003), da editora Publications
International Ltd,
que
funciona como uma espécie de catálogo não oficial do “Civil Rights Museum”
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