terça-feira, 14 de abril de 2020

MLK JR.


As crianças, às vezes, são como os animais. Pressentem os perigos…

Naquele dia em que a amiga Kernona Clayton o foi buscar a casa para o conduzir ao aeroporto, os filhos não o queriam deixar sair.

Taparam-lhe a porta de saída de casa, gritando-lhe “Oh! pai, não nos deixes”…

Bloquearam-lhe as escadas, insistindo “Oh! pai por favor não vás… Não nos deixes”…

Saltaram para o “capot” do carro numa última e desesperada tentativa de o dissuadirem.

Mas o que aconteceu com estes miúdos?”, comentou com a amiga. “Devem estar a dizer-me que sentem a minha falta… Quando voltar tenho de mudar os meus hábitos. Não posso passar por isto…

Aqueles tinham sido os piores 18 meses da sua vida.

Estava doente, exausto e sob uma enorme pressão.

O mais fácil teria sido ficar em casa. Descansaria, aproveitaria o aconchego do lar, brincaria com os miúdos, faria mais companhia aos seus pais e refletiria, com maior tranquilidade, acerca das prioridades futuras do Movimento (o SCLC, “Southern Christian Leadership Conference”).

Mas os trabalhadores de limpeza da cidade de Memphis precisavam dele… Eram explorados e estavam há muito em luta por salários dignos e melhores condições de trabalho. Queriam ser tratados com dignidade, como Seres Humanos e não como animais… “I’M A MAN” era a mensagem que, em letras garrafais, levavam pendurada ao pescoço quando se manifestavam

Os colegas do Movimento estavam contra o envolvimento nas ações de Memphis.  Estavam agora envolvidos na luta contra a pobreza nos Estados do Sul, a “Campanha dos Pobres”, para a qual já tinham obtido o apoio de Robert Kennedy. Naquele momento ir para Memphis era uma dispersão e, na sua luta, as dispersões nunca deram muito bons resultados.

Mas ele insistiu que tinham de ir… Racismo e exploração económica eram as duas faces de uma mesma moeda, e não poderiam erradicar um sem lutarem, também, pelo derrube da outra.

Sim, estes estavam a ser, realmente, os piores tempos da sua vida, os de maior pressão.


Em 1966, a sua intenção de levar o Movimento para o Norte, para a industrializada Chicago, aproveitando aquilo que pensaria ser uma maior recetividade e apoio por parte de uma população branca mais tolerante e esclarecida, redundara num quase fracasso.

Envolvera-se, pessoalmente, até ao limite. Levou mulher e os filhos para Chicago e instalaram-se num bairro miserável. 

Entre outras coisas, o Movimento propunha-se lutar contra a discriminação imobiliária, que condenava os negros a ficarem acorrentados aos bairros mais pobres e degradados da cidade, negando-lhes o acesso aos de melhor qualidade de vida, mesmo quando tinham condições financeiras para o fazer... Os negros, que asseguravam a base da força de trabalho nas grandes Indústrias de Chicago e que eram, por isso, responsáveis por uma boa parte da riqueza gerada na cidade…

Organizar a luta revelar-se-ia difícil.  Tiveram de lutar contra o Mayor Richard Daley e a sua Polícia, contra o radicalismo branco, que muitas vezes era infiltrado pelo próprio Ku-Klux- Kan e, o mais inesperado, contra os próprios representantes locais da Igreja a quem desagradavam os seus métodos e a sua intromissão.

Tudo culminou, da pior forma, na marcha de Gage Park, no dia 5 de Agosto de 1966. O Kan interveio às claras, lançando o pandemónio na manifestação, a qual acabou por ser desmobilizada, com muita confusão, violência e dezenas de feridos à mistura.

O Governo Federal fez ouvir a sua voz e, em conjunto, o Movimento e os poderes locais conseguiram negociar um “Acordo de Não Descriminação Imobiliária”, feito mais de supostas boas intenções do que de projetos concretos, o que não passara de uma meia-vitória e de uma forma airosa de saída...

Mais tarde diria que tinha sentido muito ódio e raiva nos Estados do Sul, mas como no Illinois nunca tinha visto nada…


Estava fisicamente exausto e começava a ter sérias dúvidas quanto às sua capacidades de liderança.

Parte do Movimento, entretanto, radicalizara-se, primeiro influenciado pelas ideias de  Malcom X e depois com a subida de Stokely Carmichael à presidência do SNCC (“Student Nonviolent Coordination Committee”), o ramo estudantil do Movimento.  

Black Power” em oposição a “White Power” era algo absolutamente  contrário a tudo o que tinha defendido e pelo qual tinha lutado até então, ele que sempre advogara a não violência e que sempre deixara bem claro que o objetivo do Movimento não era substituir o poder de uma raça pelo poder de outra, mas sim uma coligação positiva entre ambas para o bem comum.

Já não lhe bastava lutar contra um inimigo externo. Tinha agora outro bem dentro de si, já que Stokely Carmichael  se empolgara, assumira cada vez maior preponderância e criticava abertamente os seus princípios de não violência, apelando a manifestações com cada vez maior raiva e grau de destruição.

Estalaram motins e outras manifestações de violência por todos os Estados Unidos da América (Harlem em 1964, Watts em 1965 e, mais tarde, o “long hot summer” de 1967...), que ele abertamente condenava mas aos quais acabaria sempre, fatalmente, por ficar associado, já que, escreviam, tinha sido ele o responsável pelo desencadear das hostilidades.

Não obstante tudo isto, uma nova frente de batalha se abria.  

Tinha resistido durante muito tempo a manifestar-se publicamente acerca da guerra no Vietname, mas agora sofria enormes pressões para erguer a sua voz sobre o assunto. Dos estudantes, da Esquerda e de muitos elementos mais radicais do  Movimento. A sua própria mulher, Coretta, era já uma conhecida militante anti-intervenção…

Ele sabia muito bem que existia um terceiro pilar fundamental em que assentava o regime opressivo sob o qual viviam, que se vinha juntar ao racismo e à exploração económica da pobreza, e que era o militarismo. Todos estavam intimamente ligados entre si  e não seria possível livrar-se de um sem ter de se livrar, também, dos outros dois...   


Não poderia deixar de falar do Vietname, portanto… Como ele próprio depois disse, “a time comes when silence is betrayal”. 

E a ocasião surgiu em Nova Iorque, no dia 4 de Abril de 1967, na Igreja de Riverside.

Diz quem conhece bem a sua vida que foi o melhor discurso de tantos quantos alguma vez tinha feito.

Mas iria sair-lhe muito caro, esse discurso…

No dia seguinte os jornais de todo o país chamavam-lhe “traidor”, não só à Pátria mas também ao presidente Lyndon B. Johnson, que o havia apoiado com a publicação da “Lei dos Direitos Civis”, em 1964, e da “Lei dos Direitos de Voto”, em 1965,  e no peito do qual ele acabara, agora, de espetar um punhal.

No interior do Movimento e da própria comunidade negra, muitos também o censuravam por misturar “Direitos Civis” com assuntos da política externa do país, numa palavra, por se ter metido onde não era chamado…

A sua popularidade descera a pico na América, e nunca estivera tão baixa, não obstante o Prémio Nobel obtido em 1964.  Voltara a ser, nas palavras do sinistro Edgar Hoover, que o odiava profundamente, “o negro mais perigoso do País”...

A pressão e o cansaço psicológico acumulavam-se... O seu médico particular aconselhara-lhe tratamento psicológico, que os Companheiros dissuadiram  com receio de que tudo quanto dissesse aos médicos viesse parar aos arquivos do FBI, e se virasse contra ele.

Mas chegaram a aconselhar-lhe um ano sabático. Porque não aceitar, mesmo que temporariamente, o convite que lhe fora feito para ser o novo Pastor da Igreja de  Riverside, o que tanto prazer lhe daria…?


Recusou veementemente.  

Nas suas próprias palavras, ele sabia que o Senhor o tinha escolhido e lhe tinha atribuído  uma Missão, da qual não poderia desistir sem provocar um total descrédito e um rombo insuperável no respeito que tinha por si próprio.... Como poderia ele, em boa Fé e Consciência, pregar em Riverside a abnegação, o Amor pelos outros e a necessidade de uma permanente luta contra as adversidades, sabendo que tinha, ele próprio, virado as costas às suas responsabilidades…?

Seguiria em frente e a “Campanha dos Pobres”, nos Estados do Sul, seria uma excelente oportunidade para mobilizar as pessoas e relançar o Movimento. Por uma vez não seria uma mobilização apenas de negros, mas de pobres, que incluiria ameríndios, mexicanos, portoriquenhos e brancos pobres, todos em uníssono a marchar em Washington, como em 1963...  

Mas o desejo de apoiar a luta dos trabalhadores de recolha do lixo da cidade de Memphis levou-o a dar um passo em falso e a participar, a 28 de Março de 1968, numa marcha mal organizada e infiltrada por extremistas negros e brancos que acabou em motim e teve de ser interrompida, deixando pelo caminho dezenas de feridos e a morte de um negro.

Por uns foi considerado moralmente responsável pelos ferimentos, pela destruição e pelos prejuízos que provocados…

Por outros foi apelidado de cobarde por ter abandonado a manifestação…

Nada pior para quem precisava de levantar a cabeça. Pela primeira vez zangou-se verdadeiramente com os seus Companheiros, por não lhe terem manifestado suficiente apoio num momento tão importante da vida do Movimento

Mas não seria agora que iria desistir. 

Não iria recusar o seu apoio aos  companheiros trabalhadores do lixo…

Voltariam a Memphis, tomariam eles a cargo, desta vez, a organização de uma marcha não violenta e tudo iria correr bem.

E era neste estado de tensão e exaustão, mas também de esperança,  que se encontrava quando naquele dia deixou os filhos para trás e se dirigiu ao aeroporto de Atlanta para voar, de novo, para Memphis. 

No dia 3 de Abril chovia torrencialmente e estava marcado um comício na “Mason Temple Church”, onde deveria discursar. Mas sentia-se adoentado e ficou no quarto do hotel, pedindo aos outros que se encarregassem dos discursos.

Não lhe serviu de nada. Comício sem a sua presença não era comício, tal como um dos Companheiros lhe explicou ao telefone, quando já estava de pijama vestido e pronto para se deitar.

Vestiu a camisa branca, o fato escuro e a gravata e dirigiu-se ao local do Encontro.


A voz tremia-lhe ligeiramente, os olhos pareciam perscrutar tudo à sua volta e a excitação era maior do que o habitual quando fez o seu último discurso, o arrepiante “I’ve Been to the Mountaintop”, como se tivesse um presságio de que qualquer coisa de grave lhe iria acontecer.



Quase desmaiou nos braços dos Companheiros quando terminou...

Mas no dia seguinte acordou calmo e bem disposto.

Tinha chegado a notícia de que a realização da nova marcha tinha sido aprovada pelas entidades locais, e todos festejaram no quarto atirando as almofadas uns aos outros, como crianças.

Antecedendo um novo comício previsto para essa noite, o jantar seria no exterior em casa de um Companheiro, a hora combinada 18h00 e já estavam atrasados.

Vestiu-se a preceito, como era seu hábito, e da varanda do hotel perguntou a Jesse Jackson se não iria subir para pôr uma gravata, tendo-lhe este respondido que o pré-requisito para jantar era apetite, e não uma boa apresentação...

Chamou-lhe doido e parece que ainda foi a tempo de incentivar o músico Ben Branch, que atuaria nessa noite.

E foram as suas últimas palavras e o seu último ato.

O disparo vindo de um prédio do outro lado da rua fez-se ouvir e a bala entrou-lhe pela base do pescoço e arrancou-lhe metade do maxilar, tendo morte quase imediata, embora o óbito só tenha sido confirmado no hospital uma hora depois.

Eram 18h01 do dia 4 de Abril de 1968, e tudo se passou aqui à porta do quarto 306 deste Lorraine Motel que  vos mostro e que é, hoje, um museu.

Os carros que se encontravam defronte do hotel no momento do assassinato foram recuperados e estão, de novo, nos lugares em que então se encontravam, integrando o complexo do Museu.

O quarto de Martin Luther King foi mantido intacto.


É impossível estar aqui sem que sintamos um enorme nó na garganta e sem que as lágrimas nos venham aos olhos… Disfarçamos pondo óculos escuros, afastando-nos das pessoas que estão mais próximas e olhando o vazio, não se sabe bem para onde…

Comoção assim só me lembro de ter sentido em dois lugares:  no cemitério americano da II Guerra Mundial em Colleville- sur- Mer, na Normandia, ao ver aquela relva tão verde e aquela quantidade de cruzes brancas tão  impecavelmente alinhadas e a perder de vista, e no Campo de Concentração de Dachau, perto de Munique, defronte dos fornos crematórios.

O verdadeiro nome do assassino de Martin Luther King ainda hoje é uma incógnita.

Um homem de nome James Earl Ray foi feito prisioneiro uns meses depois e condenado a 99 anos de prisão, tendo sempre clamado inocência até vir a falecer, em 1998.

Muitos consideram que não passou de um bode expiatório e que o FBI, provavelmente em articulação com a Máfia, teria sido o verdadeiro mentor do assassinato.

Disse-vos atrás que em 3 de Abril Martin Luther King tinha feito o seu último discurso público, mas faltei à verdade… 

No dia 9 de Abril, na Ebenezer Baptist Church de Atlanta, já depois de morto, dirigiu-se às pessoas uma última vez...

A vontade dele é que não houvesse grandes elogios fúnebres no seu funeral. Obedecendo a esse desejo a mulher pediu que nesse serviço fúnebre  fossem apenas escutados excertos de um discurso que tinha proferido nessa mesma Igreja poucos meses antes, no qual, por ironia do destino,  se referia ao seu próprio funeral...

E é com essas breves palavras que vos deixo:

“Every now and then I guess we all think realistically about that day when we will be victimized with what is life's final common denominator--that something we call death.

We all think about it and every now and then I think about my own death and I think about my own funeral. And I don't think about it in a morbid sense. And every now and then I ask myself what it is that I would want said and I leave the word to you this morning.

If any of you are around when I have to meet my day, I don't want a long funeral. And if you get somebody to deliver the eulogy tell him not to talk too long.  Every now and then I wonder what I
want him to say.

Tell him not to mention that I have a Nobel Peace Prize--that isn't important. Tell not to mention that have 300 or 400 other awards--that's not important. Tell him not to mention where I went to school.

I'd like somebody to mention that day that Martin Luther King Jr. tried to give his life serving others. I'd like for somebody to say that day that Martin Luther King Jr. tried to love somebody.

I want you to say that day that I tried to be right on the war question. I want you to be able to say that day that I did try to feed the hungry. I want you to be able to say that day that I did try in my life to clothe the naked. I want you to say on that day that I did try in my life to visit those who were in prison. And I want you to say that I tried to love and serve humanity.

Yes, if you want to, say that I was a drum major. Say that I was a drum major for justice. Say that I was a drum major for peace. I was a drum major for righteousness. And all of the other shallow things will not matter.

I won't have any money to leave behind. But I just want to leave a committed life behind. And that is all I want to say. If I can help somebody as I pass along, if I can cheer somebody with a well song, if I can show somebody he's traveling wrong, then my living will not be in vain.
” 


Fontes:

Não sou historiador do “Civil Rights Mouvement”...

Para além das informações localmente obtidas nos diversos museus que visitei, outras boas fontes de informação para a elaboração deste e de outros textos que se seguirão foram três documentários e um livro:

1)  O documentário “clássico” de Sidney Lumet e Joseph Mankiewicz “King: A Filmed
     Record - Montgomery to Memphis”, de 1970, que se encontra parcialmente disponível no 
     YouTube;

2) O documentário HBO  “King in the Wilderness” (2018), de Peter Kunhardt

3) O documentário “I Am Martin Luther King Jr.” (2018), de John Barbisan e Michal Hamilton que,
    tal como o anterior, esteve em 2019 durante muitos meses disponível nos canais Telecine;

4) O monumental livro “Civil Rights Chronicle” (2003), da editora Publications International Ltd,
     que funciona como uma espécie de catálogo não oficial do “Civil Rights Museum”


 Texto e fotos de Luís Miguel Mira

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