Existe um preconceito que tende a considerar
os americanos um povo primitivo e pouco iletrado, que não tem uma
relação com a Cultura – assim mesmo, com cê grande – como aquela que nós,
europeus, temos.
O que me oferece dizer é que, ao longo de
quatro prolongadas viagens que já fiz pelos Estados Unidos da América, nunca me
apercebi que a Cultura fosse tratada a pontapé. Bem pelo contrário…
Alguns dos melhores museus do Mundo estão na
América, e não apenas em Nova Iorque, Washington, Los Angeles ou São Francisco,
mas também em cidades mais pequenas.
O país dispõe de inúmeras Organizações
federais, estaduais e privadas de renome no domínio da Cultura. A
“Smithsonian”, por exemplo, é uma das mais prestigiadas a nível mundial
É certo que a América não tem um património
cultural de excelência como o da Europa, mas agarram-se com unhas e dentes ao
que têm e preservam-no cuidadosamente.
Um exemplo desse património mais antigo que
conheço relativamente bem são as velhas Missões espanholas californianas do
Séc. XVIII que existem entre San Francisco e San Diego, que vi num excelente
estado de conservação.
Em todos os Estados, grandes casas senhoriais
do tempo colonial e dos primórdios da Independência, inseridas nos seus espaços
circundantes, foram preservadas e estão abertas aos visitantes.
Por todo o lado parques temáticos
permitem-nos viajar no tempo e conhecer um pouco melhor a Cultura e as
condições de vida das diversas gerações pioneiras, e dos próprios Índios,
como vi em Natchez.
No que respeita às chamadas “belezas
naturais”, elas são sobejamente conhecidas. São 62 Parques Naturais Nacionais
pouco tocados pelo Homem, de uma beleza de cortar a respiração, proporcionando
inesquecíveis experiências de harmonia e de comunhão com a Natureza. E se
pensarmos nos Parques Estaduais, este número aumenta consideravelmente...
Dir-me-ão que muitos desses espaços parecem
ser demasiado destinados ao turismo… E Versailles, os castelos do Loire,
o Louvre, a Tate Gallery ou os Uffizi, não o são também…?
É verdade que, quando dela necessitamos,
temos alguma dificuldade em encontrar uma boa livraria, mas isso parece
um (mau…) ar dos tempos e não algo específico dos Estados Unidos...
As próprias cidades nem sempre são feitas de
grandes arranha-céus. Existem verdadeiras “cidades-museu”, como St. Augustine,
Charleston, Natchez ou Savannah, para só vos referir aquelas que mais
recentemente visitei. E é um prazer passear pelas ruas dessas cidades e
ver a diversidade de estilos que oferecem ao viajante, em edifícios muito
antigos criteriosamente recuperados. Puxando a brasa à minha sardinha, não
imaginam a maravilha que é encontrar, em excelente estado de conservação,
velhas salas de Cinema centenárias em quase todos os lugares por onde passamos.
Quando paro defronte delas e as olho parecem
querer falar comigo e contar-me as suas histórias… O “glamour” que
viveram nos tempos áureos, quando o Cinema era belo… As alegrias, as tristezas
e os dramas que deram a ver… O que riram, o que choraram, o que cantaram e
dançaram, descalços no parque, à chuva ou sobre as nuvens… A excitação da sala
cheia e a agonia de vê-la vazia…
Parecem querer contar-me de tudo o que o
vento já levou… Dos esplendores na relva, das condessas descalças, de tudo o
que o Céu permite, das lendas dos beijos perdidos, dos filhos da noite, dos
rebeldes sem causa e de todos os que só Deus sabe quanto amaram...
Mas da história delas eu nada sei.
Quando as vejo estão quase sempre fechadas e nem as entranhas lhes
consigo vislumbrar… Só à noite, quando regresso ao quarto do hotel, posso ir à
“net” tentar perceber por onde passei...
Com regularidade irei enviar-vos fotografias
de algumas dessas Salas de Cinema, com informações acerca da sua história, nos
casos em que as consegui obter.
E vamos começar hoje com o belíssimo “Lucas
Theatre”, em Savannah, na Geórgia.
Foi mandado construir por um senhor chamado
Arthur Lucas, abastado proprietário de uma grande cadeia de Salas de Teatro, e
foi inaugurado, com pompa e circunstância, há quase 100 anos, no dia 26 de
Dezembro de 1921. Foi uma sessão dupla, com a curta “Hard Luck”, com
Buster Keaton, e “Camille” como filme principal, com a diva Alla Nazimova e o
divo Rudolfo Valentino, realizado por um tal Ray C. Smallwood de que não reza a
História.
À sua época, com 1237 lugares sentados,
era o cineteatro mais luxuoso de Savannah e o primeiro a possuir ar
condicionado.
Resistiu durante mais de cinco décadas, mas
em meados dos anos 70, com o enorme sucesso dos primeiros “blockbusters”
e a progressiva passagem do Cinema para as grandes superfícies comerciais com
as suas salas “multiplex”, foi obrigada a encerrar as suas portas, tal
como sucedeu a muitas outras salas por esse Mundo fora. O último filme que
passou foi “O Exorcista”.
Dez anos mais tarde foi criada uma associação
não lucrativa – “The Lucas Theatre of the Arts” - que tinha como objetivo
angariar fundos para a recuperação do edifício, o que ainda levaria muitos anos
a concretizar.
Mas isto está tudo ligado, e um grande
impulso para a recuperação acabou por ser dado por Clint Eastwood ao fazer
nessa sala, ainda em obras, a festa de encerramento das filmagens de
“Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal”, de que ainda há bem pouco vos
falei, e ao doar à Associação os lucros obtidos nesse evento.
A recuperação foi concluída e a nova abertura
teve lugar no dia 1 de Dezembro de 2000, com “E Tudo o Vento Levou”, como não
podia deixar de ser…
Hoje o “Lucas Theatre” é um espaço
multifacetado.
A sua exploração é gerida pelo “Savannah
College of Arts and Design”, que fica lá mesmo ao lado, e promove a exibição de
teatro clássico e de vanguarda, de eventos musicais variados e, naturalmente,
de Cinema, com particular atenção na divulgação dos grandes clássicos do cinema
americano.
É, igualmente, palco de realização de grandes
festivais anuais, como o “Savannah Film Fest”, o “Savannah Philharmonic” e o
“Savannah Music Festival”.
Reabilitação conseguida com sucesso,
portanto, o que nem sempre acontece nestes casos…
Mas não estaríamos em Savannah se não
houvesse, pelo meio, uma história de fantasmas…
Há quem garanta que este teatro está
assombrado, que se veem estranhas sombras e se ouve bater palmas quando está
vazio, e o “Lucas Theatre” é paragem obrigatória do “Ghost City Tours”...
Tudo terá acontecido em 1928, dizem, quando
um grupo de “gangsters”, provavelmente porque o proprietário do teatro
não lhes pagou a “comissão”, avançou a tiro pelo meio de uma multidão em fila
de espera e matou pelas costas o pobre empregado da bilheteira, que procurava
fugir, quedando-se o seu fantasma para sempre nos corredores do teatro.
Parece que os jornais da época não registaram
qualquer acontecimento parecido com este, mas já se sabe o que acontece na
América quando a lenda se sobrepõe à realidade…
Mas eu gosto desta história…
Apetece-me é acrescentar-lhe outros fantasmas
muito meus, aqueles que morreram nas mais belas mortes do Cinema…
Thomas Mitchel, apoiado por Cary Grant, a dar
uma última passa no cigarro no “Only Angels Have Wings”…
Louis Jourdan a deixar-se matar em duelo,
depois de ter lido a carta de uma desconhecida…
Margaret Sullavan a abrir a janela e a roubar
um último sopro de vida em “Three Comrades”…
O soldadinho de “A Time to Love and a Time to
Die” a puxar pela última vez da carta que transportava bem junto ao coração e a
vê-la fugir por entre as águas...
Sterling Hayden estendido sobre a relva com
que tanto sonhara, com o cavalo a beijar-lhe a face, em “The Asphalt Jungle”
James Mason a entrar no mar e a libertar, de
vez, Mrs. Norman Maine, no “A Star is Born”, do Cukor, e Pandora a fazer o
mesmo, por amor ao holandês voador…
Aqueles que os próprios fantasmas se
encarregaram de vir buscar, como Mrs. Muir, Jeanette Macdonald no “Maytime” e o
velho marido nas duas versões de “Smilin’ Through”...
E como fantasmas não escolhem antigas ou
novas vagas, lá estará, também, o Belmondo de “A Bout de Soufle”, qual James
Cagney dos tempos modernos, a ser baleado pelas costas e a andar aos esses pela
rua fora antes de se estatelar no chão e levar o dedo aos lábios pela última
vez, como Bogard…
E também por lá andarão aqueles que morreram
de mãos dadas, como os amantes crucificados do Mizoguchi, Joel McCrea e
Virginia Mayo nesse tão belo e tão esquecido “Colorado Territory” ou
Jennifer Jones e Gregory Peck, depois de se destruírem mutuamente, no
“Duel in the Sun”…
E ainda Helen Hayes nos braços de Gary
Cooper, no “Farewell to Arms” do Borzage, naquela que hoje me apetece dizer que
é a mais bela morte no Cinema…
E como os anjos também serão admitidos,
não faltará por lá aquele que tão galhardamente ganhou as suas asas ao levar
James Stewart a perceber que a Vida é, na verdade, uma coisa Maravilhosa…
Tanta e tão boa gente que nos encantou e
emocionou ao longo da Vida lá deve estar…
Porque talvez que o Cinema não passe disso
mesmo: bons fantasmas que povoam o nosso imaginário e nos ajudam a viver…
E é por isso que me comove sempre tanto
ver um velho Cinema ainda vivo...
Texto e fotografais de Luís Miguel Mira
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