quarta-feira, 8 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


Desculpem lá, mas hoje tenho que zarpar.

Há não sei quantos dias que dou voltas á casa.

De cá para lá ando, não direi que sejam dias completamente opressivos, porque sempre vou lendo, ouvindo música, alguns filmes, tentando alguns petiscos, mão na massa para fazer um bolo, mas hoje tenho mesmo de zarpar.

Um vizinho dizia há dias que tinha de dar umas voltas e para isso ia-se enfiar na máquina de lavar.

Eu vou sair para ir às iscas.

Pelo-me por iscas. Terrivelmente: de cebolada, com elas, batatinhas novas, no pão, de qualquer maneira.

Iscas.

Foram-me proibidas. Porque engrossam o sangue, elevam os níveis de colesterol.

Mas hoje vou às iscas, e levo como parceiro Albino Forjaz de Carvalho, que, em caminho, me vai dizendo, ia-se às iscas, ah!, mas não se julgue que as iscas eram o que são hoje. Não. Perdeu-se a poesia das iscas.

Que frase maravilhosa: «a poesia das iscas».

O cozinheiro era sempre galego e o segredo da sua preparação culinária, devia-se a dois factores: primeiro à espessura quase inverosímil da isca; segundo, a que nunca se lavava a frigideira, a não ser de ano a ano, quando os galegos iam à terra.

Num alguidar, um molho de muito vinagre, sal, pimenta, louro, muito alho e as iscas, largo tempo, aboboravam naquela molhanga.

Para a fritura: banha de porco e baço raspado para lhe dar grossura.

Havia outras, mas a melhor casa de iscas de que me lembro, ficava no canto do Largo de São Domingos,  onde está a igreja com o mesmo nome, paredes meias com a Rua Barros Queiroz.

Mas já não havia galego, a frigideira era lavada, as autoridades de bons costumes proibiram a venda de baço, a banha era do Nobre no Montijo, o tasqueiro cortava-se nos alhos e no vinagre.

Tudo sem a tal poesia das iscas.

Claro que vocês já perceberam que isto foi tudo uma divagação, um sonho breve e sem paladar. 

Não saí da cadeira da tal casa-de-lá-para-cá e por aqui fiquei com o Carlos do Carmo, em fundo, a cantar um poema do José Carlos Ary dos Santos, o «Fado dos Cheirinho» onde, a páginas tantasse diz «gosto mais de amor contigo do que das iscas com elas.»

Por vezes, um tipo tem que se meter numa destas, para fazer de conta que nada disto nos está a acontecer.


1.

O líder da extrema-direita em Itália, Matteo Salvini, defendeu que as igrejas devem estar abertas ao público para os ritos da Páscoa, mas a Conferência Episcopal recusou, apelando à responsabilidade em plena pandemia.

2.
A Ministra da Justiça rejeita que haja sobrelotação nas prisões portuguesas, mas diz que é preciso libertar espaço, porque o sistema em camaratas favorece a propagação do vírus. Portugal tem o quarto sistema prisional mais envelhecido da Europa.

Há presos que não vão sair das cadeias por não terem casa para regressar, lê-se, em título no Público.

3.

A Organização Internacional do Trabalho calcula que a pandemia vá lançar 195 milhões de pessoas no desemprego nos próximos três meses.

A maior parte na Ásia: 125 milhões.

Na Europa, serão 12 milhões de desempregados, incluindo milhares de portugueses.

4.

Os negros números:

Itália

17.669 mortes

Espanha

14.673 mortes

Estados Unidos

10.335 mortes

França

10.869 mortes

Grã-Bretanha

7.097 mortes

Irão

3.993 mortes

China

3.212 mortes

Holanda

2.248 mortes

Bélgica

2.240 mortes

Alemanha

2.183 mortes

Portugal

380 mortes

Mundo

86.979 mortes

5.

«O mal e o remédio estão em nós. A mesma espécie humana que agora nos indigna, indignou-se antes e indignar-se-á amanhã. Agora vivemos um tempo em que o egoísmo pessoal tapa todos os horizontes. Perdeu-se o sentido da solidariedade, o sentido cívico, que não deve confundir-se nunca com a caridade. É um tempo escuro, mas chegará, certamente, outra geração mais autêntica. Talvez o homem não tenha remédio, não tenhamos progredido muito em bondade em milhares e milhares de anos sobre a Terra. Talvez estejamos a percorrer um longo e interminável caminho que nos leva ao ser humano. Talvez, não sei onde nem quando, cheguemos a ser aquilo que temos de ser. Quando metade do mundo morre de fome e a outra metade não faz nada... alguma coisa não funciona.»

José Saramago


Legenda: Largo de São Domingos, aguarela de que não foi possível saber o autor. A Casa das Iscas localizava-se, ao fundo, por detrás do quiosque.

2 comentários:

Luis Eme disse...

Também adoro iscas. :)

Sammy, o paquete disse...

Abandonar por um instante a mesa de trabalho, ir à janela olhar a cidade e, de repente, uma vontade imensa de comer iscas, sentir aquele cheiro que o vinagre, o louro, os alhos, lançam.
Não há iscas a serem fritas na frigideira.
Mas como é que se pode sentir o cheiro?
Pode-se. Chamem-lhe o que quiserem chamar, mas pode-se.
Há quem saiba o porquê de isso ser possível, mas eu não sei.