terça-feira, 7 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


Neste tempo parado no tempo, o tempo dá para tudo: pensar em chocolates, numa sopa de tomate com ovos escalfados à alentejana, prometida há muito à Aida, lembrar coisas de que nunca se pensa que nos iríamos lembrar tanto, a importância da memória, os suores frios quando topamos que a memória começa a tropeçar, a angústia de perder a memória.

Porque a memória segura um edifício que é a maneira como olhamos a rua onde nascemos, onde corremos, demos e levámos porrada, de onde olhamos o mundo, de onde tudo se olha.

Porque somos aquilo que fomos fazendo e a recordação do que fizemos.

O tempo agora é o tempo de não termos medo de perder tempo.

A memória do tempo. No tempo da memória. Para que a memória não esqueça.

Chegar a um poema de Jorge de Sena, um lindíssimo e dramático poema, palavras de quem, muito tarde na noite, se sente cansado, ouve a sonata para violino e piano de César Franck, sente que o cansaço não o larga e antevê o profundo silêncio do que há-de chegar.

«É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.

E é tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço e a ouvir música.
Desfeito de cansaço,incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar à força de cansaço.
Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano de César Franck,
e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isoldano que não aceitarei nunca,
l' amor che muove il sole e l' altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa ,
e de cuja dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.

Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu' ai-je à faire de l' eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que morrerei
danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.»

                                        

1.

Julio Anguita, militante espanhol da Esquerda Unida:

«Muitos vão ter que apertar o cinto, o problema é que há gente já que nem cinto tem.»

2.

Pelo menos 33.366 empresas já se candidataram ao ‘lay-off’ simplificado, o que correspondente a um universo de 556.751 trabalhadores.

3.

A Organização Internacional do Trabalho considera que o mercado de emprego está a enfrentar com a pandemia do coronavírus a sua crise mais grave desde a Segunda Grande Guerra. Há 1,25 mil milhões de trabalhadores em risco elevado de despedimento ou de redução salarial.

4.

«Os Richmonds estão inundados e a electricidade foi-se. Deus está-nos a testar e eu por mim quero estar preparada. Onde é que está a vodka?»

- Diane, a personagem de Elaine Strich em Setembro, filme de Woody Allen.

5.

Os negros números:

Itália

17.127 mortes

Espanha

13.912 mortes

Estados Unidos

10.335 mortes

França

10.328 mortes

Grã-Bretanha

6.159 mortes

Irão

3.872 mortes

China

3.212 mortes

Holanda

2.101 mortes

Bélgica

2.035 mortes

Alemanha

1.983 mortes

Portugal

345 mortes

Mundo

81.200 mortes

 6.

«O medo nasce em qualquer lugar, como erva daninha por dentro. O medo suporta tudo e cresce no escuro até ser adulto, até ser do tamanho de um homem, e lhe tomar o corpo e pensar por ele.»

Nuno Camarneiro em Debaixo de Algum Céu

2 comentários:

Anónimo disse...

Cheguei a este blogue, que desconhecia, por causa da etiqueta referente ao poeta António Reis e fiquei agradavelmente surpreendido com o que tenho lido.
Passarei a passar por cá.
Muito obrigado
Pedro Garcia

Sammy, o paquete disse...

Obrigado pela visita.
Também pelas palavras.