sábado, 30 de abril de 2022

AMANHÃ É DIA DE FESTA!


Está quase a bater a meia-noite de 30 de Abril de 1974.

Se agora lhe perguntassem o que fez depois da madrugada por que esperava, diria que daí até ao 1º de Maio, necessariamente, terá dormido, mas, do que lembra bem, é que andou num turbilhão vertiginoso ao ponto de dizer que esse dia 25 não foi um dia, foi mais: que vai desde 25 de Abril até ao primeiro 1º de Maio.

Dirá então que acontecesse o que acontecesse – e muita coisa iria acontecer - obviamente aquela festa de ilusões, aquele património, já ninguém lhe tirava. 

Mais tarde dirá aos filhos, aos netos que só quem andou naquela nave de loucos,  viveu aqueles tempos de miragens, perceberá o que foi o 25 de Abril. 

E não mais esquecerá aqueles dias luminosos em que tudo parecia ser possível

Os jornais tentam dar notícia de tudo o que está acontecer, também do que virá.

Já foi extinta a PIDE/DGS, a Legião e as Mocidades Portuguesas, o povo persegue os pides nas ruas e, entregando-os às forças militares, são encarcerados em Caxias, conhecem a casa, mas agora olham-na com uma perspectiva bem diferente, sabe-se que os funcionários públicos despedidos por motivos políticos serão reintegrados, começam a regressar mais exilados políticos, os desertores querem voltar e pedem amnistia, Tomaz, Caetano, e outros ministros, estão no Funchal a aguardar guia de marcha para o exílio, os trabalhadores tomam conta dos seus sindicatos, um decreto-lei determina que quem quiser sair do país só poderá levar 50 contos.

Mas neste dia de há 46 anos, uma notícia ressalta, quase única: a Junta de Salvação Nacional faz publicar o decreto-lei que determina que o 1º de Maio será feriado nacional.

Durante a ditadura, o 1º de Maio era um dia que trabalhadores, estudantes, o povo estavam impedidos de comemorar.

Mas com coragem e determinação, aqui e ali, sempre encontraram forma de o assinalar, se bem que sujeitos a brutal repressão: pedras e palavras de ordem contra bastões, espingardas, carros-de-combate-lança-tinta-azul.

A mudança ia acontecendo, lenta, lenta, lenta, éramos tão poucos.

E onde estava aquele gente que, no amanhã de há 46 anos, encherá as ruas transformando-as num imenso oceano?

Nesta noite, Sá Carneiro será entrevistado pelo Telejornal. 

Dirá ao povo para, no 1º de Maio, actuar disciplinada e ordeiramente.

No dia seguinte, no Canal da Crítica do Diário de Lisboa, Mário Castrim escreverá que compreende a preocupação dos políticos, mas adianta:

«Depois, amigo Sá Carneiro, deixe lá o povo manifestar à vontade por esse país fora. Deixe-o mostrar a sua alegria, a sua vitalidade. Deixe-o à vontade matar a fome do pão que durante 50 anos lhe negaram. Tempos virão de trabalho e organização. Mas que se deixe, agora, que o Povo Português seja dono das ruas de Portugal e saborei a liberdade reconquistada. Então agora sem pide, sem Censura, sem prisões, então agora o povo não deve manifestar e cantar?
Amanhã é dia de festa. Viva o 1º de Maio!»

OLHAR AS CAPAS


Stoner

John Williams

Posfácio: John McGahern

Tradução: Tânia Ganho

Capa: Ideias Com Peso

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 2021

Havia uma doçura à sua volta e uma languidez apoderou-se do seu corpo. A sensação da sua própria identidade inundou-o com uma força inesperada e sentiu o poder dela. Era ele próprio e soube o que tinha sido na vida.

Virou a cabeça. A mesinha de cabeceira tinha uma pilha de livros em que ele não tocava há muito. Deixou a mão deslizar sobre eles um instante; espantou-se com a magreza dos dedos, a complexidade das articulações quando os fletia. Sentiu a força neles e deixou-os tirar um livro do caos que ia em cima da mesa. Era o seu próprio livro o que ele buscava, e quando a mão o agarrou, Stoner sorriu ao ver a familiar capa vermelha, há muito desbotada e coçada.

Pouco lhe importava que o livro tivesse caído no esquecimento e não servisse para nada; e a questão sobre se alguma vez tivera valor pareceu-lhe quase trivial. Não tinha a ilusão de que se encontraria a si próprio naquelas páginas, nas palavras esbatidas, e no entanto sabia que uma pequena parte de si, que ele não podia negar, estava efetivamente ali, e ali ficaria para sempre.

Abriu o livro e, ao fazê-lo, ele deixou de ser seu. Deixou os dedos folhearem-no e sentiu um formigueiro na pele, como se aquelas páginas estivessem vivas. O formigueiro começou nas pontas dos dedos e percorreu-lhe a carne e os ossos; estava minuciosamente ciente dele e esperou até se espalhar pelo corpo todo, até o conter, até o antigo entusiasmo, que era uma espécie de pavor, o fixar no lugar onde jazia. O sol, entrando pela janela, incidiu na página e ele não conseguiu ver o que estava escrito. Os dedos perderam as forças e o livro que eles seguravam deslizou devagar, e depois mais depressa, sobre o corpo imóvel, e caiu no silêncio do quarto.

CAIXAS E SACOS

Quanto maior é a caixa, mais leva.
As caixas vazias levam tanto como as cabeças vazias.
Muitas caixinhas vazias que se deitam numa grande caixa vazia,

                                           enchem-na toda.
Uma caixa meio-vazia diz: «Ponham-me mais.»
Uma caixa bastante grande pode conter o mundo.
Os elefantes precisam de grandes caixas para guardar

                                           uma dúzia de lenços de assoar para elefantes.
As pulgas dobram os seus lencinhos e arrumam-nos com cuidado

                                          em caixas de lenços para pulgas.
Os sacos encostam-se uns aos outros e as caixas

                                          levantam-se independentes.
 As caixas são quadradas e têm cantos, ou então são redondas

                                         e têm círculos.
Pode empilhar-se caixa sobre caixa até que tudo venha abaixo.
Empilhe caixa sobre caixa e a caixa do fundo dirá:

                                       «Queira notar que tudo repousa sobre mim.»
Empilhe caixa sobre caixa, e a que está em cima perguntará:

                                      «É capaz de me dizer qual de nós cai para mais longe

                                      quando caímos todas?»
As pessoas-caixas vão à procura de caixas e as pessoas-sacos

                                      à procura de sacos.

Carl Sandburg

Tradução de Alexamdre O’ Neill

sexta-feira, 29 de abril de 2022

POSTAIS SEM SELO


Vive a tua memória e assombra-te.

Jack Kerouac

GUTERRES À MESA COM PUTIN


Putin disse a Guterres que não há operações militares em Mariupol, Guterres disse aos jornalistas que tem a humildade de perceber que não consegue estar a uma mesa a conversar com Putin.

TRATOU AS PALAVRAS COMO OS BRINQUEDOS QUE NÃO TEVE NA INFÂNCIA


Há gente que deveria estar proibida de morrer.

Uma qualquer entidade deveria determinar e mandar publicar.

Em 19 de Outubro de 2012 o Manuel António Pina deixou de ir ao Café Piolho, à Cervejaria Convívio, pela doença que lhe saltou flagrantemente em cima, já o deixara de fazer mas aquele dia marca a impossibilidade física. Tudo o resto estará por aqui junto daqueles para quem uma série de gente nunca morre.

Poderia eu sobreviver se deixasse de ter montanhas de jornais e revistas amontoadas pelos cantos, para ler, para reler para recortar, eventualmente para arquivar? Claro que poderia, mas não era bem a mesma coisa. Como ter cortado no gin-tónico, nas cigarrilhadsa, nas charutadas, por aí fora…

Estes dias, estúpidos desenfreados, sem ponta de norte, têm dado para andar a aliviar as tais montanhas de papelada escrita, acumulada pelos cantos.

Uma parte dessa papelada diz respeito à morte do Manuel António Pina.

A capa do Público de 20 de Outubro de 2012 guarda uma fotografia do Pina quase perfeita: livros, o olhar sereno, uma cigarrilha entre os dedos da mão direita. E não é perfeita porque faltam os gatos que o levavam a escrever as deliciosas crónicas para a última página do Jornal de Notícias para ter possibilidade de os alimentar ou os levar ao veterinário.

Homem recto, competente, solidário lúcido, simples, carregado de humor e ironias, um sábio, um príncipe, «eu posso lá morrer terra florida», gritou um outro poeta.

«Tinha um sorriso que era uma janela aberta sobre o coração», disse o jornalista Germano Silva, seu camarada no Jornal de Notícias, companheiro-mor das noitadas portuenses.

«Se hoje as nossas lágrimas estavam a precisar de uma grande razão, tu acabaste de no-la dar», escreveu José Alberto Lemos, também da redacção do Jornal de Notícias, também camarada de boémias.

A tarde é quase noite.

E das montanhas de papelada ao canto da sala, apenas aliviei dois, três jornais. 

Culpa do Manuel António Pina.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Os dias arrastam-se difíceis.

O tirar das máscaras, com as excepções indicadas, não permite, dizem os que disto sabem, concluir do impacto que os novos casos de infecção do Covid-19 estão a acontecer.  Portugal, juntamente com a Espanha, mantêm em níveis elevados a incidência de novos casos e são dos países da União Europeia onde isso mais está  a acontecer, principalmente entre os idosos.

Curiosamente verifico que a quantidade de pessoas com máscara nas ruas não diminuiu tanto como se esperava.

O cidadão comum, muito vulgar de lineu, não percebe, então, a pressa com que se procedeu a um tirar de máscaras, exceptuando o que foi determinado.

Ah!, e para não sair do arrastar das dificuldades no quotidiano, a inflação atingiu os 7,2%, valor que não se verificava há 29 anos. 

E como dizia o Raul de Carvalho A esperança já não passa de um nome, de um nome como qualquer outro…

quinta-feira, 28 de abril de 2022

VINTE E QUATRO HORAS

Eu vos digo que é tarde, demasiado tarde

Para principiar

A exercer a justiça;

O número dos mortos já excede

O tamanho da terra

E há corações para os quais

A esperança já não passa

De um nome, de um nome como qualquer outro…

 

Eu vos digo que já não temos tempo

Senão para a vingança.

 

Raul de Carvalho

(31.XII.1955)

quarta-feira, 27 de abril de 2022

O CANTIGUEIRO DE SONHOS


No dia 25 de Abril, Manuel Freire fez 80 anos.

Não é por ser um número redondo, que nos leva a trazer aqui este rapaz nascido em Vagos, é antes o registo de um tipo discreto, sereno, a viver longe dos holofotes, que merece o lugar de relevo que ocupa, não só na música popular portuguesa, mas no que ele , com a sua viola, «toco pessimamente», as suas canções contribuiu para zarpar os caminhos que levaram ao 25 de Abril.

Quando, em 1969, Manuel Freire aparece no Zip-Zip, a cantar Pedra Filosofal de António Gedeão, não era totalmente um desconhecido. Era um companheiro de viagem, dos que, país fora, andavam por sociedades recreativas a dizer, a quem os quisesse ouvir, que haveria de chegar o dia das surpresas.



Em 1969 publicara o EP Manuel Freire Canta Manuel Freire, que inclui Livre, poema de Carlos de Oliveira, que passámos a saber de cor e que, por aqueles dias, em qualquer circunstância, se cantava ou murmurava.


Depois um outro EP, Trovas,Trovas,Trovas, que inclui o belíssimo poema de Daniel Filipe, Lutaremos Meu Amor disco que, de imediato, foi apreendido pela PIDE.

Uma simples mensagem: “na aparência sozinhos multidão na verdade, lutaremos meu amor", punha o regime a tremer.

Claro que a passagem pelo Zip-Zip projecta Manuel Freire para um outro tipo de público, e muito mais gente ficará, então, a saber que o sonho comanda a vida, que o mundo pula e avança.

Manuel Freire sobre a poesia de António Gedeão:

«A poesia dele tem um ritmo próprio. Para já, é extremamente clara. Não é daqueles poetas que a gente tem de ler o poema três vezes para perceber o que eles querem dizer. Isso não os torna nem piores nem melhores, torna-os diferentes. O Gedeão não: lê-se à primeira e percebe-se o que quer dizer. E como tem um ritmo, torna mais fácil musicar as coisas. De maneira que foi isso que eu descobri.»

António Gedeão, ou Rómulo de Carvalho, nas suas  Memórias sobre Manuele Freire:

«Eu tenho comigo trinta discos onde foram gravadas canções, feitas por diversos cantores de maior ou menor fama. Sobre poemas meus. Desses trinta discos dois deles foram-me oferecidos pelos seus criadores. Os restantes vinte e oito (e não estou em erro) foram comprados por mim quando, por acaso, os fui encontrando nas montras das casas de discos por onde passava.

O que mais se notabilizou nestas andanças foi o Manuel Freire, um rapaz com voz agradável e talento musical. Quando depois o conheci, e conversei com ele, disse-me que ficara muito impressionado quando leu os meus poemas publicados, pelo seu sentido musical. Particularmente leu a Pedra Filosofal e, espantosamente, impelido pelo ritmo do texto, começara a lê-la e a trauteá-la. Daí lhe nasceu, de imediato a música que tão popular se tornou. Houve quem dissesse no jornal que a Pedra Filosofal marcara toda uma geração.

Tenho comigo cinco discos do Manuel Freire onde ele canta, com música sua, não só a “Pedra Filosofal” como também o “Poema da malta das naus”. Devo-lhe muito. Suponho que foi pela sua actuação que a minha poesia conseguiu tão grande êxito generalizado.»

  O CANTIGUEIRO

OLHAR AS CAPAS


O Caso da Boneca Maliciosa

Erle Stanley Gardner

Tradução: Maria do Carmo Francisco

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 312

Livros do Brasil s/d

Della Street, secretária particular de Perry Mason, entrou no gabinete do advogado, aproximou-se deste e declarou:

- Um escritório de advogado é o lugar mais tramado que há.

- Concordo – disse Mason -, mas posso saber a razão dessa observação?

- Uma tal Miss Dorrie Ambler.

- E essa Miss Ambler está na recepção à espera que eu a tenda?

- Diz que precisa de falar-lhe já.

- Que idade tem ela?

Vinte e três, vinte e quatro, mas vividos.

- Descrição?

- Cabelo arruivado, olhos cor de avelã, um metro e sessenta, cinquenta quilos, medidas de corpo, oitenta e cinco, sessenta, oitenta e cinco.

- E agora – disse Mason – vamos ao seu comentário… um escritório de advogado é o lugar mais tramado que há. Qual a razão?
- Por mais que se esforçasse – respondeu Della – nunca conseguiria adivinhar o que Miss Ambler pretende… quer dizer, pelo menos. O que ela diz pretender.

-Admito. Que pretende ela?

- Pretende mostrar-lhe a sua operação.

- A sua quê?

- A sua operação.

- Acção de indemnização por perdas e danos contra algum médico?

- Parece que não. Ela julga que a sua identidade vai estar em causa e quer provar ao chefe quem é, ou antes, quem não é. Deseja fazê-lo, mostrando-lhe a cicatriz de uma operação.

terça-feira, 26 de abril de 2022

NOBODY EATS AT LINEBOUGH'S ANYMORE


They're gonna tear down the Grand Ole Opry
They're gonna tear down the sound that goes around our song
They're gonna tear down the Grand Ole opry
Another good thing, is done gone on, done gone on

Well there were campers
And there were busses
Parked all around, where there used to be a door
But that place
Called the Grand Ole Opry
It just ain't there
Just ain't there no more

They're gonna tear down the Grand Ole Opry
…………………………………………………………………….

Right across from the wax museum they used to line up
Around the block
From east Tennessee and back down home again
All of a sudden there's nothing to do where there once
Was an awful lot
Broad Street will never be the same

I've been in love with the Grand Ole Opry
And I guess I have now for a good many years
When I hear the Grand Ole Opry
It makes me sad that it's gonna disappear, gonna disappear

They're gonna tear down the Grand Ole Opry

……………………………………………………………………

(John Hartford, “Tear Down the Grand Ole Opry, 1971) 

“Where can you go to see the country music’s stars?

That’s what we come to Nashville for

No one comes around to play the pinball machines

Nobody eats at Linebaugh’s anymore

Now the Opry’s gone and the streets are bare

Ernest Tubb’s Record Shop is dark

And the drunks are gone from the Merchant’s Hotel

Everybody’s gone to the park

Where can you go to see the country music’s stars

Sittin’, drinkin’ coffee ‘till four

Shoney’s closed at nine o’clock; there’s nothing left to do 

Nobody eats at Linebaugh’s anymore

Now the Opry’s gone…………………………………….

Somewhere in the suburbs the Opry plays tonight

But the people come around to take the rides

The park shuts up at bedtime, there’s nowhere else to go

Nobody eats at Linebaugh’s anymore 

Now the Opry’s gone ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,

(John Hartford, “Nobody Eats at Linebaugh’s Anymore”, 1972) 

Como já aqui vos contei, quando foi anunciado que o Grand Ole Opry iria abandonar as instalações do Ryman Auditorium e mudar-se para os subúrbios, as reações não se fizeram esperar, sobretudo por parte dos fãs mais antigos e por uma boa parte da comunidade musical de Nashville. Mas não houve unanimidade nessa critica e um homem como Roy Acuff, decano do Opry, até  foi uma das primeiras vozes a defender essa mudança, argumentando que não só o Ryman já não disponha de condições logísticas adequadas a tanta gente, como também o “downtown” de Nashville, com as “suas hordas de bêbados e de drogados”, se havia transformado num local muito pouco frequentável para as respeitáveis famílias americanas que propositadamente se dirigiam à cidade para assistir aos espetáculos musicais.

 


Quanto aos contestatários, nem todos tiveram coragem para transformar a sua tristeza em canções porque, é claro, continuariam a necessitar do Grand Ole Opry para o prosseguimento das suas carreiras, estivesse ele onde estivesse.

Quem não tinha necessidade nenhuma disso era John Hartford, um nome que poucos conhecem, mas, indiretamente, quase todos conhecem por ter sido o autor de “Gentle on My Mind”, um dos grandes sucessos musicais dos anos sessenta. Desconheço a contabilidade aos dias de hoje, mas no final do século passado atingia já os 500 o número de interpretes diferentes que tinham gravado as suas versões de “Gentle on my Mind”, sendo que a mais conhecida e lucrativa delas todas foi a que Glen Campbell lançou em 1967.  

 


Desta forma, aos 30 anos já tinha John Hartford garantido a sua independência financeira só à custa dos “royalties” dessa música, pelo que, a partir daí, poderia fazer o que lhe desse na real gana. E o que ele mais gostava de fazer era tocar violino, banjo e bandolim, e cantar músicas alusivas ao Mississippi, fossem elas originais por si compostos ou velhas canções tradicionais. E Hartford gostava tanto da vida no Mississippi que obteve licença de condução de “steamboats” e todos os anos reservava algum tempo para se divertir, dedicando-se a essa atividade. Morreria muito cedo, de cancro, aos 63 anos.

 


Foi este descomprometido John Hartford, amante do Grand Ole Opry e nostálgico dos velhos tempos, quem compôs logo em 1971, mal a saída do Ryman foi anunciada, uma canção de alerta e de lamento por esse facto. Está longe de ser uma canção brilhante, mas tem um inquestionável interesse histórico…

E reincidiu logo no ano seguinte, com um canção bem melhor, premonitória de como seria o “downtown” de Nashville quando o Opry o abandonasse. Digo premonitória porque a canção é de 1972 e o Grand Ole Opry só viria a deixar o Ryman em 1974.

 


Nessa canção, cujo título roubei para este texto, Hartford evoca o provável desaparecimento de uma série de lugares míticos de Nashville da época áurea do Ryman , nomeadamente o “Linebaugh’s”, o “Merchant Hotel”, o “Shoney’s” e a “Ernest Tubb Record Shop”. 

O “Linebaugh’s” era um dos restaurantes onde se juntavam os artistas depois dos espetáculos, numa altura em que havia alguma proximidade entre eles e o seu público. Se alguém quisesse encontrar Patsy Cline ou Jimmy Reeves depois de uma atuação, já sabia que era no “Linebaugh’s” que eles estavam. A proximidade era tão grande que, por vezes, no Grand Ole Opry se sorteavam de entre o público alguns participantes para irem tomar o pequeno-almoço com os artistas no dia seguinte ou, melhor dizendo, com aqueles que a essa hora da manhã ainda se aguentassem em pé…! Uma das características do “Linebaugh’s” era a de ter umas “pinball machines” perto das janelas, facto a que Hartford não deixa de fazer alusão. 

 


 O “Linebaugh’s”, entretanto, desapareceu e quando por lá passei havia outro com o mesmo nome, mas bastante mais longe do centro, o mesmo sucedendo com o outro restaurante mencionado na canção, o “Shoney’s”, que, após a morte do seu proprietário, deixou a Broadway de Nashville e se instalou em vários locais como “franchise”. 

Quanto ao “Merchants”, era um velho hotel centenário localizado a poucos quarteirões do Ryman, que nos seus primórdios terá albergado verdadeiras lendas do Oeste americano como Wild Bill Hickok, Jesse Janmes e os irmãos Younger. Nos tempos áureos do Grand Ole Opry, era o lugar onde ficavam instalados muitos dos artistas que lá atuavam e Hank Williams, Johnny Cash, Roy Acuff ou Dolly Parton contam-se entre aqueles que por lá dormitaram. Encerrou como hotel no início dos anos 80, quando o “downtown” de Nashville terá entrado em declínio e viria a reabrir no final dessa década, apenas como restaurante.  Foi assim que o encontrei e nele me sentei para jantar. 

 


Finalmente, o “park” para onde todos se parecem dirigir deixando as ruas vazias, o tal que fecha cedinho à hora do ó-ó,  é o “Opryland USA”, um enorme parque temático musical autodesignado “Home of the American Music” localizado nas imediações da “Opry House”, as novas instalações do “Grand Ole Opry” desde 1974.

Quando à “Ernest Tubb Record Shop”, é uma loja de discos histórica, verdadeira lenda viva   da “Country Music” de outros tempos, que ainda por lá anda desde 1947 e que irá merecer da minha parte um tratamento especial numa próxima oportunidade.  

Não faço a mínima ideia se John Hartford teve, ou não, razão na sua premonição, mas sei de fonte segura que nos finais dos anos 70/inícios de 80 toda aquela zona da Broadway de Nashville terá entrado em declínio, transformada que foi em albergue de lojas porno, “peep shows”, teatros e bares para adultos e grandes espaços de bilhar com os seus malandros típicos, como nos lembramos de ter visto em tantos filmes americanos de outros tempos.

Da Nashville dos anos 70 não conheço nada, a não ser o que vi no filme do Robert Altman. E sim, lembro-me que por lá havia gente marada, nomeadamente aquele atirador furtivo que numa das últimas cenas do filme acaba por matar a desgraçadinha cantora vestida de branco, mal ela tinha acabado de interpretar, com tanta alma e coração (“for Mama and Daddy”!...), o “My Idaho Home”… 


Eu não sou diferente das outras pessoas e, como se diz na canção do John Hartford, se fui para a Broadway de Nashville foi para ouvir “Country Music”, com um copo gigante de cerveja numa mão e amendoins e batatas fritas na outra. Mas a “Country” do antigamente, e quanto mais foleira, melhor… Não me preocupei muito a estudar os possíveis locais porque, com tanta oferta, nunca pensei que isso fosse um grande problema.

Fiz mal…

É verdade que os bares de música são às largas dezenas e até encontrei um edifício de três andares com um agrupamento musical diferente em cada um deles, a tocarem ao mesmo tempo. Mas todos eles tinham uma característica comum: uma música absolutamente intragável, que não consigo definir. Aquilo não é “Country”, não é “Rock”, não é “Pop”, não é nada a não ser barulho, muito barulho…

 


Que saudades das músicas de Kenny Rogers, Garth Brooks, Randy Travis ou Willie Nelson, para só falar dos “foleiros” mais recentes de que me lembro… 

O que eu não teria dado para ouvir alguém cantar as pobres músiquinhas do “Nashville”:  “My Idaho Home”, “One, I Love You”, “Keep A-Goin’”, fosse lá o que fosse… O que viesse à rede seria peixe.

Mas nada que se aproximasse… Uma verdadeira desilusão!  A maior de toda a viagem, em termos musicais.

Cá fora estavam “caleches” iluminadas, prontas a proporcionarem inolvidáveis e excitantes  passeios à beira rio a casais à procura de aventuras românticas .

Por todo o lado andavam umas traquitanas a que eles chamam “Pedal Tavern”, que mais não são do que uma enorme bicicleta coletiva, uma mesa com rodas com pessoas à volta, que vão pedalando enquanto comem, bebem e berram o mais que podem…

 


Na noite de Nashville só se salvaram os “néons”, como vos darei a ver noutra ocasião. 

A Broadway de Nashville que eu vi, com todas as suas lojas, bares e restaurantes para todos os gostos, não é mais que uma enorme Feira Popular ao ar livre, rigorosamente vigiada por polícias montados em cavalos e em Harleys Davidson. Talvez tenha um pouco mais de gente e de barulho, mas não se afasta em muito da desilusão traçada por John Hartford cinquenta anos antes. 

Mas numa coisa ele se terá enganado profundamente. Nos dias de hoje, “Ernest Tubb Record Shop” está tudo menos “dark”, como vos contarei proximamente…

Texto e Fotografias de Luís Miguel Mira

OLHAR AS CAPAS

Saramago: Os Seus Nomes

Um álbum biográfico

Edição de Alejandro Garcia Schnetzer e Ricardo Viel

Prefácio: António Guterres

Capa e projeto gráfico: Raul Loureiro

Porto Editora/ Fundação José Saramago, Lisboa, Abril de 2022

 

Não o pensava antes, quando escutava a guitarra de Carlos Paredes, mas hoje, recordando-a, compreendo que aquela música era feita de alvoradas, canto de pássaros anunciando o sol. Ainda tivemos de esperar uma década antes que outra madrugada viesse abrir-se para a liberdade, mas o inesquecível tema de Verdes Anos, esse cantar de extática alegria que ao mesmo tempo se entretece em harpejos de uma surda e irreprimível melancolia, tornou-se para nós numa espécie de oração laica, um toque a reunir de esperanças e vontades. Já seria muito, mas ainda não era tudo. O resto que ainda faltava conhecer era o homem de dedos geniais, o homem que nos mostrava como podia ser belo e robusto o som de uma guitarra, e que era, a par de músico e intérprete excepcional, um exemplo extraordinário de simplicidade e grandeza de carácter. A Carlos Paredes não era preciso pedir que nos franqueasse as portas do seu coração. Estavam sempre abertas.

Palavras de José Saramago em O Caderno, colocadas pelos autores neste Álbum Biográfico no capítulo «Leituras/Sentidos»

segunda-feira, 25 de abril de 2022

POSTAIS SEM SELO


Nenhum dia é festivo por ter já nascido assim: seria igualzinho aos outros se não fôssemos nós a fazê-lo diferente.

José Saramago

OLHARES


O filme deste dia de há 48 anos, passa-lhe pela memória.

Alguns pormenores estão esquecidos.

Outros não.

Começara a chover, as ruas iam-se esvaziando, as gentes que correram, gritaram e caminharam por aqui e por ali regressavam a casa para ver o que a televisão apreto ebranco tinha para dizer.

Marcelo já se rendera a Spínola. O poder não caíra na rua como pretendera o ditador.

Foi quando encontrou o Pedro Foyos, naquele tempo o paginador gráfico do República, que o desafiou para uma volta pela cidade.

Subimos a Avenida da Liberdade, demos a volta para o Conde Redondo. Continuava a chover e o Pedro Foyos desafiou-o para um petisco e um copo de um qualquer vinhito. Apenas encontrámos na Luciano Cordeiro o Café Camacha aberto, mas prestes a fechar portas.

 Ao balcão bebemos um penalty de vinho branco e comemos um pastel de bacalhau.  Era o que nos podiam dar. Brindámos ao que aí viria.

De modo algum poderia ser pior do que os tempos que íamos vivendo.

Tenho uma ternura por esta lembrança de tempo ddeste  dia de há 48 anos.

Pequenos e simples momentos. Talvez os melhores.

Nunca o desfiei por aqui, nem em nenhum lado.

Envelhecer é isto.

Legenda: pintura de Douglas Gray

NO IMPONDERÁVEL AZUL CELESTE


 É, andei por aí.

 Com gente, procurando gente, pontes e vales, tem sido assim esta vida. E houve aquele dia, 25 de Abril de 1974.

 Dizem que por um Abril houve uma revolução, outros dizem que houve um golpe de estado, outros ainda que houve uma abrilada, sucederam coisas gritadas nas ruas, outras soavam nas sombras clandestinas.

 Na escola disseram aos miúdos que tinham que ir para casa, estava a acontecer qualquer coisa em Lisboa.

 Que comemoramos hoje? Que resta daquele dia?

 O chefe de redacção telefonou ao repórter, gritou-lhe: Salta da cama. A Revolução está na rua e é precisos escrevê-la!

 Isso é passado, é tão passado que eu já não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer coisa de que hoje não posso ver nenhum sinal, daquilo que o 25 de Abril trouxe.

 Podemos saudar o desespero que nos invadiu perante algo que falhou?

 Estragaram a tua festa pá!, cantaram no outro lado do Atlântico.

 Houve quem dissesse que as revoluções são sonhadas por idealistas e realizadas por fanáticos, e quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as espécies.

 O 25 de Abril é um dia e são dias. É daquelas datas que se constelam que estão antes de hoje, que hoje ecoam ainda, e que tremeluzirão no depois de hoje.

 Quase sem darmos por isso, milhares de pessoas invadiram as ruas, ofereceram pão e cravos aos soldados, deram as mãos, sorriram, dos olhos saltavam sonhos e esperanças.

 Alguém perguntou como era possível tanta e tanta gente quando meses antes, semanas antes, dias antes, eram tão poucos aqueles que apareciam para escrever palavras de ordem nas paredes da cidade, colar cartazes, distribuir uns panfletos impressos a stencil…

 Será a memória curta? Apaga-se com facilidade?

 O apagamento de memória é chocante.

 Deste dia até ao 1º de Maio, é provável que muitos devem ter dormido, mas não se lembram bem. Uma semana de loucura já ninguém me tira, posso não ser feliz mas poucos chegaram tão perto disso a que chamam felicidade.

 É preciso ter vivido os anos terríveis, o tempo do desprezo, um tempo de ratazanas, para que aquele dia tivesse sido o que foi, um navio de sonho, uma nave de loucos, protagonistas duma enorme esperança, depois figurantes de um grande desencanto.

 Terá sido assim há tanto tempo?

 A ditadura acabou por ser derrubada por militares que antes desprezávamos.

 Dezassete horas e 45 minutos bastaram para abater um regime que oprimiu o povo português durante 47 anos, 10 meses, 34 dias e algumas horas.

 Teremos feito tudo para que as novas gerações fossem mais felizes?

 Vale a pena assinalar a data quando nos esquecemos de ensinar a importância que aquele dia nos trouxe? Olham-se as pessoas de hoje, os jovens de hoje, formam um grupo largo e variado mas, olhando bem, estamos todos muito mal no retrato de conjunto…

 Algures, numa dobra da história, alguma coisa falhou. O cantor, de viola às costas, acabou por dizer que houve alguém que se enganou.

 A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém.

 Naqueles dias, quase poderíamos dizer que a paisagem mudara para sempre.

 As paisagens até podem mudar, o resto… o resto… o resto… é uma chatice… um busílis de questão…

 O escritor perguntava e respondia: para que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar.

 Um dia voltaremos a encontrar-nos todos no imponderável azul celeste.

 E recomeçamos a busca dum país liberto, duma vida limpa e dum tempo justo.

 Mas será que ainda verei alguém desenhar os nomes daqueles que, na sombra, nos lixaram a festa?

 

Montagem concedida com textos de:

 Jorge Silva Melo, Virgílio Martinho, Baptista-Bastos, José Saramago, Rui Cardoso Martins, Chico Buarque, Manuel António Pina, Manuel Gusmão, Rodrigues da Silva, João Gobern, José Mário Branco, Eduardo Galeano, Mário Dionísio, Cristina Carvalho, Sophia de Mello Breyner Andresen.

 

Legenda: pintura de Vieira da Silva

UMA REVOLUÇÃO PARADA NO SINAL VERMELHO


 Era uma vez, no ano de 1974, a madrugada de vinte e cinco, de um Abril português.

 Às 22h 55, João Paulo Dinis, diz, aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa, que faltavam cinco minutos para as 23h00 e anunciando que Paulo de Carvalho vai cantar E Depois do Adeus.

 Às 00h29, no programa Limite da Rádio Renascença, começam a ouvir-se os passos cadenciados que, José Mário Branco inventara para Grândola Vila Morena do álbum Cantigas do Maio de José Afonso, e são declamadas as primeiras estrofes da canção:

 Grândola Vila morena, terra da Fraternidade, o Povo é quem mais ordena dentro de ti ó cidade.

 Começavam a nascer as cores vibrantes dos sonhos de uma geração, quase perdida, que vivia dentro do medo.

 Sabemos hoje, que a alegria desses sonhos, converteu-se, aos poucos, em algo de muito doloroso…

 Nem nos piores pesadelos, essa geração, pressentiu que chegaríamos ao ponto onde hoje nos colocaram, deixámos que nos colocassem.

 Relato de um capitão de Abril, Salgueiro Maia de seu nome:

 «Quando, pelas 3 horas da manhã de 25 de Abril, saímos da EPC, o carro da PIDE e o agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) que costumava estar junto ao mercado municipal tinham desaparecido. Soube depois que avisaram Lisboa, mas, por exemplo o comando da PSP não se preocupou, por considerar que devíamos estar a sair para exercícios.

 Também à entrada do Campo Grande, em Lisboa, ouvi, num dos meus rádios, um carro patrulha da PSP a informar o respectivo Comando da nossa passagem, bastante impressionado com o número de metralhadoras que via passar.

 Enquanto ouvia estas informações, o jipe trava de repente e dou comigo parado no sinal vermelho do cruzamento da cidade Universitária. Olho para o lado e vejo um autocarro da Carris também parado. Achei que era de mais parar a Revolução ao sinal vermelho, quando o que distinguia os carros do MFA era um triângulo vermelho no lado esquerdo das viaturas ou tapando a matrícula. Mando avançar tocando as sirenes das autometralhadoras EBR até chegar ao Terreiro do Paço.

 Pelas 7 horas, no Terreiro do paço, surgem dois repórteres. Perguntam se podem tirar fotografias e conversar com as pessoas. Respondo-lhes: “À vontade, é também para garantir isso que nós aqui estamos.” Olham-me com um certo ar de espanto e vão à vida.

 Um furriel vem trazer-me uma senhora funcionária da limpeza dos CTT do Terreiro do Paço; diz que quer à viva força ir para o trabalho, e como tal atravessar o largo. Quando chega junto de mim, com ar de desânimo diz-me: “Tenho de ir trabalhar e o senhor tem de me deixar passar!” Replico-lhe: “Não se preocupe, porque hoje, e daqui para o futuro, o 25 de Abril vai ser feriado nacional.” A mulher olha-me com ar de quem mada mais tem a fazer e volta para o lado da Estação Marítima do Sul e Sueste, dizendo talvez para ela que “aquele tipo é mesmo doido”.»

 O capitão parte do Terreiro do Paço, para subir até ao Largo do Carmo. E conta:

 «Quando regressei ao quartel, dirigi-me ao comandante e disse-lhe que, se ele não mandava, então eu queria falar com quem mandasse. Conduziram-me à presença de Marcello Caetano; mas para isso passei por uma antecâmara, onde encontravam Moreira Baptista e Rui Patrício, chorando este como uma criança, olhando o infinito o primeiro.»

 Dessa reles cobardia, de quem se considerava resguardado no medo que infligia a todo um povo, o Diário de Lisboa, colocará em caixa:

 «Massacravam-nos os ouvidos com afirmações de coragem.

 Diziam que se, se alguma vez o chamado estado Novo corresse perigo, iriam dar tiros para a rua.

 Afirmavam-se prontos a morrer.

 Juravam, rejuravam e trejuravam que o Povo só chegaria ao poder passando por cima dos seus cadáveres.

 Gritavam aos quatro ventos que iriam vender cara a vida.

 Consideravam-se soldados de uma guerra gloriosa.

 Não perdiam uma ocasião de proclamar o desejo que tinham de provar a sua fidelidade vertendo, para tal, o seu próprio sangue.

 Arrotavam postas de valentia.

 As suas permanentes gabarolices, infantis e monocórdicas, tinha-nos levado a crer que, no dia da mudança, iriam dizer qualquer coisa.

 Dar um grito, por exemplo, um grito, um suspiro, um soluço…

 Mas nem isso.

 No dia vinte e cinco de Abril os heróis do palavreado não cumpriram uma única das promessas que tinham feito.

 Perderam o pio.»

 Regressamos ao relato do Capitão:

 «Marcello estava pálido, barba por fazer, gravata desapertada, mas digno.

Fiz-lhe a continência da praxe e disse-lhe que queria a rendição formal e imediata. Declarou-me já se ter rendido ao Sr. General Spínola, pelo telefone, e só aguardava a chegada deste para lhe transferir o Poder, para que o mesmo não caísse na rua!

Estive para lhe dizer que estava lá fora o Poder no povo e que este estava na rua.»

 Provavelmente, inspirado por estas palavras do Capitão, José Carlos Ary dos Santos,  há-de escrever:

 Foi então que Abril abriu

as portas da claridade

e a nossa gente invadiu

a sua própria cidade.

 

Legenda: fotografia de Alfredo Cunha.

domingo, 24 de abril de 2022

POSTAIS SEM SELO


 «Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os Estados Sociais, os Estados Corporativos e o estado a que isto chegou. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem não quiser sair, fica aqui!».

 Salgueiro Maia, palavras ditas aos militares, na noite de 24 de Abril de 1974, que, desde a parada da Escola Prática de Artilharia, iam, com destino a Lisboa, para derrubar a ditadura.

POSSIBILIDADES DE TROVOADA E AGUACEIROS


 24 de Abril de 1974

 Destaques da primeira página do ultra matutino Época, incondicional apoiante do regime:

 Comunicado sobre a reunião do Conselho de Ministros realizado na véspera:

 «Começaram a ser estudadas providências sobre a situação do funcionalismo. Renovados os propósitos de combatera especulação e de moderar a alta de preços.

 Representaria uma vitória para os inimigos do ocidente uma brecha que surgisse na comunidade luso-brasileira – salientou o deputado Henrique Tenreiro na Assembleia Nacional.»

 Em campos da Sibéria continuam sete mil prisioneiros da II Guerra Mundial.

 Sistema automático de reservas e «controle» de partidas entra amanhã em funcionamento ao serviço da TAP.

 Morreu Franz Jonas presidente da Áustria.

 Manhã cedo, na estação dos CTT, frente à Academia Militar, Otelo manda para Melo Antunes, nos Açores, o telegrama codificado do arranque das operações:

 «Tia Aurora parte Estados Unidos 25 0300. Primo António.»

 O chefe de estado, almirante Américo Tomás, acompanhado pela esposa e pela filha, deslocou-se à Feira Internacional de Lisboa para visitar uma Exposição de Antiguidades.

 O Diário de Notícias dava conta que um Coliseu, repleto de público, assistiu à representação de La Traviata de Verdi com Alfred Krauss e Joan Sutherland.

 A récita terminou em delírio colectivo, com ovações intermináveis e inúmeros cravos atirados das frisas.

 O Sporting em jogo da segunda mão das meias-finais, sem Yazalde e Dinis, é eliminado da Taça das Taças. Depois de um empate a uma bola, em Lisboa, o Sporting perdeu com o F.C. Magdeburgo por 2 a 1. O golo do Sporting foi obtido por Marinho.

 A equipa da Alemanha de Leste acabará por vencer por 2-0 a final com o Milão.

 No regresso a Lisboa, o avião que transporta a equipa, devido aos acontecimentos desta madrugada em Lisboa, fica retido em Madrid.

 O República publica na 1ª página que o Sindicato dos Caixeiros iniciou a luta pelas 44 horas semanais.

 Em conversa telefónica com um dos seus ministros, que lhe dá conta de diversas movimentações militares, Marcelo Caetano terá dito:

 «Isso é mais um boato desgastante.»

 No seu Depoimento, Marcelo Caetano refere que o 25 de Abril o apanhou de surpresa:

 «… A revolução que veio efectivamente de surpresa, e conduzida dessa vez com toda a eficiência.»

 Para o dia 25, os serviços de Meteorologia previam: Céu pouco nublado, por vezes muito nublado; vento fraco de norte; possibilidade de trovoada e aguaceiros.

 Passavam dois minutos da meia-noite quando a censura emitiu o seu último despacho, assinado pelo Coronel Roma Torres:



VIAGEM EM REDOR DE UMA REVISTA



 

Esta foi a escolha, para o dia 24 de Abril de 1974, que Eduardo Guerra Carneiro fez para os leitores do Cinéfilo.

 Na crítica de cinema, Eduardo Prado Coelho, um dos colaboradores do Cinéfilo, aborda Ritual, filme de Ingmar Bergman.

 Começa assim:

 «Qualquer comunicação travada entre duas pessoas parece depender sempre de um contrato implícito, que estipula a fronteira, que separa o que se pode dizer do que não se pode dizer. A comunicação autêntica corresponde ao alargar progressivo destas fronteiras. Assegura-se assim que num exame de literatura o professor me pode interrogar sobre os meus sentimentos perante um soneto de Camões, mas não pode, segundo o contrato que nos une, inquirir acerca da minha da minha vida. E assim por diante. Pois é esta mínima lei, que parece regular as relações entre as pessoas, que Bergman transgride espectacularmente no seu filme Ritual – e daí a violência.»

Para terminar a crítica, Prado Coelho escreveu:

 «Rito infindável (que apenas uma decisão formal vem fechar) – ou (como se diz num poema de Luiza Neto Jorge) “rio que só tinha de humano o ir/secando”.»

 O filme estava em exibição no Estúdio do Cinema Império.

 No Monumental podia ver-se Harry, o Detective em Acção de Ted Post com Clint Eastwood.

 «A violência transformada no mais desprezível dos espectáculos.»

 No Mundial exibia-se O Nosso Amor de Ontem de Sidney Pollack, Com Robert Redford e Barbra Streisand

 «Da história de amor filmada no mais puro estilocpublicitário ao revivalismo da América  dos anos 40, passando pela “mensagem” social e pelas vedetas sempre em grande plano, nada falta nesta superprodução medíocre, fabricada para o êxito fácil fácil e imediato. De lamentar, sobretudo, o facto de se tratar de um filme realizado por Sydnay Pollack, um dos cineastas americanos mais interessantes da última década, agora, ao que parece, promovido a funcionário conformado.»

 O Politeama continuava a exibir Eusébio, a Pantera Negra de Juan de Orduña

 «A imagem convencional do mito ou como aproveitar o futebol para lucro fácil.»

 O Cine Clube Universitário fazia exibir no cinema Paris, Ladrões de Bicicletas de Vittorio de Sica

 No Porto, o Cinéfilo aconselhava, no Estúdio, A Máscara de Ingmar Bergman, com Bibi Anderson e Liv Ullmann.

 «Não tarde a ir vê-lo. Aconselhamo-lo mesmo a vê-lo mais do que uma vez, que uma obra como Persona, não encontrará muitas vezes.»

O Cine-Clube do Porto exibia, no Batalha, O Mundo a seus Pés de Orson Welles. 

sábado, 23 de abril de 2022

MÚSICAS E CANÇÔES DE FILMES

Volta e meia  o canal Fox Movies desata a dar cowboyadas.

É o que anda a fazer por estes dias.

Na quarta-feira à tarde deu o Duelo de Fogo.

Pena tenho de, apesar de reformada, não ter a possibilidade de me sentar frente ao televisor e matar todos aqueles filmes.

É verdade que nem todos são grandes westerns, mas pouco me importa.

Ao ouvir a canção do filme, comentei com o parceiro do lado, que seria interessante trazer aqui as grandes músicas e grandes canções de filmes e ainda há dias, sem ainda ter pensado nisto, aqui apresentei o tema da Anastasia.

Isto das canções fez-me lembrar que um dia, com o Miguel, pensámos em fazer uma cassette apenas com grandes finais de filmes e já tinha escolhido um desses finais: «A Imitação da Vida».

Uma série de circunstâncias não permitiram concretizar a ideia.

O Duelo de Fogo é uma enorme cowboyada.

A canção tema do filme é Ok Corral da autoria de Dimitri Tiomkin e é cantada por Frankie Laine.


Colaboração de Aida Santos