sábado, 2 de abril de 2022

MOTHER CHURCH OF COUNTRY MUSIC

Como há memórias e nostalgias para todos os gostos, é possível alguém argumentar que o grande local de culto para a “Folk Music” dos anos 60, em Greenwich Village, não é o “Café Wha?”, onde se iniciou Bob Dylan, mas o vizinho “Gaslight”, onde Tom Paxton deu os primeiros passos; ou algum amante de Jazz, no mesmo “bairro boémio”, esgrimir que a verdadeira e incontornável referência para essa música era o “Village Gate”, velhinho de 65 anos (se ainda fosse vivo…), e não o muito mais recente “Blue Note”, e depois alguém levantar bem alto o braço e gritar: “vocês são mas é malucos, local mítico do Jazz em Nova Iorque é o Birdland”, onde reinava Charlie Parker, ou o muito mais antigo Minton’s, no Harlem”. E um terceiro interrogar, inocentemente: “então e o Cotton Club”…?


Mudando de cidade e de estilo musical, também se poderá discutir qual destes míticos espaços foi mais importante para o Pop/Rock na Los Angeles dos anos 70:  o “Whiskey A-Go-Go”, da Sunset Boulevard, ou o “Troubadour”, em West Hollyood? 

Também os amantes da Ópera poderão entrar na liça, discutindo qual destas salas é a mais relevante para a História da sua Música favorita: o Cornegie Hall, de Nova Iorque, o Scala de Milão, ou a Ópera de Viena…?

Discussões desta natureza poderemos ter para todos os tipos de música, da Clássica ao Rock, e até aqueles que, como eu, passaram a sua meninice a ouvir a música francesa, muito mais do que a de expressão inglesa, poderão questionar-se se o local de culto para essa música nos saudosos anos 60 é o “Olympia”, do Boulevard des Capucines, ou o pequeno Bobino, em Montparnasse.


A verdade é que todos têm razão e ninguém a tem... Não há uma Verdade Universal nesse domínio. Tudo depende, bem no fundo, das memórias e das vivências de cada um em relação a cada uma dessas Salas… 

Há, porém, um género musical que, deem-lhe as voltas que quiserem, não admite a mínima discussão no que respeita à identificação da sua verdadeira e única Catedral: a “Country Music” e o lugar é o Ryman Audithorium, em Nashville, podendo afirmar-se que foi a partir daí que a “Country” se lançou por toda a América e por todo o Mundo.

Charmar ao Ryman “Mother Church” ou “Catedral” até é apropriado, porque aquela sala começou mesmo por ser uma igreja. Foi inaugurada em 1892 com o nome de “Union Gospel Tabernacle” e mandada construir por um rico comerciante de Nashville, Thomas Ryman, recentemente convertido ao Cristianismo por força do poder de persuasão dos sermões de um tal Reverendo Samuel Porter Jones. Ryman pretendia dar à população de Nashville a mesma oportunidade de conversão que ele próprio teve, idealizando, para isso, a construção de um grande espaço de culto onde o Reverendo Jones pudesse exercer a sua ação.


Thomas Ryman viria a falecer em 1904 e foi por essa altura, por proposta do próprio Reverendo Porter Jones, que o nome do edifício foi alterado para Ryman Auditorium, em homenagem ao seu fundador. A estátua de bronze de Thomas Ryam é uma das três que hoje se encontram nas imediações do Ryman, como vos contarei mais à frente.

O problema é que o Reverendo Jones também não iria viver muito mais tempo, vindo a falecer dois anos depois, colocando o Ryman em grandes dificuldades de gestão face à morte não só do seu fundador e principal mentor, mas também daquele a cuja atividade religiosa se destinava.

Para assegurar a sua sobrevivência e permitir a liquidação das dividas resultantes da sua construção, que em muito havia excedido o orçamento inicial, o Ryman teve de se abrir a outras atividades que de religiosas pouco tinham, tais como concertos, peças teatrais, recitais de poesia e outros, combates de boxe, convenções privadas ou partidárias e outras reuniões de idêntica natureza. Sob a direção de Lula C. Naff, uma dinâmica e progressista senhora, o Ryman iria receber nos anos que se seguiram nomes célebres como o compositor e maestro John Philip Sousa, o cantor de ópera Enrico Caruso, o mágico Houdini, entre muitos outros, o que fez aumentar a sua credibilidade enquanto sala de espetáculos de grande qualidade, ficando até a ser conhecida como o “Cornegie Hall do Sul”.


Mas para o que aqui mais nos interessa, a grande viragem surgiria em 1943, quando o programa de rádio ao vivo “Grand Ole Opry” (G.O.O.), emitido na antena WSM, se transferiu para o Ryman e começou a ser transmitido em direto aos sábados à noite, para todo o país e com uma audiência ao vivo que esgotava os cerca de 2400 lugares da sala.

Penso que já noutra ocasião vos falei aqui da importância do G.O.O., que ainda existe nos dias de hoje e é considerado o programa de rádio mais antigo dos Estados Unidos.

As suas emissões iniciaram-se em 1925 e a música que divulgava era a que esteve na origem da “Country” e que então se chamava “Hillbilly Music”, intervalada por “sketches” cómicos de diversa natureza.


Patrocinado por uma Companhia de Seguros (a “National Life & Accident Insurance Company”), esse programa radiofónico começou por ser emitido num estúdio construído no próprio edifício da Empresa, mas mais tarde, devido a problemas logísticos resultantes do aumento do número de intervenientes (que frequentemente executavam números de “barn dance”) e do número de espectadores “ao vivo”, passou por outras salas de espetáculo de Nashville entre os anos de 1934 e 1943, vindo a instalar-se no Ryman neste último ano e aí permanecendo até 1974.

Para abreviar dir-vos-ei que os tempos em que o G.O.O. permaneceu no Ryman corresponderam à chamada idade de ouro da “Country Music”. Toda a gente de relevo nesse género musical por lá passou inúmeras vezes e alguns tornaram-se até “artistas residentes”, isto é, participantes em quase todas as emissões. E digo quase porque também começou a ser prática corrente uma “troupe” de artistas do G.O.O. percorrer o país de lés a lés e atuar em muitos outros locais, para além de Nashville.


Não é possível evocar o nome de Uncle Dave Macon, Carter Family, Bob Willis, Roy Acuff, Hank Williams,  Patsy Montana, Ernest Tubb, Bill Monroe, Patsy Cline, Ray Price, George Jones Tammy Wynette, Loretta Lynn, Charley Pride, Johnny Cash, Dolly Parton e tantos, tantos outros, sem evocar, igualmente, a importância  da sua passagem pelo G.O.O. Numa palavra, se não apareceu no G.O.O. era porque não era considerado “gente” nesse género musical. 

Uma situação curiosa ocorreu com Elvis Presley. Convencido de que lhe bastaria uma versão “arrocalhada” de “Blue Moon of Kentucky”, clássico de Bill Monroe, para que a audiência do Ryman o recebesse em êxtase, o então ainda candidato a “King” foi recebido com extrema frieza e essa noite de 2 de Outubro de 1954 foi a primeira e a última vez que pôs os pés no programa. Música não adequada, disseram-lhe então…   

Para contribuir ainda mais para uma difusão generalizada do programa e, por consequência, da própria “Country Music”, alguns episódios tiveram direito a transmissão em direto na televisão e muitos outros seriam gravados para difusão futura. Eu próprio me lembro de, na minha adolescência, ter visto algumas dessas gravações antigas na RTP 2, quando apenas existiam dois canais.  

Mas se é verdade que para fazer grandes espetáculos não há como os americanos, infelizmente não é menos verdade que para os estragarem também…  Sobretudo quando começa a imperar essa busca desenfreada e gananciosa de maiores lucros e de maiores fontes de rendimento.  

Todas as semanas o Ryman esgotava os seus lugares e são célebres as fotografias de pessoas à porta para comprarem bilhete, em bichas que davam a volta ao quarteirão. Há relatos de pessoas que se deslocavam propositadamente alguns milhares de quilómetros só para poderem assistir “ao vivo” ao programa. 


Mas a lotação do Ryman já não era considerada adequada para albergar as “paletes” de turistas que afluíam a Nashville com esse objetivo. Era preciso construir um recinto muito maior, mais moderno e com maior comodidade do que as pobres cadeiras de madeira da velha casa. E, é claro, com enormes hotéis lá ao lado para acolher todos os visitantes…. E um “parque temático” e um gigantesco Centro Comercial, que também não podem faltar nestas ocasiões… E porquê fazer só um espetáculo semanal, quando se podiam fazer muitos mais…?  

E se bem o pensaram, melhor o fizeram. No dia 15 de Março de 1974  o G.O.O. fez a sua última emissão no Ryman e mudou-se com armas e bagagens para a nova “Grand Ole Opry House”, localizada num dos extremos da cidade, a uma vintena de quilómetros de distância.  E logo no dia imediato, a 16 de Março, fez aí o seu primeiro espetáculo, na presença de Richard Nixon, que se sentou ao piano e tocou umas músiquinhas. Faz sentido…  


Para cúmulo alguém teve a ousadia de propor a demolição do edifício original e, com os seus tijolos característicos, construir uma capela ao lado do novo. Muitos músicos e muita outra boa gente se insurgiram contra este disparate e o Ryman sobreviveu. Mas iria atravessar tempos de agonia e de degradação, vivendo da organização de visitas turísticas guiadas para assegurar um mínimo de subsistência que lograsse manter o edifício de pé.

Mas tudo iria mudar no início dos anos 90, quando Emmylou Harris e a sua banda de então, os Nash Ramblers, deram uma série de concertos num Ryman degradado e com lotação limitada por questões de segurança. Esses concertos tiveram grande sucesso e deram origem a um CD (este que aqui vos mostro) e a um DVD que passou nas televisões, o que fez renascer o interesse público pelo edifício, o qual foi alvo de uma profunda remodelação, sem alterar em muito a sua traça original.

Curiosamente, quem inaugurou este novo Ryman, em 4 de Junho de 1994, não foi o G.O.O. mas sim um outro programa radiofónico seu concorrente, o “Prairie Home Companion”, ao qual Robert Altman dedicou um dos seus últimos filmes.

Hoje o Ryman está vivo e recomenda-se, com uma boa programação que está longe de se limitar à “Country”. Ainda na semana passada por lá andou Bob Dylan… Em 2001 foi classificado como “National Historic Landmark”, pelo que sua sobrevivência deverá estar assegurada   

Por ironia do destino e pelo facto dos seus cerca de 4.400 lugares serem dificilmente ocupáveis nos meses de Inverno, de menor afluência turística, o G.O.O. haveria de voltar aos velho Ryman durante três meses em cada ano, a partir de 1999.  A Covid fez suspender essa prática, mas é provável que ela já tenha sido retomada.

Quem eu teria gostado de ver no Ryman era Emmylou Harris, que tantas outras vezes por lá passou depois desses gloriosos concertos dos anos 90. Mas não calhou e Gordon Lightfoot foi uma excelente alternativa. Já uma vez havia falhado, por pouco mais de uma semana, um concerto dele no Massey Hall de Toronto, mas desta vez bastou um pequeno ajustamento no meu programa para o poder ver.

Mas, com toda a sinceridade e não obstante a minha grande admiração pelo autor de “In the Early Morning Rain, quem eu queria mesmo ver, acima de tudo, era o Ryman. Sentir o Ryman em dia de um grande e inolvidável concerto…  

Quando se chega às imediações do Ryman, o corpo começa a ficar em “pele de galinha”. Olha-se em volta para tudo, quer guardar-se tudo na memória porque a hipótese de se lá voltar é muito remota. 

Repara-se que em redor do Ryman existem três estátuas de bronze: uma do fundador, Thomas Ryman; outra de Little Jimmy Dickens, cantor cómico muito querido da comunidade “Country” e o mais antigo membro do “Grand Ole OIpry” à data da sua morte, em 2015; uma terceira de Bill Monroe, com uma placa ao lado a dizer “Birthplace of Bluegrass”, o que é mentira, como um destes dias vos contarei.

Percebe-se que ainda haverá tempo para uma cerveja e que uma cerveja no bar do Ryman será uma excelente recordação.

Depois atravessa-se o “hall” de entrada, com o diligente porteiro a lamentar que máquinas fotográficas tenham de ficar à porta. Dá-se uma espreitadela na loja das lembranças, porque qualquer coisa se há de querer levar para recordação, quanto mais não seja dois copitos para licor. A seguir sobem-se as escadas de acesso ao balcão e o coração começa a bater com mais força. Deambula-se pelos corredores, devoram-se os cartazes pendurados na parede evocativos de outros tempos e de outros espetáculos e entra-se, finalmente, na sala. Como ainda está pouca gente lá dentro, vai-se até à balaustrada e perde-se o olhar na direção do palco, a imaginar tudo aquilo que por lá se passou ao longo de tantos anos. Quer-se como que agarrar o tempo, para que ele nos permita prolongar aquele momento de prazer… E é claro que decidimos que seremos os últimos a sair, quando o espetáculo terminar…

Quanto ao concerto em si, superou em muito as expectativas que me poderia suscitar um Gordon Lightfoot com 80 anos.  Primeira parte morna, centrada em discos mais recentes, mas uma segunda em cheio, com o velho Gord a atirar-se, um após outro, a muitos dos seus êxitos mais antigos e a audiência extasiada a pedir mais e sempre mais… Lightfoot foi quase ao esgotamento, quem sabe se a pensar para com os seus botões se não seria essa a derradeira oportunidade que teria de pisar aquele palco…

E para que jamais possa esquecer essa maravilhosa noite de 6 de Agosto de 2018, até tive direito a um bilhete personalizado e tudo, coisa que nunca antes tinha visto.

NOTAS:

Quando por lá passei, todo o gigantesco quarteirão que fica defronte da fachada principal do Ryman estava entaipado por motivo de obras, sendo literalmente impossível fazer uma fotografia com um enquadramento adequado. E mesmo fazê-la de lado sem apanhar as enormes bichas de carros que lá passam defronte em permanência foi um verdadeiro milagre.

A vintena de fotografias que fiz, com o meu telemóvel, no interior do Ryman, levou sumiço quanto o telemóvel me foi roubado no ano seguinte, em Barcelona.

Subsistiram, apenas, algumas fotografias feitas com o telemóvel da Cristina, o que vos permitirá perceber que eu, tão avesso a deixar-me fotografar em viagem, não resisti a uma “foto saloia” no interior do Ryman…!

As informações mais detalhadas acerca da história do Ryman e do “Grand Ole Opry” foram obtidas na “net” e na monumental (16 horas na versão televisa e 9 horas na versão DVD) série documental “Country Music”, da autoria de Ken Burns, na respetiva banda sonora (5 CD’s) e na documentação de apoio  que acompanha estas duas caixas.    

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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