sexta-feira, 29 de abril de 2022

TRATOU AS PALAVRAS COMO OS BRINQUEDOS QUE NÃO TEVE NA INFÂNCIA


Há gente que deveria estar proibida de morrer.

Uma qualquer entidade deveria determinar e mandar publicar.

Em 19 de Outubro de 2012 o Manuel António Pina deixou de ir ao Café Piolho, à Cervejaria Convívio, pela doença que lhe saltou flagrantemente em cima, já o deixara de fazer mas aquele dia marca a impossibilidade física. Tudo o resto estará por aqui junto daqueles para quem uma série de gente nunca morre.

Poderia eu sobreviver se deixasse de ter montanhas de jornais e revistas amontoadas pelos cantos, para ler, para reler para recortar, eventualmente para arquivar? Claro que poderia, mas não era bem a mesma coisa. Como ter cortado no gin-tónico, nas cigarrilhadsa, nas charutadas, por aí fora…

Estes dias, estúpidos desenfreados, sem ponta de norte, têm dado para andar a aliviar as tais montanhas de papelada escrita, acumulada pelos cantos.

Uma parte dessa papelada diz respeito à morte do Manuel António Pina.

A capa do Público de 20 de Outubro de 2012 guarda uma fotografia do Pina quase perfeita: livros, o olhar sereno, uma cigarrilha entre os dedos da mão direita. E não é perfeita porque faltam os gatos que o levavam a escrever as deliciosas crónicas para a última página do Jornal de Notícias para ter possibilidade de os alimentar ou os levar ao veterinário.

Homem recto, competente, solidário lúcido, simples, carregado de humor e ironias, um sábio, um príncipe, «eu posso lá morrer terra florida», gritou um outro poeta.

«Tinha um sorriso que era uma janela aberta sobre o coração», disse o jornalista Germano Silva, seu camarada no Jornal de Notícias, companheiro-mor das noitadas portuenses.

«Se hoje as nossas lágrimas estavam a precisar de uma grande razão, tu acabaste de no-la dar», escreveu José Alberto Lemos, também da redacção do Jornal de Notícias, também camarada de boémias.

A tarde é quase noite.

E das montanhas de papelada ao canto da sala, apenas aliviei dois, três jornais. 

Culpa do Manuel António Pina.

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