Deixem Passar o Homem Invisível
Rui Cardoso Martins
Capa: V. Tavares
Edições
Tinta-da-China, Lisboa, Janeiro de 2020
António, também conhecido nas suas costas
por aquele advogado que é cego, ou aquele advogado invisual, ou aquele ceguinho
que tirou advocacia, depende de quem o via e a que distância, visitava a Igreja
de São Sebastião da Pedreira pela segunda vez na vida.
António tinha hábitos bizarros como gostar de arte e ir a exposições, e
juntara durante anos argumentos para dizer como era isso possível no seu caso,
até que os abandonou porque, concluiu, quem precisa da explicação não merece
ouvi-la. Passou a dizer que era bom porque muitas vezes davam croquetes e taças
de espumante na inauguração.
Não se zangou com ninguém, porque António também bebia cerveja à
pressão e comia caracóis como qualquer pessoa que gosta disso. Chupava o molho
da espiral, depois de fisgar o bicho com um alfinete, dos corninhos doces à
tripa amarga, numa esplanada ao fim da tarde, principalmente em Maio e Junho, a
altura deles. Duas imperais por petisco era a sua média, e a segunda pousava-a com
um suspiro, um som honesto que deixava os clientes alegres. Lambia o bigode de
espuma. Às vezes, limpando o molho dos dedos aos guardanapos de papel,
perguntava se algum caracol escapara de ser comido, saltando do pires cheio
para o pires das cascas sem lhe passar pela boca, acabando por morrer sem
utilidade.
Chocalhava as cascas. Ficaste, molusco, no teu esconderijo...,
respondia António. Mas no fim deixava-o em paz: a pessoa que come vê ou não vê,
mas sobra sempre um esquecido no caldo de orégãos, no fundo dos panelões que
perfumam Lisboa. E bebia outra imperial em honra do caracol desconhecido.
2 comentários:
Foi este o primeiro livro que li do Rui Cardoso Martins, creio até que terá sido o seu primeiro livro; ou não?
Gostei muito e foi um escritor que passei a ler e nunca defraudou as minhas expectativas (creio que já li, depois deste, mais dois).
Gostava muito das crónicas e das reportagens que o Ricardo Cardoso Martins escrevia no «Público». Este é o seu segundo romance que foi, no ano de 2009, Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores. O primeiro romance foi «E Se Eu Gostasse Muito de Morrer» que nunca li. Não desgostei do livro mas reconheço que o li em situação adversa e não consegui apreender tudo o que nele existe. Terei de voltar, se tempo e oportunidade tiver.
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