quinta-feira, 7 de abril de 2022

OLHAR AS CAPAS


Deixem Passar o Homem Invisível

Rui Cardoso Martins

Capa: V. Tavares

Edições Tinta-da-China, Lisboa, Janeiro de 2020


António, também conhecido nas suas costas por aquele advogado que é cego, ou aquele advogado invisual, ou aquele ceguinho que tirou advocacia, depende de quem o via e a que distância, visitava a Igreja de São Sebastião da Pedreira pela segunda vez na vida.

António tinha hábitos bizarros como gostar de arte e ir a exposições, e juntara durante anos argumentos para dizer como era isso possível no seu caso, até que os abandonou porque, concluiu, quem precisa da explicação não merece ouvi-la. Passou a dizer que era bom porque muitas vezes davam croquetes e taças de espumante na inauguração.

Não se zangou com ninguém, porque António também bebia cerveja à pressão e comia caracóis como qualquer pessoa que gosta disso. Chupava o molho da espiral, depois de fisgar o bicho com um alfinete, dos corninhos doces à tripa amarga, numa esplanada ao fim da tarde, principalmente em Maio e Junho, a altura deles. Duas imperais por petisco era a sua média, e a segunda pousava-a com um suspiro, um som honesto que deixava os clientes alegres. Lambia o bigode de espuma. Às vezes, limpando o molho dos dedos aos guardanapos de papel, perguntava se algum caracol escapara de ser comido, saltando do pires cheio para o pires das cascas sem lhe passar pela boca, acabando por morrer sem utilidade.

Chocalhava as cascas. Ficaste, molusco, no teu esconderijo..., respondia António. Mas no fim deixava-o em paz: a pessoa que come vê ou não vê, mas sobra sempre um esquecido no caldo de orégãos, no fundo dos panelões que perfumam Lisboa. E bebia outra imperial em honra do caracol desconhecido.

2 comentários:

Seve disse...

Foi este o primeiro livro que li do Rui Cardoso Martins, creio até que terá sido o seu primeiro livro; ou não?

Gostei muito e foi um escritor que passei a ler e nunca defraudou as minhas expectativas (creio que já li, depois deste, mais dois).

Sammy, o paquete disse...

Gostava muito das crónicas e das reportagens que o Ricardo Cardoso Martins escrevia no «Público». Este é o seu segundo romance que foi, no ano de 2009, Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores. O primeiro romance foi «E Se Eu Gostasse Muito de Morrer» que nunca li. Não desgostei do livro mas reconheço que o li em situação adversa e não consegui apreender tudo o que nele existe. Terei de voltar, se tempo e oportunidade tiver.