terça-feira, 26 de janeiro de 2021

AVISO À NAVEGAÇÃO

O computador onde nasce o Cais do Olhar, vai entrar em serviços de manutenção.

Prometeram-nos ser breves.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

POSTAIS SEM SELO


Que se há-de fazer? Há a guerra da dignidade, há a paz dos sepulcros. Eu estou com a primeira.

José Saramago em Cadernos de Lanzarote, Volume V

Legenda: fotografia Shorpy

domingo, 24 de janeiro de 2021

AH!... SIM OS OBSTÁCULOS!...

Domingo a arrumar livros.

Os livros arrumam-se?

O Mário Castrim tinha os livros espalhados pela casa, quando precisava de um, assobiava...

O problema de arrumar livros é que passo mais tempo a reler passagens do que a arrumá-los.

Na página 25 de O Capitão Nemo e Eu de Álvaro Guerra, li:

«O gin-tónico faz mal ao coração».

Talvez… e pode ser que, olhando os obstáculos colocados no caminho, agora eu veja mais claramente que isso pode acontecer…

MAS FÊ-LO NAS MINHAS COSTAS

 

Em muitos dos locais em que tenho trabalhado ocorre-me com frequência uma história de Bertold Brecht: «Um colaborador do senhor K. foi acusado de tomar uma atitude hostil a seu respeito. “sim, mas fê-lo apenas nas minhas costas”, disse o senhor K. a defendê-lo.»

Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que Não Escrevi, Volume II

CARTA DO TEMPO TRISTE PARA A MARIA VIRGÍNIA


Eu bem queria não te dizer apenas
que, na cidade, são sete horas precisas
e os eléctricos conduzem gente
circunspecta e cansada.

Eu gostaria de dizer-te
que coisas sublimes tinham acontecido
ou, pelo menos, falar-te
de pequenos mas raros sucessos.

Se tudo fosse tão simples e sereno
como a descuidada juventude dos pássaros,
a todos os momentos eu poderia
enviar palavras naturais e frescas
ao teu coração aberto e vasto.

Difícil, então, só seria o silêncio
e dizendo teu nome estabeleceria
o rompimento absoluto com as estreitas,
agrestes e de sempre palavras sem futuro.

Poderia depois dizer-te coisas brandas
na universal linguagem 
que tornasse concordes pássaros e estrelas
com a circulação ritmada do teu sangue.

Poderia falar-te de coisas que não estas,
de outra gente, não esta que ora segue
sonolenta e resignada pelas ruas.
Esta gente que não tem um sonho a embalar,
mas filhos, muitos filhos,
esta gente sem gritos nem revoltas,
mas sorrisos humildes e postiços,
esta pobre gente para quem são sete horas
irremediavelmente.

Ah! Maria Virgínia, pudesse eu
dizer-te francamente: «Não há perigo,
nada importam as horas,
vamos calmos e felizes pela cidade,
e o tempo não marca porque tudo é perfeito.»

Sim, eu queria dizer-te só palavras
harmónicas e novas.
Sim, eu queria que o tempo fosse
o mesmo dos insectos e dos peixes,
dos seres simples mas donos dos seus dias.
Exactamente o propício tempo
para te enviar as mais belas notícias
que tu guardarias juntamente
com a mais pura alegria.

Ah! pudesse eu dizer-te
o que dirão os homens
 livres para sempre destas amargas horas

António Rebordão Navarro em Poesia Portuguesa do Pós-Guerra 

sábado, 23 de janeiro de 2021

PORQUE SIM!


Por vezes chateio-me com o que fazem, com o que dizem, cometem erros, é certo, mas é a minha gente.

O raio dos livros que li, levaram-me sempre a olhar para o essencial, e colocar de lado o acessório. 

Há uma frase que Mário Dionísio cita na sua Autobiografia e nunca esqueci:

 «Os erros dos nossos amigos nunca nos hão-de pôr do lado dos nossos inimigos.»

 Por uma vez, não segui a indicação do Partido.

Aconteceu nas últimas presidenciais.

Para que Marcelo não se sentasse em Belém, votei Sampaio da Nóvoa.

Amanhã, no boletim de voto, colocarei a cruzinha no quadrado onde está o João Ferreira.

Por vezes, chateio-me com eles, mas é a minha gente.

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


Mais ou menos há um ano, quando a Organização Mundial de Saúde revelou ao mundo, a existência de um vírus, a que chamou Covid-19, datou o seu aparecimento no dia 27 de Dezembro, na China, mais propriamente na cidade de Wuhan.

Lembra-se de, idiotamente, ter dito que aquilo era longe, muito longe, e que os chineses resolveriam o problema.

A 30 de Janeiro, a Organização Mundial de Saúde lançou um desesperado alerta sobre os riscos do coronavírus, e havia apenas 82 casos, e nenhuma morte, fora da China.

No dia 23 de Fevereiro leu no Público que se registaram, devido ao vírus, duas mortes e seis dezenas de infectados.

Porra!,  mas a Itália não é tão longe como a China!...

A 11 de Março a Organização Mundial de Saúde declara o mundo em pandemia.

Em Portugal, a primeira morte ocorre a 16 de Março.

Determinam-nos confinamento.

 No último dia de escola, os professores escreveram no quadro: «Vamos ficar Todos Bem».

As crianças trouxeram a mensagem para casa, algumas fizeram desenhos e colaram  nos vidros das janelas.

O  vírus tinha galgado todas as fronteiras.

Hoje, Portugal regista 9.920 mortes e no mundo, esse número atinge os 2.111.560.

Um dia, sempre um dia, saberemos quem sabia o quê, desde quando, como deixaram que isto, assim se propagasse.

Chove como ele gosta que chova.

Gosta de ficar em casa quando assim chove.

Mas não gosta que o estupor de um vírus o obrigue a ficar em casa.

Como o dizia o Almirante, num tal Verão quente: «não gosto de ser sequestrado… é uma cosa que me chateia, pá!...»

Lembra-se dos versos de um poema do Eugénio de Andrade:

«Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar o coração, a minha face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu…»

Enquanto os dedos percorriam o teclado, em fundo esteve o Adagio Sostenuto do Concerto Nr. 2 de Sergei Rachmoninov.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

POSTAIS SEM SELO

Morro com duas convicções arreigadas: a de que não há terra mais bela do que a lusitana e outra tão infeliz.


Miguel Torga em Diário Vol. XII

OLHAR AS CAPAS


A Selva

Ferreira de Castro

Livraria Editora Guimarães, Lisboa 1954

 

Sêco e vendido na cidadezita mais próxima o que sobejava da papança quotidiana, com o produto o cabôclo adquiria sal, farinha e cachaça – e emquanto durasse a fortuna vivia feliz e não voltava a trabalhar. A cachaça, para uso diário, e um baile, de quando em quando, para desentorpecer as pernas, em qualquer barraca das margens, constituíam as suas únicas aspirações.

O resto era solidão profunda, uma vida encastoada na selva, alheia a todas as inquietações do mundo, uma vida tão aparte, tão obscura e ignorada, que se ficava a pensar num romance de misantropos que, contudo, não existia.

Quando um navio passava à vista, a família inteira vinha especar-se no cimo do barranco, a admirar o fugitivo sintoma da civilização, emquanto um dos garotos descia a segurar a canôa, não fôssem as ondas desprende-la e a corrente arrastá-la, de «bubuia», rio abaixo.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


Continuam os dias tão difíceis, tão cruéis.

Dez meses de Covis-19 provocaram mais mortes em Portugal do que as baixas militares que sofremos nos três palcos de guerra em África.

O Hospital do Barreiro, devido ao número elevado de mortos, instalou contentores frigoríficos junto à morgue.

A Igreja católica suspendeu todas as missas.

Aos 82 anos morreu o Capitão de Abril Abrantes Serra que esteve na libertação dos presos políticos no Forte de Caxias.

Só nos últimos dias morreram dois médicos com Covid-19 que estavam a trabalhar, disse o bastonário da Ordem dos Médicos.

Alguém que lhe pergunte se ele sabe quantos trabalhadores portugueses que, devido ao Covi-19, têm vindo a morrer.

A Lei da Eutanásia foi aprovada na especialidade com votos favoráveis do PS, BE, PAN, abstenção do PSD e votos contra do PCP e CDS.

Rui Rio lamenta que não se tivesse adiado as eleições presidenciais.

Escolas, creches e ATL encerrados durante duas semanas.

 

1.

 

O Padre Diniz da Luz, açoriano da ilha de São Miguel, poeta e jornalista, foi colega do Sr. Francisco de Freitas Santos, meu pai, em A Voz, jornal monárquico, católico e situacionista.

Era um benfiquista de não sei quantos costados. Basto conhecido por, na tribuna de imprensa do velho Campo Grande, vulgo Estância de Madeira, de batina vestida, chamar, em alto e bom som, cabrão, filho da puta, todos aqueles mimos com que o povinho mimoseia os árbitros num campo de futebol.

A escandaleira era de tal ordem que umas virgens ofendidas fizeram queixa ao Pedro Correia Marques, monárquico, católico, situacionista e director do jornal.

Foi-lhe retirada a credencial que a Federação dava aos jornais e permitia a entrada nos campos de futebol.

Para além de benfiquista, fumava desalmadamente e, em plena segunda guerra, apoiou os aliados.

Contava o meu pai, que quando o Benfica perdia e, naquele tempo o Benfica não perdia tanto assim, o Padre Diniz da Luz ouvia as lamúrias dos benfiquistas da redacção e adiantava.

«Pois é, estão chateados, também eu, mas vocês ainda têm mulher!...»


2.

O Governo japonês e o Comité Organizador garantiram a preparação dos jogos, apesar do aumento de casos de Covid-19 no mundo.

Os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 arrancam a 23 de julho, mas cada vez mais a situação pandémica global põe em causa a sua realização.


3.

Para o romancista argentino, naturalizado canadiano, Alberto Manguel, que cedeu a sua fabulosa colecção de livros, qualquer coisa como 40 000 volumes, à cidade de Lisboa, a pátria é o lugar onde instala a sua biblioteca.

4.

Versos de um poema de José Carlos Barros:

«Às vezes pergunto o que fica dos livros, o que pertence e não pertence à literatura, o que acrescentaram à nossa vida as páginas dos romances.»

OLHAR AS CAPAS


O Caso do Rosto Substituído

Erle Stanley Gardner

Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 286

Livros do Brasil, Lisboa s/d

No avião que os levava a Los Angeles, Della aconchegou-se a Perry Mason e meteu a mão na dele.

- Não a achou linda, chefe?

- Belle?

- Sim. Os seus olhos brilhavam e estava tão radiantemente feliz, tão segura do seu amor… e do amor de Roy!

- É uma excelente pequena. Só conheço outra capaz de a vencer. Espero que, um dia, ela…

Della retirou a mão da de Mason e protestou:

- Nada de sentimentalismos, chefe! Sabe tão bem como eu que detestaria uma vida familiar, se a tivesse. Passa o seu tempo a saltar de um assassínio para outro…

Se tivesse mulher, metê-la-ia numa bela casa… e deixá-la-ia lá ficar. Não precisa de uma mulher, mas precisa de uma secretária que possa correr riscos consigo… e tem outro caso à sua espera, em Los Angeles.

- Pergunto a mim próprio o que será… Jackson disse que tinha uma faceta fora do comum, que me interessaria.

NOTÍCIAS DO CIRCO


 O Eduardo Pitta, poeta, crítico literário, é um cidadão educado, mais comedido do que eu, pelo que me limito a copiar o que, sobre este nojo, escreveu no seu blogue Da Literatura.

No entanto, não deixarei de mencionar – há excepçoes… - que este deputado-psd-médico-aldrabão, mostra o que são os médicos direitistas deste país, a começar pelo bastonário da classe, que passa os seus dias, nas televisões, a pontapear o governo:

« Ricardo Baptista Leite, médico e deputado do PSD, comissário do Partido nos conclaves do Infarmed, tem andado a chorar baba e ranho pelas televisões.

Diz o mamífero: «Nunca vi tantas pessoas morrerem num só turno de 12 horas. Nunca vi tantas mortes, na minha vida profissional, num tão curto espaço de tempo...»

Mentia sobre vítimas mortais da Covid-19, em Cascais, porque, no seu turno, morreu apenas uma pessoa.

O nojo é isto, na sua forma mais exacta.

Facto: «O Hospital de Cascais esclarece que no passado sábado, dia 16 de Janeiro, foram registados seis óbitos nesta unidade, três dos quais na urgência dedicada a doentes suspeitos ou positivos Covid-19, tendo um desses óbitos ocorrido no turno entre as 08h00 e as 20h00

E prepara-se uma criatura destas para concorrer à Câmara de Lisboa nas próximas autárquicas (Setembro). Pelos vistos há excesso de médicos.»

PERNOITO NO INTERIOR DO CORPO DESARRUMADO


pernoito no interior do corpo desarrumado
o medo invade o penumbroso corredor
descubro uma cintilação de água no estuque
uma cicatriz de cristais de bolor abre-se
porosa ao contacto dos dedos indica
que não haverá esquecimento ou brisa
para limpar o tempo imemorial da casa

deste simulado sono ficou-lhe o amargo iodo
as madeiras enceradas cobertas de poeira
ervas secas à chuva molhos de rosmaninho
junquilhos, bocas de lobo silenas, trevo
mas nenhuma fuga foi recomeçada
a infância permanece triste onde a abandonei
quase não vive
no entanto ouço-a respirar dentro de mim

agora tudo é diferente
recomeço a viver a partir do vazio
da treva dos dias em silêncio
por entre a pele e um feixe de magnificas veias
sinto o pássaro da velhice arrastando as asas
onde desenvolve o calmo voo lunar

enumero cuidadosamente os objectos, classifico-os
por tamanhos por texturas, por funções
quero deixar tudo arrumado quando a loucura vier
da extremidade aguçada do corpo alado
e o rosto for devassado por um estilhaço de asa

então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
onde verso a verso
me ilumino e me desgasto

Al  Berto em O Medo 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

POSTAIS SEM SELO


A morte será o meu derradeiro fracasso.

Helen Macdonald em A de Açor

LÁ LONGE...


A América está de volta.

Daqui a poucas horas Joe Biden passará a ser o 59º Presidente dos Estados Unidos.

Do louco que o antecedeu, podemos dizer: «vai e não voltes mais!»

Sair a custo ele saiu, mas deixa muito terreno minado e Biden vai ter uma presidência dificílima.

Quem nele votou, certamente não se questionará de como foi possível votar em algo tão reles, tão imundo, tão tudo e mais alguma coisa que de mau exista. Os povos estão pouco dados a autocriticarem-se quando escolhem os maus governantes.

Sem dúvida, o pior presidente da história dos Estados Unidos.

Trump sai porta fora, mas o trumpismo fica espalhado pelo país.

Não quis abandonar a Casa Branca sem ter incitado a um dos ataques mais vis lançado contra o coração da democracia da América: o assalto ao Capitólio perpetrado por uma multidão de terroristas domésticos que provocaram a morte, a destruição, o medo.

Seria bom pensar que com a eleição de Biden, a América possa voltar a ser a América que conhecemos.

Mas não é bem assim.

O mundo ficou mesmo um lugar muito perigoso.


OLHARES


No domingo, no paredão em Cascais, foram vistos cidadãos de trela na mão mas sem possuírem qualquer animal.

Lembrei-me da anedota que o meu avô Afonso contava:

Entra um homem na drogaria a pedir esmola para o cego.

Alguém pergunta:

- Mas onde está o cego?

- Ficou ali for a ver a montra!...


Colaboração de Aida Santos

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

POSTAIS SEM SELO


Que quem se cala quando me calei não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago em Os Poemas Possíveis

POEMA A BOCA FECHADA


Não direi:

Que o silêncio me sufoca e amordaça.

Calado estou, calado ficarei,

Pois que a língua que falo é de outra raça.

 

Palavras consumidas se acumulam,

Se represam, cisterna de águas mortas,

Ácidas mágoas em limos transformadas,

Vaza de fundo em que há raízes tortas.

 

Não direi:

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,

Palavras que não digam quanto sei

Neste retiro em que me não conhecem.



Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,

Nem só animais bóiam, mortos, medos,

Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam

No negro poço de onde sobem dedos.

 

Só direi,

Crispadamente recolhido e mudo,

Que quem se cala quando me calei

Não poderá morrer sem dizer tudo.

 

José Saramago em Os Poemas Possíveis

OLHAR AS CAPAS

O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas

José Tolentino Mendonça

Capa: Rui Rodrigues

Quetzal Editores, Lisboa, Outubro de 2020

Pensemos na figura do pai. Os estereótipos culturais, os resíduos de modelos autoritários, os tiques marialvas ou a timidez afastam os pais da palavra aberta e sentida, da confidência ou de expressões de afecto tão básicas como um abraço. A maior parte de nós não chega a dizer ao pai como o ama, nem a escutar da parte dele qualquer coisa semelhante. E esse silêncio tem um custo com o qual, depois, por muito tempo lutamos. É como se já em vida dos pais vivêssemos uma orfandade simbólica.

Um dos clássicos da literatura europeia é a Carta ao Pai, de Franz Kafka. É um libelo, de acusação e culpa, que espelha o dilacerante processo interior em que Kafka viveu. Cresceu à sombra do pai, mas transportando este nó terrível: por mais que fizesse, jamais corresponderia às suas exigências.

A nossa cultura tem praticado, talvez com razões, mas certamente sem razão, uma demolição sistemática da figura do pai, deixando em nós um vazio que nada consegue colmatar. A figura do pai precisa, por isso, de ser recuperada.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

POSTAIS SEM SELO


A vida é em parte aquilo que nós fazemos dela, e em parte aquilo que é feito pelos amigos que escolhemos.

Tennessee Williams

Legenda: fotografia Shorpy

OLHARES


 Lisboa, Domingo de Páscoa, 16 de Abril de 2006.

Gravando discos para o casamento da Sara, uma vista fabulosa sobre a margem esquerda, uma serena tarde primaveril, a ouvir os galos a cantar nas hortas que circundam o prédio e um porta-contentores da Grimaldi Lines, a fazer-se à acostagem, com a ajuda de rebocador, no Terminal de Contentores de Santa Apolónia.

A COR DO TEU BATOM


Vivemos dias dramáticos.

Somos o país na Europa com a média mais alta de novos casos de Corvid-19 e o quarto país com mais mortes por milhão de habitantes. 

Mas o gosto dos portugueses por patetices chegou à campanha para as presidenciais.

O candidato-vómito entrou por caminhos de ordinarice e nojo que se, houvesse bom-senso, daria para o meter atrás das grades.

No meio da palhaçada deu-lhe para se meter com o batom da Marisa Matias.

A mim deu para lembrar uma canção do Herman José que concorreu ao Festival RTP do ano de 1983.

Tristes vão os tempos!...

Colaboração de Aida Santos


OLHAR AS CAPAS


Aquilino Ribeiro

Castelo Branco Chaves

Cadernos da Seara Nova

Seara Nova, Lisboa, 1935

O estilo é sem dúvida um dos valores máximos da obra de aquilino, especialmente, pelo imaginoso dêsse estilo. É êste escritor dotado de uma extraordinária imaginação verbal, de um invulgar poder vocabular. E não é só a abundância; é também, e especialmente, o singular poder decorativo das palavras que escolhe, a arte com que as agremia e um assombroso sentido do seu valor prosódico. Tôdas estas riquezas do estilista sobressaem naquelas suas páginas em que o descritivo domina e predomina. O seu estilo está apto para toda a descrição, com um poder de colorido, uma riqueza de tons que assombra e domina.

Possui Aquilino um verdadeiro talento narrativo, uma arte de contar tão perfeita, acabada, de tão sugestivo desenho e vivo colorido que lê-lo é uma maravilha e deleite.

domingo, 17 de janeiro de 2021

OLHAR AS CAPAS


Um Escritor Confessa-se

Aquilino Ribeiro

Introdução: José Gomes Ferreira

Livraria Bertrand, Lisboa, Junho de 1974

O regicídio, em tanto que obra singular, terá de integrar-se no plano de demolição, intentado contra o Portugal obsoleto pelos espíritos livres e esclarecidos, desde a época liberal até os nossos dias. Os protagonistas foram o braço armado dessa propaganda. Apoucá-los ou engrandecê-los seria cometimento gratuito, que não cabe em cérebro com dois dedos de caco. Mas porque o regicídio em sua nebulosidade, em sua paradoxal concepção e feito, quedaria inexplicável sem o conhecimento psicológico das dramatis personnae, eu experimento pi9ntá-las sob todas as reservas do meu fraco entender.

SAUDADE DA PROSA


Poesia, saudade da prosa;
escrevia «tu», escrevia «rosa»;
mas nada me pertencia,


nem o mundo lá fora
nem a memória,
o que ignorava ou o que sabia.


E se regressava
pelo mesmo caminho
não encontrava

senão palavras
e lugares vazios:
símbolos, metáforas,


o rio não era o rio
nem corria e a própria morte
era um problema de estilo.

Onde é que eu já lera
o que sentia, até a
minha alheia melancolia?

 

Manuel António Pina de Em Prosa Provavelmente em Poesia Reunida

sábado, 16 de janeiro de 2021

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


Livio, personagem do filme de João César Monteiro, «Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, a certo ponto do filme diz:

«O meu pai era um tipo melancólico. Caçava moscas e lia Camilo. Morreu»

Fui, e sou, um péssimo leitor de Camilo Castelo Branco.

Os livros existiam na biblioteca do meu pai, mas enamorei-me pelo Eça.

Já tarde no tempo, fiz várias incursões por alguns livros de Camilo, mas não ficaram registos.

Tristemente me espanto, como existindo neste blogue uma etiqueta Olhar as Capas, em que já passaram 1.466 livros da biblioteca da casa, não haja um livro de Camilo.

E dezenas deles estão por aqui.

Pior ainda: nem sequer existe etiqueta do autor.

Que dizer?

Camilo nasceu em Lisboa no dia 16 de Março de 1825.

Ficou órfão de mãe com 2 anos e de pai com 10 anos. Foi morar com uma tia e depois com a sua irmã mais velha.

O resto é a tragédia de uma vida.

Casamentos frustrados, seminário, escândalos vários, em que está incluída, cheia de salero, uma bailarina espanhola, que para a sustentar, Camilo recorre ao jogo no casino da Póvoa do Varzim, contraindo inúmeras dívidas de jogo, adultério, o impressionante rapto e casamento com Ana Plácido, filhos, um deles, louco.

A  3 de Julho de 1890, depois de ter perdido a esperança de recuperar a vista, suicida-se, em S. Miguel de Seide, disparando um tiro de revólver na têmpora direita. 

Camilo Castelo Branco foi um dos primeiros escritores portugueses a viver exclusivamente do que escrevia, deixando uma vastíssima e diversificada obra.

Não sendo um tipo melancólico, nem caçador de moscas, quase nos 76 anos, vou começar a ler Camilo Castelo Branco.

Deixando, por ora, os romances, vou ler esta Boémia do Espírito.

No Preâmbulo, Camilo explica:

«O livro é que há-de definir o título.

Se o leitor, voltada a página final, não tiver encontrado a causa que motivou semelhante rótulo, também eu não poderei esclarecê-lo.»

E termina:

«Se perguntassem a Coubert, a Mery, a Léon Gozlan, a Gautier e aos outros porque eram boémios, e não tabeliães de notas, eles não saberiam responder.»

 

1.

Continua o frio.

Nesta vida destrambelhada de confinamento, as notícias não nos fazem esquecer – como se fosse possível esquecer?! -  o que nos vai acontecendo:

Números alarmantes dizem-nos que, hoje, registaram-se 166 óbitos e 10.947 novos casos de infecção.

2.

Doentes esperam, ao longo dos últimos dias, dentro das ambulâncias, durante horas, à porta das urgências dos hospitais.

Alguns morrem.

É sempre tarde quando se chora, mas se a este estado chegámos, é porque utilizámos muito mal o dinheiro que, em tempo de vacas gordas, nos chegou da Europa. As auto-estradas, perdidas no interior do país, não são utilizadas, os milhares de rotundas pelo pedaço espalhadas, servem para o que ninguém sabe o quê.

3.

Manuel Lemos, presidente da União de Misericórdias Portuguesas:

«O Estado é o principal responsável pela existência de lares ilegais.»

4.

«Pouca é a distância entre a vida e a morte.»

De uma canção do folclore chileno.

AS MULHERES DE SÁBADO


                                                                   Ao Urbano Tavares Rodrigues

Possuirei as mulheres de sábado.

O amor começa nesse dia,

o mundo acaba nesse dia

lembrando-me de sábado gastarei a semana.

 

Possuirei as livres mulheres de sábado,

as agrestes mulheres que perfumam as ruas,

as que trazem no corpo a Primavera,

as que serenamente, respiram alegria.

 

Amarei nos cinemas as mulheres de sábado,

beijá-las-ei em todos os bares.

Esquecer-me-ei que resisti seis dias

para as ter nos meus braços.

 

Com as sabáticas mulheres

descobrirei jardins novos à cidade,

despedir-me-ei, sorrindo, dos eléctricos,

dos livros, dos cafés, das lojas semanais.

 

Deixarei sobre a mesa os cigarros.

Os inacabados poemas,

os tristíssimos lenços

que me acompanharam de domingo a sexta.

 

Beberei cerveja, tomarei champanhe

nas bocas abertas das mulheres de sábado.

Nadarei, feliz, com as doces mulheres,

falarei apenas de coisas bem fáceis.

 

Ou nem falaremos para não erguer

as sombras pesadas de toda a semana.

comeremos frutos, deitados na areia

sem olhar estrelas nem nuvens longínquas.

 

Sem esforço destruiremos o mundo,

triste pobre mundo dos homens reais.

e, amando-nos, sonharemos que o domingo

não virá nunca mais.

 

António Rebordão Navarro