Dizia o Manuel da Fonseca que «quando
chega domingo faz tenção de todas as coisas mais belas que um pode fazer na
vida», Armando da Silva Carvalho «domingo
é um bom dia para se olhar a tristeza, o ar anda devagar por essas ruas desertas»,
António Reis «é domingo hoje mas nós não
saímos é o único dia que não repetimos e que dura menos», Alexandre O’Neill
«os domingos de Lisboa são domingos
terríveis de passar – e eu que o diga». Eugénio de Andrade «o domingo está apenas nos meus olhos e é
grande.»
Na minha infância aguardava a chegada dos domingos para ir às matinées
do Cine-Oriente, o jantar era melhorado, nem sempre, mas a minha avó fazia uma
galinha no forno que nunca mais voltei a comer, aos domingos na Vila Gadanho os
homens sentavam-se à porta a ouvir o relato nos rádios de pilhas.
Há domingos assim, dizia o
Ruy Belo.
Herberto Helder, que nos anos 70 vivia em Luanda, escreveu crónicas e
reportagens para o semanário Notícia.
Alguns desses escritos estão reunidos em minúsculas, livro publicado em 2018.
Numa dessas crónicas fala de domingos, «que é um dia chato» os domingos de Nambuangongo, vila, se assim se pode dizer, a menos de 200 quilómetros de Luanda, uma distãncia que as colunas militares, partindo da capital, demoravam mais de três meses a percorrer, um local que se pode descrever assim: «barracões pré-fabrivadios para alojamento da tropa, quatro habitações, duas casas de comércio, uma igreja, e um campo de futebol improvisado. Uma pista para aviões (térrea), que é também estrada de acesso. E pó, claro - quero dizer: pó escuro. Os militares gracejam: "Quando escarramos, saem tijolos."»
Herberto conta que há vários domingos, um domingo arrefece em Amesterdão e aquece
em Nova Iorque e «trata-se do mesmo domingo». «Um
flagelo.»
Lembra ainda que os domingos de Paris têm pombos no Jardim de Luxemburgo, os de
Bruxelas arrastam-se pelas cervejarias mas as pessoas aborrecem-se.
«No respeitante aos domingos de
Nambuangongo, têm eles uma particularidade: não existem. Eu, pelo menos, andei
à procura e não encontrei nenhum. Em abono dos domingos, devo elucidar que
também não me foi possível encontrar nenhum sábado, ou sexta-feira, ou quinta,
etc. Um extenso dia sem nome, inconsútil e indistinto, faz o tempo de
Nambuangongo.
(…)
Um dos aspectos característicos de
Nambuangongo é ser um lugar masculino. Não há mulheres. Também, e consequentemente,
não existem crianças.
(…)
Não haver mulheres e crianças é
(digamos) inquietante. Dá ao lugar uma atmosfera parada, morta. Destitui-o
daquela espécie de delicadeza difusa, e alegria sem razão, que aparecem com o
elemento feminino e infantil.
Além dos civis solteiros, há os
militares. Que se faz num quartel de onde não se pode sair para fazer qualquer
coisa fora do quartel? Não existe lugar para onde. Não se pode sair? Pode. Eles
saem para a mata em operações. A guerra é, portanto uma ocupação. Po r acaso,
um grupo de homens, com alguns dos quais estive a beber e a conversar até tarde
na noite, foi opassar o domingo à guerra.»
O poeta Fernando Assis Pacheco esteve nessa guerra, disse ele que a guerra pode passar, mas aquela guerra entrou-lhe para os ossos e não sai.
«Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.
Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.
Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.
Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.»
O poeta Manuel Alegre também por lá andou, em Nambuangongo, onde não há
domingos, nem mulheres, nem crianças, mas algo de mais terrível e, por isso,
ele nos diz que não vimos nada em Nambuangongo.
«Em Nambuangongo tu não viste
nada
não viste nada nesse dia longo
longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em
Nambuangongo.
Falavas de Hiroxima tu que nunca
viste
em cada homem um morto que não
morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não
corre.
Em Nambuangongo o tempo cabe num
minuto
em Nambuangongo a gente lembra a
gente esquece
em Nambuangongo olhei e fiquei
nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói
muito.
Em Nambuangongo há gente que
apodrece.
Em Nambuangongo a gente pensa que
não volta
cada carta é um adeus em cada
carta se morre
cada carta é um silêncio e uma
revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida
corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.
É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo
longo longo
tempo exactamente em cima
do nosso tempo. Ai tempo onde a
palavra vida rima
com a palavra morte em
Nambuangongo.»
Oitocentos mil jovens foram mobilizados para Angola, Guiné e
Moçambique: 11 mil mortos, 40 mil estropiados e deficientes, 140 mil antigos
combatentes passaram a sofrer de “stress” de guerra. Sabemos destes números –
serão mais? Serão menos? Mas como diz João Paulo Guerra no seu livro Memórias da Guerra Colonial, «não
há estatísticas para a solidão, a ansiedade, o medo, o sofrimento, a dor». Há
feridas que custam a cicatrizar mas não é o silêncio o melhor remédio. Uma
guerra sem sentido, estúpida e inútil. E ninguém perguntou àqueles jovens se queriam ou
não participar naquela guerra.
Adeus até ao meu regresso.
De novo, o poeta Herberto Helder:
«Amanhã parto para Luanda, daqui
a não sei quantos dias encontrar-me-ei não sei onde. A movimentação da minha
vida é ao contrário da imobilidade de Nambuangongo. Quase me tenho por culpado.
Mas a minha consciência ganha vantagem à consci~encia dos outros, com sorte
bastante para se aborrecerem dominicalmente em sítios e circunstâncias
«ferviscosos» É que eu conheço Nambuangongo e os homens de lá – habitantes de
um símbolo, de uma significação. Domingos chatos, os deles, mas muito mais
importantes que uma quantidade de domingos que andam para aí.»
Hoje, que é domingo, e faz um frio de rachar, consultando a Wikipédia, ficamos a saber que «Nambuangongo é um município da província do Bengo, em Angola, com sede na vila de Muxaluando. Em 2014, tinha 61.024 habitantes. É limitado a norte pelo município de Ambuíla, a este pelo município de Quitexe, a sul pelo município dos Dembos e a oeste pelos municípios de Ambriz e Dande.»
Naquele terrível tempo, Fernando Assis Pacheco deixou escrito que as
bombas explodiam na mesa de cabeceira, «onde
estive, o capim passava do ombro, a morte passava, e a melancolia.»
E Herberto Helder, nesta crónica do semanário Notícia que temos vindo a ler, deixa desenhado que Nambuangongo «funcionará antes como um significado do que
como um lugar, ou mesmo um facto.»
Mas Fernando Assis Pacheco,no agora em que via descer a noite da sua
vida, Outubro de 1994, desversando, é muito claro:
«Trinta anos depois continuo
revoltadíssimo
V.ª Ex.ª foi de uma grande falta
de chá
nem eu precisava de Angola –
nunca!
nem Angola de mim – o que hoje
parece claro
V.ª Ex.ª argumentava nos
corredores
que eram ordens do dr. Salazar
ora adeus mandasse-o mas é a ele
tinha bom corpo para apanhar
porrada
e mesmo V.ª Ex.ª podia ter feito
uma perninha como eu fiz em Zala
não sou de rancores nem pouco
mais ou menos
mas aquela merda estava mal
parada
sabe V.ª Ex.ª o pasmo e a aflição
quando se caía em alguma
emboscada?
umas vezes olhava pelo rabo do
olho
outras fingia de morto e
mijava-me
depois voltava-se ao acampamento
para a ternura dos cães e a
tarimba rasa
um duche ao ar livre um cigarro
infeliz
o gole de cerveja a atirar para o
amargo
houve um fim de dia entre todos
cinzento
que eu me senti o maior dos
miseráveis
funesta ideia – e fui a correr
esconder
a arma de serviço por sinal uma
Walther
a esta hora já enterraram V.ª
Ex.ª
com as competentes honras
militares
mas a verdade é sempre para se
dizer
trinta anos passados não me
esqueço de nada»
Legenda: povoação de Nambuangongo retirada de Guerra Colonial: Fotobiografia de Renato Monteiro e Luís Farinha.
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