Sempre foi um leitor atrasado, principalmente de jornais
e revistas.
Coloca-os numa cesto de vindima que tem ali ao canto, e
depois vai pegando neles.
Terá sido em Novembro, numa ida à Livraria Bertrand, que
trouxe de lá a revista Somos Livros.
Só ontem lhe pegou.
A págs,. 54, a revista invoca Louise Gluck, dizem eles «a voz poética inconfundível de Louise
Gluck» e publicam um poema seu,
retirado da antologia Rosa do Mundo.
Acontece, porém que o poema que publicam, é da autoria de José Saramago do livro Provàvelmente Alegria.
Todos nos enganamos, todos erramos, o Samuel Becket exige
que se tente de novo, que se falhe de novo, que se falhe melhor.
Certamente a revista já não estará nos escaparates das livrarias Bertrand, gratuita a sua distribuição, muitos que a levaram terão aproveitado, lembrando João César Monteiro, para embrulhar peixe frito, ou, acrescento eu, para as necessidades caseiras de algum cão, algum gato, pelo que não vale a pena escrever para a redacção da revista a contar do erro.
Apenas aproveito a deixa para publicar a poesia de Louise
Luck que vem na página 1806 da antologia Rosado Mundo e a poesia de José Saramago.
E ficamos bem, neste dia frio de não sei quantos graus, com avisos da Protecção Civil à população por causa da friagem.
O PODER DE CIRCE
Nunca transformei
ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.
Estou farta do
vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.
Os teus homens não
eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,
sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.
Depois reverti o
encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi
que poderíamos ser
aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,
previ a tua
partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas
que algumas
lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém
vê o essencial que
não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.
Louise Gluck, tradução de José Alberto Oliveira na antologia Rosa do Mundo
Na ilha por vezes habitada do que somos,
há noites,
manhãs e madrugadas em que não
precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e
dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno,
a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz
e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda
do mundo infatigável, porque mordeu
a alma
até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem mila-
gres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago em Provàvelmente Alegria
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