segunda-feira, 30 de setembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Tivera sempre uma espantosa habilidade para ouvir, punha nisso o prazer que muitos põem em espreitar o vizinho por entre as persianas.

Hélia Correia em A Fenda Erótica

Legenda: imagem Netflix.

OLHAR AS CAPAS


Gaveta de Nuvens

José Gomes Ferreira
Capa: Dorindo de Carvalho
Diabril Editora, Lisboa, Fevereiro de 1975

Mas voltemos aos dois mancebos convizinhos da montra. Afino a atenção e escuto-os no abstraimento de olhar para o outro lado… Discutem. Ou com mais propriedade: embirram um com o outro, enredados em labirintos de conversação inútil, a aquilatar por esta sentença que me entrou de súbito pelos ouvidos com grande embófia exclamativa de língua inventada:
- Pois eu gramo ler livros à brava!
Vou repetir para que todos saboreiam  bem. Gozem bem, sofram bem o espanto verbal e a beleza rítmica deste autêntico paradigma da linguagem das gerações mais recentes:
- EU CÁ GRAMO LER LIVROS À BRAVA!

NOIVADO


Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.

Mário-Henrique Leiria em Contos do Gin-Tónic

domingo, 29 de setembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Chamava-se Otto e não sabia que recusar é para alguns a única liberdade possível. E verdadeira.

Marta Cristina Araújo em Os Meios de Transporte

AS LEITURAS ERAM PARTILHADAS


Mário de Carvalho ri-se com vontade durante um bom bocado, antes de caracterizar o ambiente em que se vivia nesses idos tempos: «No final dos anos 60, nós líamos muito e as leituras eram partilhadas, líamos as mesmas coisas e conversávamos e discutíamos e vivíamos em ambiente intelectual. Os casais que se visitavam, os grupos que se reuniam, iam ao cinema, ao teatro, partilhavam tudo isso.» Só que «isso era antes», remata o escritor que publica há mais de três décadas e que tem a clara percepção desse antes e de um depois desse antes em que existia, por exemplo, em Portugal, «uma crítica literária, que cumpria o seu papel e tinha a sua importância.» Depois, que é como quem diz, agora, na sua opinião, passou a haver «apenas a publicidade a livros anglo-saxónicos, e de vez em quando, um português para disfarçar, um brasileiro para disfarçar… Mas, em princípio, o facto de ser português implica logo uma secundarização. Isto é saloio, é extremamente saloio. É vergonhosos o que se passa nos jornais em termos de valorização da literatura portuguesa, que não é qualquer uma, é uma literatura de nove séculos, em alguns génios, tem um acervo, através dos séculos, de grandes escritores, que são comparáveis a outras grandes literaturas, e tudo isso é como se não existisse. E há gente que aparece a fazer aquilo que julga que é crítica literária sem ter o contexto do lastro histórico que é esse património sobre o qual a nossa literatura se está a formar. E sem ter em conta até a nossa literatura e o nosso mundo literário, e reproduzindo quase em termos de propaganda que chega a ser aflitiva, os esquemas e as posições e as imprecisões e as opiniões que aparecerem primeiro nas revistas anglo-saxónicas e no mundo anglo-saxónico. Acabam por ser uma espécie de câmaras de repercussão, de Câmaras de reprodução do que é dito por outros.»

Inês Fonseca Santos em Vale a Pena?

NAQUELE TEMPO


Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.
Quando nascia o sol todas as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as planícies
E plana porque tudo estava certo.
Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às ervas e às flores.

Tu,
tão perfeita que era impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos tudo.
A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e ao deitarmo-nos na terra como folhas da mesma planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos exactamente como a todos os sons.

Pedro Tamen de Os Dias em Tábua das Matérias

sábado, 28 de setembro de 2019

HÁ 45 ANOS


HÁ HISTORIADORES que designam o Setembro de 1974 como tendo sido um Setembro Negro.

O 28 de Setembro foi uma tentativa pífia de conspiração da extrema-direita, apoiada por Spínola, tendo como pano de fundo uma manifestação daquilo que o general designou como «maioria silenciosa» e constitui um dos principais marcos do processo revolucionário.

Em Julho, Spínola já tinha dito: «As maiorias silenciosas têm de sair do seu comodismo ou do seu temor e de se pronunciarem abertamente».

O PARTIDO LIBERAL, no dia 13, redige um comunicado apelando para que as pessoas começassem «a organizar a sua vida para aderirem à Grande Manifestação, e apoiar firmemente Sua Excelência na execução do Programa do Movimento das Forças armadas entendido de boa-fé, como via para a democracia personalista, pluralista e livre».

MARCADA a data da manifestação da «maioria silenciosa» para o dia 28.

DURANTE A MADRUGADA do dia 18 são afixados os cartazes.

ESTAVA PREVISTO O ALUGUER DE CAMIONETAS para transportar os manifestantes, aluguer sinalizado antecipadamente com dinheiro emprestado pelo Banco Espírito Santo.

NO DIA 20, num comício na Amadora, Álvaro Cunhal denuncia: «Se a reacção aguça os dentes e se prepara para morder, é necessário partir-lhes antes que morda»!

NA TRADICIONAL CORRIDA DE TOUROS, na Praça do Campo Pequeno, de apoio à Liga dos Combatentes, é feito o ensaio geral da manifestação.

Gratuitamente foram distribuídos bilhetes no valor de 300 contos. Spínola marca presença, acompanhado por Vasco Gonçalves, que é apupado enquanto Spínola é delirantemente aplaudido. A cada passe tauromáquico a populaça gritava:

«Portugal! Ultramar Ultramar!».

O cavaleiro João Zoio apareceria, no meio da arena, ostentando o cartaz da manifestação da «maioria silenciosa», enquanto pela instalação sonora era feita uma convocatória para a manifestação.

NO DIA 27 o Governo Provisório manifesta a Spínola a sua discordância sobre a manifestação e este emite um comunicado agradecendo a intenção de apoio da «maioria silenciosa» mas declarando que neste momento a manifestação não seria convenienteº



NA MADRUGADA do dia 28 populares montam barricadas em diversos pontos do país para evitar qualquer avanço de forças reacionárias. Organizaram piquetes, revistaram automóveis na procura de armas.

Cristóvão Aguiar escreve no seu Relação de Bordo: « … mas quem pode, em dias tão agitados como estes, ficar em casa?»

ANTÓNIO SPÍNOLA convoca o Conselho de Estado para o dia 30, renuncia ao mandato presidencial e os capitalistas portugueses vêem esfumar-se uma oportunidade de recuperar privilégios perdidos, transferem os seus capitais para o estrangeiro e, muitos, abandonam o país.

Costa Gomes é o novo Presidente da República.

ARTUR PORTELA Filho e o final de uma das suas Fundas:

«O general Spínola mobilizou a maioria silenciosa.
O MFA mobilizou o País.
Foi um opção.
Que o general Spínola cometeu o erro de fazer.
Porque a maioria não é silenciosa.
Porque o MFA é o País.»

Legenda: as imagens dos cartazes foram retiradas de Portugal Século XX de Joaquim Vieira, Bertrand Editora, Lisboa, Novembro de 2007.


Fontes: Recortes de acervo pessoal, Diário de Uma Revolução, Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978, Portugal Depois de Abril de Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Edição dos Autores, Lisboa, Maio de 1976, Portugal Hoje, edição da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, A Funda, Artur Portela Filho, Editora Arcádia, Lisboa.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

DO BAÚ DOS POSTAIS



Um postal de 13 de Setembro de 1922.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

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O que aparece, hoje, em Olhar as Capas, António Lobo Antunes: 20 Anos na Dom Quixote, é um folheto que celebra a data em que António Lobo Antunes começou a publicar a sua obra na Dom Quixote sob a batuta de Nelson de Matos.

«O editor agradece a confiança e a amizade presentes nestes 20 anos de trabalho em conjunto.»

Palavras de Nelson de Matos que invocam uma coisa simples que deve existir entre escritor e editor: a amizade.

Os cemitérios estão repletos de gente insubstituível, mas a saída de Nelson de Matos da Dom Quixote, redundou na perca da credibilidade que era timbre da editora.

Publicar livros não se coaduna com a inimportância-do-rapaz-corredor-de- automóveis que pariu a LEYA.

O folheto reproduz uma crónica de António Lobo Antunes, que faz parte do seu segundo volume de Crónicas e que o autor titulou como «Receita para me lerem».

Nessa crónica, falando de William Faulkner, Lobo Antunes escreve:

« Faulkner, de que já não gosto o que gostava, dizia ter descoberto que escrever é uma muito bela coisa : faz os homens  caminharem sobre as patas traseiras e projectarem uma enorme sombra.»

Parafraseando o autor, digo:

 «António Lobo Antunes, de que já não gosto o que gostava…»

É uma verdade.

Nos dias que correm, só me consigo entender com as crónicas que o autor escreve para os jornais e que, numa decisão incompreensível, deixou de as reunir em livro. Apenas estão publicados cinco volumes, o último publicado em Outubro de 2013, e não mais existirão, pelo menos em vida do autor.

O último livro que comprei foi Exortação dos Crocodilos, Outubro de 1999.

 Não terminei a sua leitura, assim como  Auto dos Danados,  A Ordem Natural das Coisas, O Esplendor de Portugal, O Manual dos Inquisidores, razão porque não entraram em Olhar as Capas.

Mas por esse tal Lobo Antunes de que gostei, não perguntem por pormenores, vou regressar a estes livros nunca acabados.

Numa destas quintas-feiras, num tasco na Rua Angelina Vidal, encontrei o Vitorino que ensaia, com a sua banda, por aqueles lados. Perguntei-lhe:


-Eh pá!, não. O Lobo Antunes está um chato do caneco!!

OLHAR AS CAPAS


20 Anos na Dom Quixote

António Lobo Antunes
Capa: Henrique Cayatte
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999

Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que os meus livros não são para serem lidos  no sentido em que usualmente se chama ler : a única forma
parece-me
de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença. Dizia-se de Bjorn Borg, comparando-o com outros tenistas, que estes jogavam ténis enquanto Borg jogava outra coisa. Aquilo a que por comodidade chamei romances, como poderia ter chamado poemas, visões, o que se quiser, apenas se entenderão se os tomarem por outra coisa. A pessoa  tem de renunciar à sua própria chave
aquela que todos temos para abrir a vida, a
nossa e a alheia
e utilizar a chave que o texto lhe oferece. De outra maneira torna-se incompreensível, dado que as palavras são apenas signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície que utilizo para conduzir ao fundo avesso da alma. A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume  do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender isto aperceber-se-à apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros: o país , a rela homem-mulher, o problema da identidade  e da procura dela, África e a brutalidade da exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com o meu trabalho. O mais que, em geral, recebemos da vida, é um conhecimento dela que chega bem tarde. Por isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas: são, somente , símbolos materiais de ilusões fantásticas, a racionalidade truncada que é nossa. É preciso que se abandonem ao seu aparente desleixo, às suspensões, às longas elipses, ao assombrado vaivém das ondas que, a pouco e pouco, os levarão ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimento e à renovação do espírito. É necessário que a confiança nos valores comuns se dissolva página a página, que a nossa enganosa coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido que não possui e todavia  lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse choque,  pode ser que amargo mas inevitável. Gostaria que os meus romances não estivessem nas livrarias ao lado dos outros , mas afastados e numa caixa hermética,  para não contagiarem as narrativas alheias  ou os leitores  desprevenidos: é que sai caro buscar uma mentira e encontrar uma verdade. Caminhem pelas minhas páginas como num sonho porque é nesse sonho, nas suas claridades e nas suas sombras , que se irão achando os significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma vez acabada a viagem
e fechado o livro
convalesça. Exijo que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance
ou poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar
a fim de poder ter assento no meio dos demónios e dos anjos da terra. Outra abordagem de que escrevo é
limita-se a ser
uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante terá a sua carne consumida na solidão e na alegria . Isto não se torna complicado se tomarem a obra como a tal doença que acima referi: verão que regressam de vocês mesmos carregados de despojos. Alguns
quase todos
os mal entendidos em relação ao que faço, derivam do facto de abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a surpresa vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos aparentemente para melhor  respirarmos. Abandonem as vossas roupas de criaturas civilizadas, cheias de restrições, e permitam-se escutar a voz do corpo.

DO BAÚ DOS POSTAIS


Sesimbra 1973
Postal com fotografia de Orlando Batista.

QUOTIDIANOS


O nosso amigo Hans-Martin, a 2 de Setembro, enviou-nos um postal de Magdeburg.
Chegou ontem a Lisboa.
Ele diz que os correios alemães estão a trabalhar pessimamente. Dizemos o mesmo em relação aos portugueses.
Hoje, já muito pouca gente escreve cartas ou envia postais.
É triste o tempo de demora mas, apesar disso, é bonito e agradável que os amigos nos enviem postais.

Legenda: imagem da Shorpy. 

PRINCÍPIOS


Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor, Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Júdice

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Tenho fotografias que provam que nunca exististe.

Pedro Mexia

OLHAR AS CAPAS


O Enigma do Quarto Fechado

Frank Gruber
Tradução: Àlvaro Cardoso
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vamptiro nº 51
Livros do Brasil, Lisboa s/d

A chave não podia entrar na fechadura porque alguém lá tinha metido anteriormente uma outra, forçando-a. Foi uma partida indecente, daquelas que os gerentes dos hotéis gostam de fazer a certos hóspedes. Johnny Fletcher olhou a porta e apeteceu-lhe arromba-la a pontapés.
Nesse momento chegou o gerente que lhe disse, numa toada impertinente: - Pode chegar aqui para lhe dar duas palavras?
- A sua atitude não necessita de palavras para se explicar – respondeu Fletcher com azedume.
- Ora, é isso mesmo. Há uma pequena questão de três semanas de rendas em atraso. Se está em condições de satisfazer o pagamento terei muito prazer em abrir a fechadura. Senão… - o desprezo com que o gerente encolheu os ombros foi bastante significativo.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

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Li os três volumes de Os Caminhos da Liberdade após os acontecimentos de Novembro de 1975.

Na biblioteca do meu pai existiam os três volumes de Les Chemins de la Liberté, em francês, numa edição da Gallimard. Mas nunca os li porque, ao contrário do tal gato maltês, nunca toquei piano , nem falei francês.

Arrastaram-se os idos de Novembro e Dezembro de 1975.

Um dia, se fará a História.

De quem traiu e o porquê.

Como escreveu Simone Beauvoir:

É horrível assistir à agonia de uma esperança.

Nos primeiros dias do ano de 1976 comprei, na Bertrand do Chiado os três volumes de Os Caminhos da Liberdade.

Enquanto o diabo esfregava um olho, devorei as 1071 páginas que constituem a obra. O meu pai já me tinha dito que a trilogia é largamente autobiográfica e se Mathieu não é Sartre, não sei quem será.

Claro que os acontecimentos de Novembro de 1975 não são para esquecer e não seria a leitura de um livro que permitiria uma situação como essa. Mas foi uma leitura absorvente, cativante, quase inenarrável.

Mário-Henrique Leiria escrevia:

«Porque foi isto assim possível? propomos a explicação de que houve, como "originalidade" típica, muito improviso no processo revolucionário, que esqueceu a sua defesa, criando a alastrando a angústia na pequena burguesia, camada significativa na sociedade portuguesa, a que até muitos trabalhadores as piram por força das motivações que o obscurantismo fascista teve longo tempo para semear.
Angústia semelhante à que agora ressurge com o agravamento das condições de vida, a subida arrogante da reacção, a incerteza do futuro que tem que ser construído de novo.
O Povo terá pois que teimar para que respeitem a sua vontade de acabar com a exploração do homem trabalhador pelo homem esperto. Para que as condições de vida sirvam as classes desfavorecidas. Para que acabem as perseguições aos que olham o futuro sem medo da mudança. parq ue a justiça social deixe de ser uma miragem evangélica no mundo dos mortos. Para quem produz trabalhando, exerça o poder, Para que sejamos verdadeiramente um país Democrático.»

Brunet conversando com o tipógrafo Schneider:

«Os Alemães estão em Paris há quinze dias, toda a França ficou de pernas para or: há camaradas mortos, outros prisioneiros, outros que desapareceram com as suas divisões, outros na cadeia. Se queres saber o que faz o Partido neste momento, vou dizer-te: reorganiza-se.»

Não voltei a pegar em Os Caminhos da Liberdade.

Reli-os agora, em diagonal, para colocar aqui as capas.

Sabe-se que não se lê um livro da mesma maneira, não se toma banho na mesma água.

«Amanhã chegarão os pássaros negros.»

Legenda: Jean-Paul Sartre

OLHAR AS CAPAS


Com a Morte na Alma
3º volume de Os Caminhos da Liberdade

Jean-Paul Sartre
Tradução: Isabel Brito
Capa: José Cândido
Livraria Bertrand, Lisboa, Maio de 1975

Aproximou-se do parapeito e começou a tirar de pé. Era uma enorme vingança; cada tiro o libertava de um antigo escrúpulo. Um tiro para Lola, que não ousei seduzir, um tiro para Marcelle, que devia ter abandonado, um tiro para Odette, com quem não quis fazer amor. Este para os livros que não ousei escrever, outro para as viagens que não me permiti fazer, outro para todos os tipos, em bloco, que tinha vontade de detestar e que procurei compreender. Disparava, fazia voar as leis, amarás o próximo como a ti mesmo, pum nesse focinho, não matarás
S , pum no hipócrita gajo da frente.  Atirava sobre o homem, sobre a virtude, sobre o mundo: a liberdade, é o terror; o fogo ardia na Câmara, queimava-lhe a cabeça: as balas assobiavam, livre como o ar, o mundo estoirará, eu também, atirou, olhou para o relógio: catorze minutos e trinta segundos: já não tinha nada a pedir para além do prazo de trinta segundos, o tempo de disparar sobre o belo oficial altivo que corria para o igreja; atirou sobre o belo oficial, sobre toda a beleza da Terra, sobre a rua, sobre as flores, sobre os jardins, sobre tudo o que amara. A beleza deu um salto obsceno de Mathieu atirou mais uma vez. Disparou: era puro, todo-poderoso, era livre.
Quinze minutos.

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE EXTINÇÃO...


Que farei com as minhas cassettes?

Sou um tipo antigo. No meio da parafernália de aplicações que existem ainda ouço cassettes, ainda ouço discos de vinil.

Há uns anos o velho reprodutor de cassettes deu o grande berro.

Não encontrei quem mo reparasse.

Na Feira da Ladra comprei um outro. O rapaz que mo vendeu não me deu grandes garantias. Mas ainda durou três anos. Agora recusou-se a emitir mais sons.

Voltei à velha feira.

O tal rapaz ainda lá está mas não tem nenhum reprodutor para vender. Disse mesmo que depois de me ter vendido o que trouxe para casa, nunca mais lhe apareceram outros.

Perguntei por perspectivas.

Abanou a cabeça.

Que farei com as minhas cassettes?

Aquelas horas e horas em que passei a gravar as mais variadas e espectaculares selecções de música. Sâo 387 cassettes e já não estou a incluir todas as cassettes que gravei para o meu pai.

Quando gravava aquelas cassettes sentia-me membro de um clube exclusivo e em que me espantava, tal  como Groucho Marx, pela existência de um clube que me aceitava como sócio.

Sinto que me invade uma imensa tristeza, uma tristeza sem nome se é que a tristeza precisa de ter nome

Que farei com as minhas cassettes?

Para já, à parte, irei rever High Fidelity, aquele filme de Stephen Frears, saído do livro homónimo de  Nick Hornby.

E enquanto isso não acontece, saco o livro da estante e apresso-me a reproduzir este pedacinho:

«Passei horas a alinhar a cassete. Para mim, gravar uma cassete é como escrever uma carta – tenho de apagar muito, repensar e começar outra vez de início, e eu queria que a cassete ficasse boa, porque… para falar verdade, porque nunca tinha conhecido nenhuma mulher tão promissora como a Laura desde que tinha começado a pôr música, e conhecer mulheres promissoras era parte da profissão.
É difícil fazer uma boa cassete de compilação, tal como é difícil acabar uma relação. É preciso abrir com uma música surpreendente, para captar a atenção (comecei com “Got To Get You Off My Mind”, mas a seguir percebi que ela podia não passar da primeira faixa do lado A se eu desse logo tudo, por isso encaixei-a a meio do lado B), e depois sem se pôr uma mais enérgica ou mais calma, e não se pode misturar música branca com música negra, a menos que a música branca seja parecida com música negra, e não se pode pôr duas faixas do mesmo artista ao lado uma da outra, a menos que se tenha posto todas aos pares, e… oh, há imensas regras.
Seja como for, fartei-me de trabalhar, e ainda tenho meia dúzia de “demos” antigas espalhadas pela casa, cassetes-protótipo em relação às quais fui mudando de ideias. E na sexta-feira à noite, tirei-a do bolso do blusão quando ela veio ter comigo, e seguimos caminho a partir dai. Foi um bom início.»

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Pena Suspensa
2º volume de Os Caminhos da Liberdade

Jean-Paul Sartre
Tradução: Amélia Petinga
Capa: José Cândido
Livraria Bertrand, Lisboa, Abril de 1975

Uma mão tocou-lhe no ombro, ele corou de alegria ao reconhecer Brunet.
- Bom dia, meu velho – disse Maurice.
A mão de Brunet era dura e calosa como a sua e apertava com força. Maurice olhou para Brunet e pôs-se a rir com prazer. Despertava: sentia os camaradas a seu lado, e, Saint-Ouen, Ivry, Montreuil, mesmo em paris, em Belville, Montrouge, La Vilette, ombro a ombro, preparando-se para a refrega.
- Que fazes aqui? – perguntou Brunet. – Estás desempregado?
- Estou de férias – explicou Maurice um tanto desajeitado. – Zézette quis vir porque trabalhou aqui antigamente.
- E aqui está Zézette – disse Brunet. – Olá, camarada Zézette.
- É Brunet – disse Maurice. – Leste o artigo dele hoje no Huma.
Zézette olhou para Brunet sem timidez e estendeu-lhe a mão. Ela não tinha medo dos homens, mesmo que fossem burgueses ou os membros mais importantes do partido.
- Quando o conheci era deste tamanho – disse Brunet, designando Maurice. – Estava nos Falcões Vermelhos, no coro; nunca vi ninguém mais desanimado. Por fim, combinámos que ele só fingiria cantar nos desfiles.
Riram-se.
- E então? – disse Zézette. – será que vai haver guerra? Deve saber, está bem colocado para isso.
Era uma pergunta idiota, uma pergunta de mulher, mas Maurice ficou-lhe grato por ela a ter feito. Brunet tinha-se tornado sério.
- Não sei se haverá guerra – disse ele. – O principal, porém, é não ter medo: a classe operária deve saber que não é fazendo concessões que a evitará.
Falava bem. Zézette lançara-lhe um olhar cheio de confiança e sorria docemente enquanto o ouvia. Maurice irritou-se: Bruner falava como o jornal e não dizia nada a mais.
- Acha Que Hitler se amedrontaria se arreganhássemos os dentes? – perguntou Zézette.
Bruner assumira um ar oficial, não parecia compreender que lhe pediam a sua opinião pessoal.
- É muito possível – disse ele. – E depois, aconteça o que acontecer, a U.R.S.S. está connosco.

domingo, 22 de setembro de 2019

QUOTIDIANOS


«Tive hoje uma grande discussão com Deus».
A frase, segundo Agustina Bessa-Luís, pertence à actriz Greta Garbo.
A que propósito Garbo disse tal frase?
Talvez Agustina soubesse algo mais, mas não explicitou.
Amanhã começará o Outono.
Tem chovido e já se sente o cheiro a terra molhada.
As coisas vão-se compondo.
Ruy Belo dizia que todos nós regressamos ao rosto do Outono e tudo incorrigivelmente principia.
Como terá sido a discussão de Greta Garbo com Deus?


OLHAR AS CAPAS


A Idade da razão
1º volume de Os Caminhos da Liberdade

Jean-Paul Sartre
Tradução: Sérgio Milliet
Capa: Jos´Cândido
Livraria Bretrand, Lisboa, Janeiro de 1975

-Brunet, ainda te lembras? Foste tu o meu melhor amigo.
Bruner brincava com o fecho da porta.
- Porque teria vindo se não me lembrasse? Se tivesses aceitado, poderíamos trabalhar juntos.
Calaram-se. Mathieu pensou: «Esta com pressa, Doido por se ir embora.» Brunet acrescentou sem o olhar:
- Ainda gosto muito de ti. Do teu focinho, das tuas mãos, da tua voz. E depois há as recordações. Mas isso não modifica a coisa. Os meus únicos amigos agora são os camaradas do partido. Com esses eu tenho um mundo em comum.
- E achas que não temos mais nada em comum?
. Bruner ergueu os ombros sem responder. Bastava uma palavra, uma só, e tudo seria devolvido a Mathieu, a amizade de Bruner, razões de viver. Era tentador como o sono. Mathieu endireitou-se repentinamente.
- Não quero demorar-te – disse – Vem visitar-me quando tiveres tempo.
- Certamente – disse Brunet.  – E tu, se mudares de opinião, manda-me um recado.
- Certamente – Disse Mathieu.
Brunet abriu a porta. Sorriu para Mathieu e foi-se embora. Mathieu pensou: «Era o meu melhor amigo.»

sábado, 21 de setembro de 2019

NOTÍCIAS DO CIRCO


A bastonária da Ordem dos Enfermeiros é uma personagem envolvida nas mais diversas polémicas.
Tem sido acusada de gastos injustificados e da participação ilegal na organização de uma manifestação.
Soube-se, agora que a Ordem gastou 36 mil euros para colocar uma enfermeira como personagem numa telenovela da SIC. A bastonária justificou que o patrocínio tem a ver com uma estratégia da comunicação para valorizar a profissão.

Legenda: pintura de Nikias Skapinakis

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

DO BAÚ DOS POSTAIS



Um postal datado de 6 de Setembro de 1913 com um pedido de desculpas por ir tão mal escripto.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


E mesmo os mais velhos já desistiram de pedir que lhes mandemos um postal quando vamos de férias. É que o mais provável é chegarmos a casa muito antes dele.

Maria do Rosário Pedreira no Horas Extraordinárias

TUDO ESTÃO A TIRAR ÀS BEIRAS


Ir de Lisboa à Beira (a Baixa) por via-férrea era outrora uma viagem deslumbrante: vale do Tejo, Constança, Portas do Ródão, Castelo de Almourol, paisagens desfrutadas de comboio, em compartimentos de patine e afago.
Ir de Lisboa à Beira Baixa por via-férrea, hoje, tornou-se penoso e, para quem parte da Gare do Oriente, tenebroso, a estação a revelar-se um desarvorado ataque à saúde de quem, sobretudo no Inverno, a utiliza.
Carrossel de frio, de chuva, de correntes de ar, de correntes de vento, revela, na sua gongórica  arquitectura inumana, total desprezo pela dignidade dos que a utilizam.
Não há por certo construção pública entre nós tão geradora de desabrigos e incómodos como a dita gare, cujos responsáveis (da sua aprovação e negócio) deviam ser questionados.
Ir de Lisboa à Beira Baixa por via--férrea fez-se deslocação espinoteante em composições a fingirem de modernas, sem conforto, sem insonorização, sem climatização, sem bar (apenas uma ínfima máquina de cafés e chocolates), sem charme nem identidade – comboios de pindéricas linhas suburbanas, não (como foram no passado) de aprazíveis linhas nacionais.
Como foi possível fazer tal desconsideração às gentes de Castelo Branco, Alpedrinha, Fundão, Covilhã? Zonas de vultos como, entre outros, António Ramalho Eanes, Vergílio Ferreira, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço, Robles Monteiro, Maria Lalande, Cargaleiro, António Paulouro, Vasco Lourenço, António Guterres, José Sócrates.
Tudo estão a tirar às Beiras: jovens, transportes, escolas, correios, freguesias, memórias, tribunais, hospitais, jornais – jornais que acabam de revelar terem as auto-estradas da região perdido 40 por cento de tráfego e a CP 47 milhões (em quatro anos) de passageiros. Admiram-se?

Fernando DaCosta

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Nunca passei fome, se é isso que quer ouvir, mas garanto-lhe que ao comprar uns tantos livros já tive que fazer contas e alguma coisa ficou para trás.

Autor desconhecido

Legenda: pintura de Pieter Bruegel

NOTÍCIAS DO CIRCO


Foi difícil a minha infância e adolescência.

A família não tinha muito dinheiro e sobrevivíamos com aquilo que a mercearia fiava, o velho rol. Bacalhau de todas as maneiras e feitios, a minha avó materna era de uma habilidade gastronómica fora do comum. Depois massa com toucinho e chouriço, toucinho e chouriço que também entravam no feijão guisado com ovos escalfados.

Uma vez por mês havia galinha ao domingo. Bifes, nem vê-los.

Leio agora que, durante a recepção aos estudantes da Universidade de Coimbra, foi declarado que a partir de Janeiro de 2020, a carne de vaca vai ser eliminada definitivamente de todas as cantinas do estabelecimento de ensino superior. A iniciativa, dizem, tem propósitos ambientais. Está em causa o futuro do planeta, dos nossos filhos e netos.

Que me oferece dizer?

Melhor ficar por aqui, o calor não me larga, se bem que hoje já tenha corrido um fresquinho, e posso começar a disparatar.

Será que o Café Império vai deixar de servir bifes que, diga-se, já conheceram muitos melhores dias?

É que sou um militante activo de bifes, também de bifanas, principalmente aquelas que ainda servem no Beira-Gare que são um «must» do colesterol.

OLHAR AS CAPAS


O Prazer de Matar

Fredric Brown
Tradução: Mascarenhas Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 137
Livros do Brasil, Lisboa s/d

A redacção do Herald estava suficientemente quente para cozer um bolo, embora o relógio eléctrico, pendurado na parede, indicasse serem apenas dez horas e meia. Dez e meia de uma manhã de sábado, em Julho, véspera de uma semana de férias que me propunha gozar.
Em qualquer ponto do quarto, próximo do tecto, um moscardo andava numa excitação demoníaca. O seu zumbido parecia-me mais alto do que o martelar esporádico das máquinas de escrever. Ergui o olhar e localizei-o; era enorme e voava de um lado para o outro, descrevendo círculos rápidos.
Ao olhar para cima, senti o colarinho apertado e, portanto, alarguei-o. Diabo de moscardo, disse para comigo, não sabes que num escritório não há gado?

terça-feira, 17 de setembro de 2019

QUOTIDIANOS


O calor não me favorece a leitura.
Nunca favoreceu.
Sempre gargalhei face a essa história dos livros para férias.
Livros é um hábito de todos os dias.
Mas este calor que Setembro logrou oferecer, faz com que tropece nos livros… não os leia… não os releia…
Em O Caçador de Histórias, Eduardo Galeano tem esta frase: «escrever cansa, mas consola.»
O calor não me permite a leitura, a escrita.
O Cais ressente-se.
Desculpas parvas é o que é, diz o outro.
Que sejam.
E ainda faltam tantos dias para que seja Natal outra vez.

Legenda: fotografia de Roger Schall

O DESEJAR SER JORNALISTA


Assim foi nascendo em mim a paixão pela escrita. E comecei a enviar textos para os suplementos juvenis do Diário de Lisboa, dirigido pelo Mário Castrim e do República. Alguns foram mesmo publicados, quase todos sob pseudónimo, por influência – imagine-se a presunção! – dos heterónimos de Fernando Pessoa. A certa altura, fui ao República entregar um texto, e quem me recebeu foi o Pedro Foyos. Disse-me «venha daí comigo, que estou com pressa» e eu fui atrás dele até às oficinas. Nunca antes tinha estado numa tipografia e fiquei fascinado com aquilo. Era uma tipografia tradicional, com as suas linotypes, a rotativa barulhenta… Ainda guardo, na minha memória olfactiva, o cheiro intenso a tinta que impregnava o ar. Depois, voltámos à redacção e, espreitando lá para dentro, vislumbrei velhas secretárias de madeira, pejadas de jornais. Ouvia-se o matraquear de uma máquina de escrever. Foram momentos importantes, porque, talvez tenha sido então que, pela primeira vez na minha vida desejei ser jornalista.

Depoimento de Daniel Ricardo em Memórias Vivas do Jornalismo

Legenda: fotograma do filme Deadline de Richard Brooks com Humphrey Bogart

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

NÃO PENSAR EM NADA


Não respondi. Voltei a acender o cachimbo. Faz-nos parecer pensativos quando não estamos a pensar em nada.

Raymond Chandler em Perdeu-se Uma Mulher

Legenda: Greta Garbo

domingo, 15 de setembro de 2019

DITOS & REDITOS


Beira do Mar de Setembro.

Aquilo em que as pessoas acreditam importa.

O calculismo põe as pessoas velhas.

A desigualdade afectiva é uma máquina de fazer pobres.

É preciso união e não nacionalismos.

Tudo o que é bom é feito devagar ou com vagar.

A medicina é uma arte do comércio.

Quando se começa a odiar nunca mais se pára.

Legenda: pintura de Alberto Baldelli

sábado, 14 de setembro de 2019

O HOMEM DOS COMBOIOS


Quando estava de férias no Outono de 1935, o meu pai viu  num anúncio que estava aberto um concurso na função ´publica pata um lugar de classificador de correspondência e e telegrafista na estação central dos correios de Edimburgo, e disse-me que eu devia concorrer. E como naquela época os filhos faziam exactamente o que os pais lhe diziam para fazer, ou pelo menos eu fazia, fui prestar provas aos dezasseis anos. Para grande surpresa minha e da minha família fiquei em primeiro lugar em toda a cidade, e na manhã em que o envelope castanho chegou o meu pai disse-me que eu podia deixar a escola nesse mesmo dia.

Eric Lomax em Uma Longa Viagem

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

CACHIMBO


Perdi-o. E gostei tanto desse cisne negro, companheiro Leal dos bons e maus momentos. Não foi a primeira vez que perdi um cachimbo, mas a última é sempre mais dolorosa.

Perdi, não sei onde.


Dir-se-á que o facto não interessa a ninguém. De acordo.


Todavia, noite alta, tento relembrar os lugares onde o podia ter deixado. No transporte? No café? No jornal onde deixei o meu escrito numa correria para o emprego? No emprego? Em que andar de que reunião? Ou foi depois, ao almoço de peixe grelhado naquela tasca (que o pretende ser), ou quando dei um salto ao correio? Teria sido na sala de montagem onde estive a trabalhar, cheia de filmes, de coladeiras, entradas, saídas? No Conservatório, à noite? Talvez na Secretaria onde tive de preencher um papel selado? Na leitaria do bairro Alto onde bebi uma coca entre duas aulas? No cinema da meia-noite, para não perder enfim o filme tantas vezes perdido?


Tanta gente, tantos lugares; e eu em todos imagino o meu gesto com o cachimbo na mão. Imagino e vejo. E vejo o cachimbo, abandonado. Como se em todos os lados tivesse deixado o meu cisne negro, companheiro leal.


Ninguém tem nada com isto, bem sei.


Todavia, agora, noite alta, cismo quantos e diferentes lugares e espaços frequentei num dia banal, frequentei, estive, vivi, existi, para estar, existir. Odisseia em ponto pequeno. Sobre isso James Joyce escreveu um grande romance. Em vez de Lisboa, Dublin. Tanto faz.


Ele, um grande romance. Eu, esta pobre nota; na origem, porém, a mesma violenta vertigem da vida inominável.

Jorge Listopad de Secos &Molhados em Fruta Tocada por Falta de Jardineiro

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

E COMO LHE IMPORTA VIVER


O escritor não é ser passivo ante o mundo que o cerca. Apaixona‑se sempre. A diferença entre um escritor e um aprendiz, ou um medíocre, é que naquele nunca a paixão se faz retórica. Recusa padrões, fórmulas, os caminhos fáceis do naturalismo, mesmo que surjam, como agora, sob disfarces de vanguarda. Escolhe, representa, desencadeia a percepção e a imaginação do leitor: entrega‑lhe um instrumento, um estímulo, para penetrar na realidade e interpretá‑la também por sua vez. Para que cada leitor, outro homem biológico e social, sensitivo e diferenciado, recrie a seu modo, por vias algumas vezes insuspeitadas, a nova realidade que o escritor teceu. Todos eles, individual e colectivamente, participam na criação constante de um corpo vivo, projectado em milhentas imagens que se focam e desfocam ao sabor de quem lê e reimagina, segundo o tono que os habita. Também sob a coacção do grupo social, familiar ou político de que participam; segundo também o momento, o exacto momento psicológico em que o escritor cria e o público lê ou medita. Mas voltemos à minha experiência espontânea, logo depois premeditada. Muitos chamavam recolha, talvez impropriamente, a esta busca de contacto humano; outros apoucaram o processo, impropriamente também. Na verdade, não se recolhem os materiais da vida; vivem‑se. Ou inventam‑se. Mas escolhem‑se as vivências ou as invenções quando um escritor sabe para que vive. E como lhe importa viver.

Alves Redol, Breve História de um Romance em Avieiros

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


O Alibi Fatal

Rex Stout
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 258

Dorothy deu a sua gargalhadinha especial.
- Isso não passa de exuberância cordial congénita. Por outro lado, sinto um grande desejo de os proteger. Aliás, sinto mais ou menos assim acerca de muitos homens, daqueles com quem não simpatizo. São tão idiotas!

terça-feira, 10 de setembro de 2019

AQUELES COMBOIOS


 A primeira vez que fui, ainda não tinha chegado à Régua, perguntei: «Ainda falta muito para o Porto?». Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à espera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas-de-beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel.

Manuel Hermínio Monteiro

Legenda: fotograma do filme Manhã Submersa de Lauro António

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

NOTÍCIAS DO CIRCO


Esperei por Setembro.
Mas não para enfrentar temperaturas de 27º.
Tenho dificuldades várias face a estas temperaturas.
Dizem que vão aumentar mais.
Vou aproveitando proveitei para colocar alguma ordem nas papeladas.
Encontrei o recorte que encima o texto.
Pertence ao Público de 23 de Agosto.
O calor não me facilita qualquer comentário.
Seria necessário?

A CASA PERTO DO MAR


As casas que tive tiraram-mas. Calhou
que fossem anos nefastos guerras desolações expatriamentos;
por vezes o caçador encontra as aves de passagem
por vezes não as encontra; a caça
era boa no meu tempo, os chumbos apanharam muitos;
os outros vagueiam ou enlouquecem nos refúgios.

Não me fales do rouxinol nem da cotovia
nem da pequena arvéola
que escreve algarismos na luz com a sua cauda;
não sei muito de casas
sei que têm a sua tribo, mais nada.
novas ao princípio, como as crianças de colo
que brincam nos jardins como as franjas do sol,
bordam coloridas persianas e brilhantes
portas sobre o dia;
quando o arquitecto acaba mudam,
enrugam ou sorriem ou mesmo teimam
com os que ficaram com os que partiram
com outros que voltariam se pudessem
os que se perderam, agora que o mundo
se tornou num imenso hotel.

Não sei muito de casas,
lembro-me da sua alegria e da sua tristeza
às vezes quando paro;
                                            mesmo
às vezes, perto do mar, em câmaras nuas
com uma cama de ferro sem nada meu
olhando a aranha nocturna cismo
que alguém se prepara para vir, que o enfeitam
com roupa branca e negra com jóias multicores
e em seu redor falam baixo damas veneráveis
cabelos cinzentos e rendado escuro,
que se prepara para vir e despedir-se de mim;
ou, uma mulher com pestanas em hélice talhe profundo
voltando de portos meridionais,
Esmirna Rodes Siracusa Alexandria,
de cidades fechadas com as quentes persianas,
com perfumes de frutos de ouro e com ervas mágicas,
que sobe os degraus sem ver
os que adormeceram debaixo das escadas.

Sabes as casas teimam facilmente, quando as despes.

Yorgos Seferis, tradução de Joaquim Manuel Magalhães.
Poema encontrado em Um Mar de Filmes, Cinemateca Portuguesa , 1998.
Legenda: pintura de Edward Hopper

domingo, 8 de setembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa

Selecção , prefácio de Eugénio de Andarde
Campo das Letras, Porto, Dezembro de 2002


Onde mora a memória obscura, onde
esse cavalo persiste como um relâmpago de pedra,
onde o corpo se nega, onde a noite ensurdece,
caminho sobre pedras na minha casa pobre.

Não conheço esse lago, não fui a esse país.
Mas aqui é um termo ou princípio novo.
Com a baba do cavalo, com os seus nervos mais finos
reconstruí o corpo, silenciei os membros.

Não se estancou a sede, no mesmo caos de agora,
mas a língua rebenta, as vértebras estalam
por uma nova língua por um cavalo que una

a terra à tua boca, e a tua boca à água.

Poema de António Ramos Rosa