terça-feira, 23 de julho de 2019

OLHAR AS CAPAS


Avieiros

Alves Redol
Publicações Europa-América, Lisboa, Setembro de 1976

- Já sabes cantar, Tóino? Se sabes cantar, canta…
- Podem ouvir no barracão.
- Então, vamos para longe. Encosta à margem; lá acima atravessas para o outro lado.
- Queres ir à lenha comigo? – perguntou o Tóino, resoluto.
Ela passou as pernas para dentro do barco, foi sentar-se no banco de remar e ficou à espera. As sombras das árvores já não manchavam o manto que cobria o Tejo.
De remos ao ombro ele, aproximou-se. Meteu-os nos toletes e pediu-lhe que se deitasse à ré. Os moças da barca podiam vê-la; quando passassem para a outra margem, ele sabia onde, deixava-a remar sozinha.
Com os pés nus fincados na estribeira, o rapaz puxou os punhos dos remos para o peito e o saveiro galgou, rápido, como nunca soubera navegar desde que o calafate o dera pronto para o rio. Tóino da vala deitava o olhar sobre o corpo da companheira estendida no paneiro da popa. Já cantara uma vez para outra rapariga e sabia onde havia um sítio para a levar.
Um pássaro voou na noite. Passou-lhe por cima da cabeça, foi esconder-se num salgueiro, isolado, e trinou de lá uns gorjeios sem sol.
- Canta, Tóino! – pediu a rapariga. – Canta a do coração…
- Um homem só canta quando tem mulher…
- Podes cantar…
Tóino da Vala largou os remos ao acaso e foi deitar-se ao pé dela.

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