Pretendo, um
destes dias, escrever um texto sobre o Dicionário
de Morais.
Lembrava-me de
uma referência a esse dicionário feita pelo Miguel Torga no seu Diário e
andei de página em página à cata da dita referência. Encontrei-a mas também
acabei por me deter nesta entrada diaristica datada de 19 de Abril de 1984:
«Outro romance de um dos génios da hora.
O esforço que tive de fazer para não desistir a meio! A entronização dos escritores, agora, faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor.
Acovardada ou cúmplice, a crítica jura e bate o pé que sim, que são obras-primas esses trambolhos que vão atulhando as montras. Autores e promotores esquecem-se apenas dum pormenor : que a propaganda ruidosa, que violenta a boa fé do leitor de hoje, já não poderá enganar a curiosidade livre do leitor de amanhã. É mesmo esse o encanto do futuro : nenhum dos seus juízos ser motivado pela agressão publicitária do presente. Ninguém mais lê os autores do século XVIII impostos ao gosto do tempo pela conjura dos peraltas e sécias dos salões.»
O esforço que tive de fazer para não desistir a meio! A entronização dos escritores, agora, faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor.
Acovardada ou cúmplice, a crítica jura e bate o pé que sim, que são obras-primas esses trambolhos que vão atulhando as montras. Autores e promotores esquecem-se apenas dum pormenor : que a propaganda ruidosa, que violenta a boa fé do leitor de hoje, já não poderá enganar a curiosidade livre do leitor de amanhã. É mesmo esse o encanto do futuro : nenhum dos seus juízos ser motivado pela agressão publicitária do presente. Ninguém mais lê os autores do século XVIII impostos ao gosto do tempo pela conjura dos peraltas e sécias dos salões.»
A quem estaria
Miguel Torga a referir-se?
Miguel Torga,
seja a pessoa seja o escritor, nunca me provocou um sinal nítido de qualquer
entusiasmo.
Talvez não seja
impossível sabermos a quem se refere, mas são atitudes que apoucam quem as
escreve e, acima de tudo, revela falta de coragem o não nomear o tal «génio da
hora».
Miguel Torga foi
sempre um escritor desiludido, acima de tudo, consigo mesmo.
Escreverá quase
em final de vida:
«Nunca serei compreendido.»
«O Torga lá se foi.
Nunca estive com ele. Nunca trocámos uma palavra,
apesar disso, esta morte doeu-me muito. Talvez porque o que está a morrer seja
uma certa maneira de ser Portugal…»
Legenda: Miguel
Torga
7 comentários:
Talvez, por não ser um "génio da hora", acaba por ser uma personagem estranha, Sammy.
Noto que muitos dos nossos grandes escritores sempre se sentiram de alguma forma incompreendidos (muitas vezes com razão). Torga, Virgilio, Sena, Agustina, Saramago, Antunes...
Mas acho os seus diários muito bons, ajudam-nos a conhecer o nosso país e os portugueses.
Ó Luís não sei se o Saramago se terá sentido incompreendido, é que o Prémio Nobel absorve todo o pingo de incompreensão que porventura possa ter existido. Quanto muito, decerto se terá sentido injustiçado, isso sim, concordo, porque o foi efectivamente!
Dos que nomeias creio que apenas o Vergílio Ferreira talvez tivesse alguma razão para se sentir incompreendido, a par do Ferreira de Castro.
Sou um incondicional leitor de diários, de correspondências, de biografias.
Não mais li do Torga senão os seus Diários e concordo, Luís, os seus diários ajudam-nos a conhecer o país e os portugueses.
Mas acabo sempre a lembrar-me do Luíz Pacheco: «É um chato do caneco. Por exemplo, faz um poema para cada Natal: é como quem mata uma galinha ou um peru!
O gajo para mim era um mestre, foi muito importante na minha vida, e se o meu livro é uma autobiografia tenho que meter sempre o Torga! Mas deixei de lê-lo porque é um grandessíssimo chato! Não é não gostar dele: enganou-me! Então o gajo que não queria entrevistas nem prémios literários mamou os prémios todos quantos havia e morreu, como diz o Mário Soares, com a frustração de não ter tido o Prémio Nobel! Não queria mais nada?! E é muito reacionário, benza-o Deus, coitadinho!»
Segundo Nelson de Matos, José Saramago sentiu profundamente que os livros que publicou na Moraes não tivessem tido, por parte da crítica e dos leitores, a aceitação que ele sentia ser credor. Em relação ao Torga, Virgílio Ferreira, Jorge de Sena, Agustina Bessa-Luís. acrescento o José Rodrigues Miguéis, e o António Lobo Antunes não pode ser metido neste lote, foram muito incompreendidos e quase caíram no esquecimento. Mas o caso de Saramago tem um pormenor: é que ele, apesar de tudo, acreditou. Percorreu o caminho das pedras e disse a si próprio: serei um escritor. E foi!
Ó Sammy perdoa-me a ousadia: Vergílio Ferreira. Ele não gostava nada que lhe trocassem o e pelo i.
Gostas de diários? Então não podes deixar de ler (se ainda não leste, obviamente) o magnífico "conta-corrente"; uma obra magistral em 9 volumes. Absolutamente imperdível!
Tem toda a razão, Seve, ele ficava mesmo chateado com essa troca. São daqueles erros de correr da pena, de qualquer forma indesculpável.
E seja sempre ousado!
Se consultar a etiqueta Vergílio Ferreira deste cais, verificará que 4 volumes da «Conta-Corrente» já aqui foram referidos. Falta o nº 5 que não comprei na altura porque me chateei bravamente com algumas coisas que ele escreveu nos diários. Tirada ao acaso, coisas deste género: «O Torga foi pela terceira vez proposto para o prémio Nobe! Era bom que o conseguisse. Estamos precisados de divisas».
Ora eu até não simpatizo muito com o Torga, mas na observação do Vergílio Ferreira, há mais qualquer coisa do que problemas de divisas!...
Entretanto, já quis comprar o 5º volumes do «Conta-Corrente» mas na Bertrand informaram-me que está «descontinuado» sem indicação que venha a ser reeditado. De modo que só em alfarrabistas.
Um abraço
E difícil de encontrar, mesmo nos alfarrabistas. Eu li-os todos pela Biblioteca (em leitura domiciliária - 9; cinco da capa vermelha/amarela mais quatro da capa verde) e dei comigo a discutir com ele certas opiniões (contrárias à minha) mas era um grande escritor, um grande pensador (que me pôs mesmo a pensar). E com muito sentido de humor, muita graça tinha o homem...
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