domingo, 29 de agosto de 2021

MARCADORES DE LIVROS


 Colaboração de Aida Santos.

sábado, 28 de agosto de 2021

PICA-NO-CHÃO


Lembrança de uns pica-no-chão comidos, numa típica tasca, ali para os lados da Maia.

O Magalhães é que nos encaminhou os passos.

Pipos de verde tinto ao alto, branco também, mesas corridas, lareira acesa a um canto.

Por cima da lareira, inscrito a azul, em azulejo branco, este versejar:

Vizinhos ao pé da porta,

Quando não sejam leias,

Bom dia uma vez por dia,

Já são conversas de mais.

O Magalhães telefonava para o Costa, o dono do tasco:

Somos nove!

A mulher do Costa ia ao quintal, nas traseiras, e filava um galo.

E zás!

As mais saborosas cabidelas que me passaram pelo estreito, foram naquele tasco na Maia, apenas conhecido por quem se está borrifando para o amesentar à la gourmet.

 O pica-no-chão, assim contado às criancinhas, em prosa pública, pelo saudoso David Lopes Ramos:

«Galo de pé descalço ou pica-no-chão é a designação que, em tempos recentes, no Minho, se começou a dar ao galináceo adulto, criado ao ar livre e à solta, alimentando-se do que encontra na natureza, bem como do milho e hortaliças que lhe dão. Na dieta dos galos pé descalço ou pica-no-chão estão proibidas as farinhas de peixe e aparentadas, bem como vitaminas, antibióticos e outras malfeitorias.

Um galo de pé descalço, adulto tem sempre mais de seis meses, por vezes ultrapassa o ano ou mais e é matéria-prima essencial na confecção do arroz de cabidela de Entre Douro e Minho, sendo também muito bom assado no forno ou guisado lentamente em vinho, pode ser tinto, e outros temperos e condimentos.»


Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

OLHAR AS CAPAS


The Children’s Book

António Botto

Capa e ilustrações: Carlos Botelho

Tradução: Alice Lawrence Oram

Bertrand Editores

Lisboa, s/d

On a beautiful autumn morning, a hen was walking, in a melancholy mood, under a vine, when a ripe grape, loosening itself from its fellows, fell right on the top of her little red crest. In great alarm, she stated running, and nearly bumped into a rooster. “Where are you going in such a hurry, my dear and lovely friend?” he asked sarcastically- - I am going to tell the king that the sky is falling. Just now such a big piece fell on my head, that it is a miracle I was not killed.

Nota do Editor:  livro de contos para crianças que foi oficialmente aprovado como leitura escolar na Irlanda e que mereceu elogios de James Joyce, Virginia Woolf e Rudyard Kippling.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

OLHAR AS CAPAS


50.000 Dólares Por Um Tiro

Frank Gruber

Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 246

Livros do Brasil, Lisboa s/d

Não há na terra nenhum lugar que esteja mais próximo do Inferno do que o vale da Morte. É um bom sítio para morrer.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

AS JANELAS


As janelas

por onde entram as silvas,

a púrpura pisada,

o aroma das tílias, a luz

em declínio,

fazem deste abandono

uma beleza devastadora

e sem contorno.

Eugénio de Andrade em Rente ao Dizer

Colaboração de Aida Santos

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

UMA VIDA DE PROFUNDA TRAGÉDIA


Fabulosa Maria Callas, Divina mesmo.

A maior soprano da História que, por motivos que só ela e os deuses saberão, teve uma vida de provações, marcada por amores trágicos.

Não sei se serviria de alguma alguém ter dito a Callas que o magnata Aristóteles Onassis era uma escroque que não olhava a qualquer meio para destruir a vida das pessoas e alimentar a sua vaidade.

As biografias dizem que Onassis foi o grande amor da vida de Maria Callas.

Mas durante toda a sua vida, para além dos palcos, o drama esteve sempre a envolvê-la.

A própria mãe chantageou-a ameaçando contar detalhes menos abonatórios da sua vida, caso Callas não lhe desse dinheiro, quase o mesmo se passava com o pai que chegou a escrever-lhe uma carta fingindo estar a morrer no hospital de um asilo e que lhe enviasse dinheiro.

Maria Callas morreu de ataque cardíaco no apartamento de Paris, onde viveu os últimos anos em quase isolamento.

Tinha 53 anos.

Há dias, num daqueles merdosos canais televisivos de cinema, estive a rever Filadélfia, filme  de cuja banda sonora faz parte a interpretação de Maria Callas para La Mamma Morta da ópera Andrea Chénier do compositor Umberto Giordano, com libretto de Luigi Illica. baseada na vida do poeta francês André Chénier que foi executado durante a Revolução Francesa.


TODAS AS HORAS


Todas as horas, todos os minutos,
São para mim a véspera da partida.

Preparo-me para a morte, como quem
Se prepara para a vida.

Em qualquer parte eu disse que a Beleza
Não nasce só mas sim acompanhada.

Não são palavras minhas as que eu digo.
À minha boca pertence aos que me amam.

Mudos e sós.
À nossa volta todos os amantes
Sentir-se-ão tranquilos.
Um coração puro
É como o Sol:
Brilha todos os dias.

Raul de Carvalho

Legenda: desenho pintado por Aida Santos

domingo, 22 de agosto de 2021

RELANÇANDO COMEÇOS DE LIVROS


Acima de tudo gosta de livros.

Já comprou livros pelos começos, já comprou livros pelas capas – a capa de um livro é uma arte a que hoje pouco se liga e há capas muito bonitas .-, já comprou livros pelos finais.

Mas, acima de tudo, gosta de livros.

 Era o tempo em que havia livrarias e se folheavam livros naqueles silêncios monásticos.

Maria Gabriela Llansol, escritora em que nunca conseguiu entrar, apesar de diversas tentativas – o problema é todo dele! – escreveu um livro, Na Casa de  Julho e Agosto, que começa assim:

«O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a “decisão da intimidade” se pronuncie.»

Dinis Machado no começo de Reduto Quase Final:

«Abertura com a mais velha estação de comboios do mundo» e acrescenta: «Qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar».

Para começar, havia muitos excelentes começos de livros, mas o começo de Paixões e Trabalhos de Benito Prada de Fernando Assis Pacheco, é simplesmente extraordinário.

Terrível aquele até lhe assava a memória.

«Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé.

O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado.
«Caramba», disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, «é à segoviana!»
«Mas não lhe pões o dente», cortou o outro.
Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:
«É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno.»
Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido:
«Assar-lhe até a memória.»

sábado, 21 de agosto de 2021

OLHARES


 Gosto deste prédio.

Desde muito miúda que o vejo e acho que é um prédio bonito, como já raramente se consegue ver na Lisboa de cimento.

Fica na esquina da Rua dos Anjos com a Avenida Almirante Reis.

Quase em frente, ficava o cinema Lys, que hoje é um centro comercial quase ao abandono.

Foi neste prédio, no início da Rua dos Anjos, que comecei a trabalhar.


Na Retrosaria Pereira, mesmo em frente ao Café Ribatejano que já não existe. 

Hoje é uma loja que vende utensílios e máquinas para a hotelaria.

Tinha então 12 anos.

Colaboração de Aida Santos

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

POSTAIS SEM SELO


Os povos civilizados plantam árvores… os não civilizados arrancam-nas.

José Luandino Vieira em Papéis da Prisão

A CAPA DE FRED KRADOLFER


 Esta é a capa de Fred Kradolfer para a 1ª edição de Fanga de Alves Redol publicada em 1943 e que o meu avô destruiu quando fez a encadernação com retalhos de pano da Empresa Fabril do Norte.

Legenda: a capa foi copiada do site de Leilões Oportunity, Lda.

A FANGA ENCADERNADA PELO MEU AVÔ


A capa da Fanga de Alves Redol, que se apresentou em Olhar as Capas não é, obviamente, a da edição original da autoria de Fred Kradolfer, mas é a capa que existe na Biblioteca da Casa.

Trata-se de uma encadernação feita pelo meu avô paterno, com pano de retalhos de tecidos da Empresa Fabril do Norte, na Senhora da Hora.

Tentarei explicar:

O meu avô paterno, Mário de seu nome, que, orgulhosamente, se dizia republicano histórico, benfiquista e anticlerical, foi toda a sua vida caixeiro-de-praça do J. Português das Silva, na Rua da Betesga, vendendo pelas lojas de Lisboa, linhas e panos da Fábrica da Senhora da Hora.

Ganhava uma miséria e todos os dias de segunda a sábado, transportava uma enorme mala com as amostras.

Era um leitor compulsivo.

Um dia, sem qualquer tipo de aprendizagem, nenhum aviso à navegação, mostrou um livro encadernado por ele: a Fanga da Alves Redol.


O meu pai, quando deu conta que a capa de Fred Kradolfer já não existia, disse-lhe que não se podia fazer uma coisa daquelas.

Lembro-me então de o ouvir dizer que a capa de um livro é uma coisa sagrada e essa ideia registei-a para sempre.

O meu avô ficou sem palavras, pegou no livro e retirou-se, calmamente, com uma tristeza sem fim.

Entendeu o comentário, mas não mais encadernou livros.

O meu pai ainda lhe disse que poderia encadernar livros não ocultando as capas, mas nada o fez mudar de ideias.

Curiosamente, e não lembro qualquer razão em especial – a capa colorida? Talvez!  – foi este o primeiro livro que li de Alves Redol.
Alves Redol fez questão de o dedicar aos fangueiros:

«Para vocês, fangueiros dos campos da Golegã, escrevi êste livro. Que algum dia o possam ler e rectificar – porque o romance da vossa vida só vocês o saberão escrever.»

UMA LISBOA REMANCHADA


AVENIDA DA LIBERDADE

Subamos e desçamos a Avenida,
enquanto esperamos por uma outra
(ou pela outra) vida.

CHIADO

Ramilhete rubro do desejo,
ramilhete posto pelo olhar
entre dois seios desdenhosos,
a dar a dar.

PARQUE EDUARDO VII

Ah, o êxtase dos namorados
que se olham, beijam, voltam a olhar-se e já não sabem
que mais hão-de fazer, que mais hão-de inventar!

TRAVESSA DO POÇO DA CIDADE

— Vejam lá se se despacham
que eu não quero lá fardas!

Rancho de amor para os soldados.
De cada vez só pode ir um.
E dois cabritos são esfolados
no tempo de um.

AO BENFORMOSO

Entre o fartum de peixe frito
e de sovacos sem sol,
passa o ranço, chique e ligeiro,
da brilhantina ROUXINOL.

BECO DA MAL-AMADA

Se acha que a vida não é boa
utilize gás da Companhia
o combustível de Lisboa.

AZINHAGA DO GUARDA-SÓ

Encontro um resmunguarda que me intima
a parar.

Seria por suspeita? Seria por rotina?
Não. Foi para conversar...

Alexandre O’ Neill em De Ombro na Ombreira

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

POSTAIS SEM SELO


Não há dúvida, cresci. O casaco rebentava nas costuras, as calças deixavam as peúgas à vista. Era uma vez um miúdo que abriu um livro, entrou no livro e começou a andar pela vida fora. E saiu do livro quando a história acabou.

 Dinis Machado em Reduto Quase Final

Legenda: pintura de Winslow Homer

A UNIVERSIDADE DO TREMOÇO


Para mim, a Ribadouro, esquina do fundo da Rua do Salitre com a Avenida da Liberdade, está sempre agarrada ao Belarmino, filme do Fernando Lopes, ali pensado, escrito, encenado, discutido.

Também conhecida pela Universidade do Tremoço.

O José Cardoso Pires em A Balada da Praia dos Cães:

«O chá na cervejaria Ribadouro: Isto não é uma cervejaria, é uma baía de cascas de tremoços com canecas à deriva. Chulos do Parque Mayer a atacarem o fastio na perna da boa santola, chauffeurs de praça a combinarem a sua bandeirada de jogo num casino clandestino para os lados de Arroios ou para Campolide que são bancas de entendidos por onde a polícia faz que não vê. Um galador de coristas a puxar fumaças à distância. A dono Lurdes abortadeira. Mestres-de-obras a arrrotar! Oh, senhores.»

Quantos finos, quantos bifes com ovo a cavalo, quantas conversas pela noite dentro, a esperança vã de mandar Salazar borda fora.

O que ainda tivemos de esperar!...

Hoje, a Ribadouro está mais voltada para os turistas, para uma classe específica,  gente que encheu os bolsos de dinheiro para, nos tempos que correm, nos acusarem de que andámos a viver acima das nossas possibilidades.

Já não anda por lá a malta do Parque Mayer, gente do jazz, das escritas, dos jornais, o clã da Ribadouro.

Assim de memória, alguma da rapaziada desse clã: Fernando Lopes, Canto e Castro, Manuel de Azevedo, Baptista-Bastos, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires, Alexandre Vieira, Carlos de Oliveira, rapazes, outros já entradotes, que, no fundo, só queriam assaltar a felicidade, felicidade que, como dizia o Saint-Just, era possível.

Esperanças, sonhos, amores, desamores, frustrações, andaram por aquelas  mesas, juntamente com cervejas, tremoços, cafés, o que calhava.

Não consigo passar junto à Ribadouro, sem que os passos se encaminhem para o balcão, beber um copo de cerveja clara, Sagres, naturalmente, olhar as mesas, agora atoalhadas para turistas e gente fina, e sentir o rumor das conversas, não deixando de seguir os ditames do José Gomes Ferreira:

«Saudades de não poder inventar o futuro. Às mais variadas horas, desde as sete da manhã até ao fim da tarde.»

OS TEMPOS NÃO


Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.



Manuel António Pina de Ainda Não é o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma é Apenas um Pouco Tarde em Poesia Reunida

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

POSTAIS SEM SELO


Quando estiveres aborrecido, senta-te num café com vidros grossos que impeçam que até ti chegue o som da rua. E olha para as pessoas que passam. Quando retirares um elemento da vida — o som, neste caso — vês que tudo é uma dança sem fim, insólita, completamente conjugada.

Jacques Tati, citado por Jorge Silva Melo em Século Passado

Legenda: pintura de Vincent Giarrano

OLHARES


No dizer de Luiz Pacheco, existem «os jardins fantásticos da cidade mais bela de todas as cidades do mundo» e cita o Jardim Constantino como sendo um desses jardins.

O Jardim Constantino também foi o jardim fantástico do José Cardoso Pires e, por arrasto, Lisboa também:

«Lisboa, vista do outro lado do mundo, tem muito que se lhe diga. Eu que já a vi, sentado na esplanada de um hotel de Colombo, sei bem o trabalho que isso dá porque mete muita História e paciência, e sobretudo muita cortesia.»

Às quartas-feiras no Jardim Constantino, meia-dúzia de alfarrabistas estendem os seus escaparates com livros, revistas e o que mais calhar.

Volta e meia passo por lá, dou uma vista de olhos pela livralhada e volto a espantar-me como se publica tantos e tantos livros que não sei se terão leitores. Muitos deles ocuparam, continuam a ocupar, espaço nas livrarias em detrimento de outros livros, provavelmente de outros interesses que não os dos livreiros que, normalmente apostam em jogadores de futebol, em «pivots» de telejornais em vedetas de novelas.

Existe uma certa serenidade naqueles vendedores que, uma vez por semana, se encontram no Jardim Constantino, talvez em outros lugares.

ESCREVE SEMPRE QUE PRECISARES


Escreve sempre que precisares de me dizer
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.
Os legumes que trouxe ontem
não sobrevivem a mais do que uma geada,
muito menos nós.


Escreve sempre que precisares, podes
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
quatro pessoas que vão à rua

 

agora que encontraram a porta certa.

 

Escreve sempre que precisares, faz
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares
de mais um postal com selo e carimbo.
Escreve sempre que riscares
na tua agenda mais uma morada.

 

Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua,
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos,
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
as frases podem desviar deixas decoradas,
repetidas como mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.

 

Escreve em vez de costurares.
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura joelhos,
cotovelos e as canelas
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.


Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.

 

Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas,
nunca trago chaves comigo.

Margarida Ferra em  Sorte de Principiante, copiado da revista Ler 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

POSTAIS SEM SELO


Viver o dia de hoje. Não confiar no futuro.

Autor desconhecido

A INFÂNCIA COMO LUGAR DE EXÍLIO

29 de Janeiro de 1992

A infância é um lugar de e3xílio. Se não tivermos, em qualquer sítio do coração, uma infância, onde nos refugiaremos quando os ladrões vierem para nos roubar a inocência e os sonhos e quando os assassino baterem à porta? Se não tivermos uma pequena infância que seja (um jardim longínquo, um vago quarto de dormir perdido), onde guardaremos os segredo mais secretos e onde brincaremos ainda? E quem nos responderá quando, diante do nosso rosto no espelho, nos virmos e não nos reconhecermos, ou quando, nos dias de infelicidade, chamarmos pelo nosso nome?

Manuel António Pina em Crónica, Saudade da Literatura

AS COISAS QUE PERDEMOS FALAM POR NÓS


Patti Smith também andou às voltas por um casaco. Recordamos o texto em que o invoca e que aqui foi publicado quando andámos a ler o M Train:

«As coisas que perdemos choram por nós? As ovelhas elétricas sonham com Roy Batty? Será que o meu casaco cheio de buracos se vai lembrar dos momentos maravilhosos que passámos juntos? Dormir em autocarros de Viena a Praga, noites na ópera, passeios junto ao mar, o túmulo de Swinburne na Ilha de Wight, as arcadas de Paris, as cavernas de Luray, os cafés de Buenos Aires. Uma experiência humana entrelaçada nos seus fios. Quantos poemas sangram das suas mangas esfarrapadas? Distraí-me dele por um momento, atraída por outro casaco mais quente e mais macio, mas de que eu não gostava muito. Porque perdemos as coisas que amamos e coisas que nos são indiferentes se agarram a nós, podendo tornar-se, depois de morrermos, símbolos de valor que tivemos?

E então ocorreu-me uma coisa. Talvez eu tenha absorvido o meu casaco. Acho que devia estar-lhe grata, tendo em conta o seu poder, por o meu casaco não me ter absorvido a mim. Se assim tivesse sido, eu não teria senão mais uma coisa desaparecida, atirada para uma cadeira, balançando cheia de buracos.

As nossas coisas perdidas de regresso aos sítios de onde vieram, às suas origens absolutas: um crucifixo de volta à árvore de onde saiu ou os rubis de volta à sua casa no oceano Índico. A génese do meu casaco, feito de lã delicada, a girara ao contrário nos teares, de volta ao corpo de um carneiro, um carneiro preto um pouco afastado do rebanho, a pastar na encosta de uma colina. Um carneiro a abrir os olhos para as nuvens que, por momento, se assemelham às costas cheias de lã de outros iguais a si.»

Patti Smith em M Train

ADEUS POR UM CASACO


É tempo de dizer, agora que o Verão chegou e está um calor de ananases, que o meu velho casaco de lã, fez o seu último Inverno.

Pela Primavera agora finda, ainda o vesti porque o sol andou por ela dentro com uns farrapos meio parvos e à noite apetecia uma lãzinha.

Comprei-o na primeira Festa do Avante na Quinta da Atalaia, em 1990, no pavilhão de Vila do Conde e sempre me cheirou a mar.

Quando senti que andava a dar as últimas, tentei, por diversas vezes, encontrar um outro semelhante, mas nunca consegui.

Olhava-os mas sentia logo que não correspondiam à imagem e cheiro do meu velho casaco.

Nos últimos invernos, a Clementina, minha sogra, foi-o gatando com uns pedaços de lã e linha, disfarçava, mas não vai dar mais.

A minha neta Maria, já no passado ano, dissera: o avô anda tão mal vestido.

Tentei explicar-lhe que me sentia maravilhosamente bem dentro daquele casaco mas ela mandou-me um tá bem abelha!

O próximo Inverno já não me encontrará com ele vestido.

Não sou de lágrima fácil, mas senti necessidade de lhe deixar, como profundo agradecimento, um adeus e acrescentar-lhe esta velha canção da Dolly Parton.

Também a esperança que um dia encontre um substituto à altura do seu conforto.

Pelo andar da carruagem, débil esperança…

Ou por outra: resta-me a desesperança de não mais entrar num casaco assim.


É SEMPRE DE UM OUTRO PARA UM OUTRO


 

A João Rui de Sousa pelo seu aniversário


Il ne se passe pas grand - chose... mais à condition d´être suffisamment attentif,

on trouve toujours des petits détails à raconter

Patrick Deville (Longue Vue)


...é sempre de um outro para um outro

no vazio numa distância

num espaço branco

propício à imagem

a uma metamorfose talvez

talvez porque

não perdemos a possibilidade de admirar

o simples insignificante na singularidade indizível

talvez o espaço a cor o gosto

de respirar através de uma sombra

o gosto de um fruto

um fragmento do indivisível

e a ignorância de ver

no ébrio entusiasmo paciente

de sermos nada

na lentidão vaga da visão

entre duas cores ou dois matizes de uma cor

o amarelo e o dourado

a música de uma sombra diluída

fronteira flutuante entre duas sílabas

um pequeno pormenor a génese indecisa

de um começo

de uma outra sintaxe

que respira

como o azul no cinzento

a cor viva de um enigma amoroso

 

 Não sei se respondo ou se pergunto.

Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.

Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

Desenho pintado por Aida Santos

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

POSTAIS SEM SELO


A vida é uma ponte. Atravessa-a, mas não construas nenhuma casa em cima dela.

Provérbio indiano citado por Jorge Fallorca em Blues para uma Puta Velha

CHE GUEVARA

12 de Outubro de 1967

Parece que sempre conseguiram matar o Che Guevara, ao que dizem os jornais. Embora o sinta, não adiro com o mesmo sentimento que tive e tenho pelo Lumumba. É muito diferente lutar e morrer no seio do próprio povo ou agir como caixeiro-viajante da aventura revolucionária, no sei de outros. A dinastia dos Malraux nunca me foi simpática e a realidade confirma que há boas razões para isso.

Mário Sacramento em Diário

OLHAR AS CAPAS


Miguel Torga

José de Melo

Colecção A Obra e o Homem nº 2

Editora Arcádia, Lisboa, Junho de 1960

O carinho de Miguel Torga, o seu amor pela nossa terra, o seu portuguesismo de homem de Trás-os-Montes a querer esconder a ternura, está belamente estampado nos versos de abertura do livro Portugal, abertura que intitula Pátria:

Soube a definição na minha infância,

Mas o tempo apagou

As linhas que uma velha palmatória

No mapa da memória desenhou.

 

Hoje

Sei apenas gostar

Duma nesga de terra

Debruada de mar.