Uma noite, já longínqua e em lugar
público, eu agarrei-me a um polícia, e ele a mim, aos pulos e abraços. Éramos
adultos e a coisa completamente consensual mas, há que dizê-lo, estávamos a
celebrar um crime. Então, não havia ainda o VAR e o crime ficou impune. Apesar
disso, eu próprio me tenho encarregado de auto-denunciar a minha participação
na tal prevaricação.
Isso foi, portanto, numa quarta-feira,
18 de abril de 1990. O meu conterrâneo Vata tinha acabado de cometer um golo
com a mão, no jogo da Taça dos Campeões que levou o nosso Benfica a uma final
europeia. Trago para aqui essa memória e não é por estar aguilhoado pelos
remorsos. Não me penitencio. Assumo e explico-me: há momentos de júbilo em que
os pecadilhos são perdoáveis.
Entre os abraços ao senhor agente
(atenção, nunca houve beijo), vi mais gente nos mesmos preparos jubilatórios.
Políticos de várias cores, cunhados que não se falavam nem no Natal (ali
reunidos porque o sogro tinha lugares cativos), o pobre que se desunhou para
comprar o bilhete na candonga e o administrador que fez o favor de só aceitar
uma borla na bancada porque os camarotes estavam cheios... - quase todos em
abraços apertados. Quero eu dizer, o meu crime de bancada era socialmente
aceitável.
Assim, não o quero comparar com o crime hediondo ocorrido no dia 14 de
agosto de 1945, na Times Square, Nova Iorque. Mas vou contar este por dever
de atualidade. Ia Greta, com o seu vestido imaculado de enfermeira, sapatinhos
e meias brancas também, e por ali andava Alfred, um fotógrafo com sua pequena
Leica sem flash, como então tão pouco se usava. Havia um multidão, pois o Japão
anunciou que ia render-se. Era o fim da II Guerra Mundial, 80 milhões de
mortos, campos de concentração nazis e duas bombas atómicas - desculpem-me
esses pormenores irrelevantes, quando estamos perante a coincidência de se
encontrarem numa praça nova-iorquina a pureza da alva Greta e o Alfred tão
sincero que não usava flash.
Eis que o marinheiro George assaltou
esse momento diáfano! No meio da multidão, o marinheiro atacou violentamente a
enfermeira Greta. Isto é, enlaçou-a (desculpem a brutalidade do termo) e
beijou-a (desculpem, outra vez). O fotógrafo Alfred clicou e deixou para a
eternidade o testemunho do horror. Veem-se na foto, à volta, homens e mulheres
sorridentes - apesar da evidência do supremo mal tão próximo - parecendo mais
interessados na minudência do fim da II Guerra, do que no crime ignóbil que
assistiam. Ah, género humano, sempre tão distraído!
A foto, embora nunca exibida em nenhum
museu do Mal (de Dachau ao Camboja), tornou-se famosa. Recentemente,
procurou-se o marinheiro George e soube-se, para nossa vergonha nacional, que
ele se chamava Mendonsa, filho de um Mendonça que emigrou. O marinheiro disse
que tinha ido para a Times Square celebrar fim da guerra, até ia com a
namorada, bebeu uns copitos, viu a enfermeira e pespegou-lhe um beijo à
Hollywood.
Logo no ano seguinte, Frank
Sinatra e Gene Kelly, em Paixão de Marinheiro, iriam dar beijos iguais a
raparigas, mas isso era Hollywood. Na vida real, em Times Square, na foto,
vê-se o braço esquerdo da enfermeira, lânguido, sem estar agarrado, rendido,
mas também o King Kong levou a rapariga para a Estátua da Liberdade e ela ia
constrangida. Talvez a enfermeira Greta tivesse desmaiado pela violência do
ataque inopinado. Quando também foi encontrada pelos jornalistas, muitas
décadas depois, a enfermeira disse que o beijo não foi consensual, fora surpreendida
pelo marinheiro.
Mas também contou que se chamava Greta
Zimmer, fugida do seu país natal, Áustria, e refugiada nos Estados Unidos, em
1939. Quer dizer, naquele dia do fim de guerra, ela tinha motivos de júbilo.
Mas não nos desviemos do essencial: a enfermeira foi atacada. O fotógrafo que
publicou a foto na capa da revista Life chamava-se Alfred Eisenstaedt, era um
judeu alemão, desde meados dos anos 30 refugiado na América. Naquele dia, na
Times Square, também ele celebrava.
Mas porque insisto eu em falar de
júbilo, quando 14 de agosto de 1945 foi o dia do horror?! Esta semana, aos 92
anos, morreu George Mendonsa, o torcionário do beijo, infelizmente sem nunca
ter sido um daqueles velhos julgados como qualquer kapo de um campo de
concentração nazi.
Ferreira Fernandes no Diário de Notícias.
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