sábado, 14 de agosto de 2021

O TORCIONÁRIO DO BEIJO ROUBADO


Uma noite, já longínqua e em lugar público, eu agarrei-me a um polícia, e ele a mim, aos pulos e abraços. Éramos adultos e a coisa completamente consensual mas, há que dizê-lo, estávamos a celebrar um crime. Então, não havia ainda o VAR e o crime ficou impune. Apesar disso, eu próprio me tenho encarregado de auto-denunciar a minha participação na tal prevaricação.

Isso foi, portanto, numa quarta-feira, 18 de abril de 1990. O meu conterrâneo Vata tinha acabado de cometer um golo com a mão, no jogo da Taça dos Campeões que levou o nosso Benfica a uma final europeia. Trago para aqui essa memória e não é por estar aguilhoado pelos remorsos. Não me penitencio. Assumo e explico-me: há momentos de júbilo em que os pecadilhos são perdoáveis.

Entre os abraços ao senhor agente (atenção, nunca houve beijo), vi mais gente nos mesmos preparos jubilatórios. Políticos de várias cores, cunhados que não se falavam nem no Natal (ali reunidos porque o sogro tinha lugares cativos), o pobre que se desunhou para comprar o bilhete na candonga e o administrador que fez o favor de só aceitar uma borla na bancada porque os camarotes estavam cheios... - quase todos em abraços apertados. Quero eu dizer, o meu crime de bancada era socialmente aceitável.

Assim, não o quero comparar com o crime hediondo ocorrido no dia 14 de agosto de 1945, na Times Square, Nova Iorque. Mas vou contar este por dever de atualidade. Ia Greta, com o seu vestido imaculado de enfermeira, sapatinhos e meias brancas também, e por ali andava Alfred, um fotógrafo com sua pequena Leica sem flash, como então tão pouco se usava. Havia um multidão, pois o Japão anunciou que ia render-se. Era o fim da II Guerra Mundial, 80 milhões de mortos, campos de concentração nazis e duas bombas atómicas - desculpem-me esses pormenores irrelevantes, quando estamos perante a coincidência de se encontrarem numa praça nova-iorquina a pureza da alva Greta e o Alfred tão sincero que não usava flash.

Eis que o marinheiro George assaltou esse momento diáfano! No meio da multidão, o marinheiro atacou violentamente a enfermeira Greta. Isto é, enlaçou-a (desculpem a brutalidade do termo) e beijou-a (desculpem, outra vez). O fotógrafo Alfred clicou e deixou para a eternidade o testemunho do horror. Veem-se na foto, à volta, homens e mulheres sorridentes - apesar da evidência do supremo mal tão próximo - parecendo mais interessados na minudência do fim da II Guerra, do que no crime ignóbil que assistiam. Ah, género humano, sempre tão distraído!

A foto, embora nunca exibida em nenhum museu do Mal (de Dachau ao Camboja), tornou-se famosa. Recentemente, procurou-se o marinheiro George e soube-se, para nossa vergonha nacional, que ele se chamava Mendonsa, filho de um Mendonça que emigrou. O marinheiro disse que tinha ido para a Times Square celebrar fim da guerra, até ia com a namorada, bebeu uns copitos, viu a enfermeira e pespegou-lhe um beijo à Hollywood.

 Logo no ano seguinte, Frank Sinatra e Gene Kelly, em Paixão de Marinheiro, iriam dar beijos iguais a raparigas, mas isso era Hollywood. Na vida real, em Times Square, na foto, vê-se o braço esquerdo da enfermeira, lânguido, sem estar agarrado, rendido, mas também o King Kong levou a rapariga para a Estátua da Liberdade e ela ia constrangida. Talvez a enfermeira Greta tivesse desmaiado pela violência do ataque inopinado. Quando também foi encontrada pelos jornalistas, muitas décadas depois, a enfermeira disse que o beijo não foi consensual, fora surpreendida pelo marinheiro.

Mas também contou que se chamava Greta Zimmer, fugida do seu país natal, Áustria, e refugiada nos Estados Unidos, em 1939. Quer dizer, naquele dia do fim de guerra, ela tinha motivos de júbilo. Mas não nos desviemos do essencial: a enfermeira foi atacada. O fotógrafo que publicou a foto na capa da revista Life chamava-se Alfred Eisenstaedt, era um judeu alemão, desde meados dos anos 30 refugiado na América. Naquele dia, na Times Square, também ele celebrava.

Mas porque insisto eu em falar de júbilo, quando 14 de agosto de 1945 foi o dia do horror?! Esta semana, aos 92 anos, morreu George Mendonsa, o torcionário do beijo, infelizmente sem nunca ter sido um daqueles velhos julgados como qualquer kapo de um campo de concentração nazi.

Ferreira Fernandes no Diário de Notícias.

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