terça-feira, 17 de agosto de 2021

É SEMPRE DE UM OUTRO PARA UM OUTRO


 

A João Rui de Sousa pelo seu aniversário


Il ne se passe pas grand - chose... mais à condition d´être suffisamment attentif,

on trouve toujours des petits détails à raconter

Patrick Deville (Longue Vue)


...é sempre de um outro para um outro

no vazio numa distância

num espaço branco

propício à imagem

a uma metamorfose talvez

talvez porque

não perdemos a possibilidade de admirar

o simples insignificante na singularidade indizível

talvez o espaço a cor o gosto

de respirar através de uma sombra

o gosto de um fruto

um fragmento do indivisível

e a ignorância de ver

no ébrio entusiasmo paciente

de sermos nada

na lentidão vaga da visão

entre duas cores ou dois matizes de uma cor

o amarelo e o dourado

a música de uma sombra diluída

fronteira flutuante entre duas sílabas

um pequeno pormenor a génese indecisa

de um começo

de uma outra sintaxe

que respira

como o azul no cinzento

a cor viva de um enigma amoroso

 

 Não sei se respondo ou se pergunto.

Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.

Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

Desenho pintado por Aida Santos

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