sexta-feira, 30 de abril de 2021

COMO POETA É QUE É UM BOM PROSADOR


4 de Agosto de 1970

Relido um bocado do Torga, já não sei porquê. Uma ideia bem assente é que Torga é um Aquilino depurado, ou seja, sem os grilhões de ouro vocabulares. (Este Aquilino. E andou ele por França. Não viu nada. Que fidelidade à bruteza da província!) Ou ideia bem assente é que Torga é muito melhor poeta que prosador. Ou: como poeta é que é bom prosador. Esta segunda versão é que deve estar certa. O que invariavelmente me irrita neste homem, bons deuses, é o falar constantemente de si – em voz grossa. Mas não me chateiem por favor: já disse que é um bom poeta.

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente I Volume

ALGUNS DIAS ANTES DE MAIO


30 de Abril de 1974 

Amanhã será o primeiro 1º de Maio em liberdade.

Durante a ditadura, o 1º de Maio era um dia que trabalhadores e estudantes estavam impedidos de comemorar.

Mas com coragem e determinação, aqui e ali, sempre encontraram forma de o assinalar, se bem que sujeitos a brutal repressão: pedras e palavras de ordem contra bastões, espingardas, carros-de-combate-lanças-tinta-azul.

A mudança ia acontecendo, lenta, lenta, lenta, mas éramos tão poucos.

E onde estava aquele gente que, no amanhã de há 47 anos, encherá as ruas transformando-as num imenso oceano.

Os jornais de 30 de Abril de 1974, nas suas primeiras páginas, apelavam à serenidade do povo português nas comemorações do 1º de Maio, Dia do Trabalhador.

Na 1ª página do República podia ler-se: Só a disciplina dos Homens Livres destrói a “disciplina” do medo!». Nas páginas centrais uma outra frase: 

«A disciplina é a arma do Povo contra a opressão.»

Na 1ª página do Diário Popular: «O 1º de Maio é teu: conquistaste-o. Não deixes que possíveis provocadores alterem o dia que será uma festa de todos!»

Diário de Lisboa lembrava que, no 1º de Maio, as padarias e os depósitos de pão estavam encerrados: e colocava em título:

COMPRE HOJE O PÃO DE AMANHÃ

Diversas empresas faziam publicar anúncios de que iriam estar encerradas no 1º de Maio.



2.

A Junta de Salvação Nacional veio publicamente salientar que os trabalhadores dos CTT eram alheios a quaisquer diligências, actividades ou intervenção na violação da correspondência. Essa  violação era feita directamente pela PIDE-DGS, que requisitava aos CTT, a correspondência de suspeitos de actividades contra a ditadura.

 3. 

Concretamente em Lisboa, populares continuam a perseguir os pides.

 Aparecem os primeiros desmentidos de quem estava a ser acusado de pertencer à Legião, à PIDE/DGS, ou tinham sido informadores da polícia política.

 Alguns eram acusados, por vizinhos, conhecidos, como mera vingança pessoal.

Começavam, por isso, os desmentidos.

 Este podia ler-se em A Capital:

 «O antigo “boxeur” Licinio Sena deslocou-se à nossa redacção, acompanhado do capitão Nuno Santos Silva do Movimento das Forças Armadas, do seu chefe no Tribunal de Contas, onde trabalha, e do seu filho, para nos declarar que não era agente da Pide.»

 Outros optavam pela publicação, como publicidade paga, de anúncios deste teor:




Sobre este tipo de incidentes, o Diário de Notícias, publicava, na 3ª página, uma local que titulou como: Enganos lamentáveis:

No clima de justa euforia em que actualmente se vive na nossa cidade, um dos principais alvos da população – o que, por vezes, gera alguma violência – tem sido a descoberta de elementos da extinta DGS e ainda não detidos.

Mas, se em muitos casos, se verificou que os indivíduos apanhados eram realmente daquela corporação policial, noutros ocorreram enganos que poderiam tornar-se lamentáveis, se não fosse a intervenção das forças militares.»

SONETO DE ABRIL


 

Evoé! de pâmpano os soldados
rompem do tempo em que Evoé! a terra
salvé rainha descruzando os braços
com seu pé de papiro pisa a fera.

Na écloga dos rostos despontados
onde dos corvos se retira a treva,
de beijo em beijo as ruas são bailados
mudam-se as casas para a primavera.

Evoé! o povo abre o touril
e sai o Sol perfeitamente Abril
maravilha da Pátria ressurrecta.

Evoé! evoé! Tágides minhas
outra vez prateadas campainhas
sois na cabeça em fogo do poeta.

Natália Correia em Poemabril

quinta-feira, 29 de abril de 2021

ALGUNS DIAS ATÉ MAIO


29 de Abril de 1974

O quinto dia da nossa vida em liberdade.

 A importante, quase única, notícia que percorre todos os jornais:

É instituído como feriado nacional obrigatório o dia um de maio, considerado o «Dia do Trabalhador.»

Por outro lado, continuam as manifestações, as reuniões políticas, a «caça ao pide.»

Outras decisões:

Amnistia para os Presos Políticos.

Abolida a censura aos espectáculos.

Dissolução da Acção Nacional Popular.

Destituído o Chefe de Estado, bem como todo o Governo do regime deposto.

Serão reintegrados os funcionários despedidos por motivos políticos

 Continuava o regresso dos exilados políticos.

 Os desertores e refractários do Exército Português, saúdam a Junta de Salvação Nacional, querem voltar e pedem amnistia.

 Tal como o MPLA, a FRELIMO rejeita a solução federativa entre Portugal e os países africanos.

1.

Na página desportiva do Diário de Lisboa, uma interessantíssima observação do jornalista Neves de Sousa e que constitui a abertura da sua crónica sobre o jogo entre o Sporting e o Belenenses para a Taça de Portugal.

Com tanto pide preso e barões e baronetes em fuga, gentes que tinham cartões de livre- trânsito para todos os jogos de futebol, não ocuparam os seus lugares…

 


2.

O República chama para a 1ª página uma afirmação de Mário Soares na sua chegada a Lisboa.

Nas páginas interiores noticia que essa figura sinistra, que dá pelo nome de Capitão Maltês e era o comandante da Polícia de Choque, ainda andava a monte.


Quem quisesse sair do País só poderia levar um máximo de 50 contos.


Na última página, ficava a saber-se que Henrique Tenreiro, ex-deputado e presidente da Junta Central da Legião Portuguesa, para além de outros títulos, apresentou-se, voluntariamente, à Junta de Salvação Nacional.

Também no República, uma notícia insólita: a administração dos TLP tenciona descontar aos trabalhadores o facto de não terem ido trabalhar no dia 25 de Abril.


3.

Na primeira página, A Capital dava conta da constituição do Movimento Democrático Português.

Para a Comissão Central Provisória, entre outros, foram votados Francisco Pereira de Moura, José Tengarrinha, Victor Wengorovius, Luís Moita, Henrique Neto.

PUS O MEU IRMÃO DEBAIXO DA TERRA


Pus o meu irmão debaixo da Terra
Porque desde ontem o meu irmão não falava mais
E não queria comer, não queria limpar a Kalashnikoff
Com os olhos muito abertos e leves de sono.

Este meu irmão ficou ontem muito diferente
Quando uma pequena ave imperialista
Um simples assobio cego e sem penas
Que vinha voando do outro lado da Alegria
Resolveu estupidamente ninhar naquele coração
Quando meu irmão estava mesmo na metade mesmo
De um passo, Camarada Comandante.

Está aqui tudo o que não era meu irmão
O cinturão, o camuflado, dois carregadores, a arma boa
O bornal, o cantil, o facão, esta pequena moeda estrangeira.

Está tudo em muito perfeito estado de conservação.
Faz favor dá Ordem para pôr dentro outro Irmão
Camarada Comandante.

 

João Pedro Grabato Dias ver Frenesi Loja

quarta-feira, 28 de abril de 2021

ALGUNS DIAS ANTES DE MAIO


28 de Abril de 1974

Barradas de Oliveira é demitido de director do jornal Época, que ontem não saiu para as bancas.

Depois de populares terem, anteontem, tentado destruir as instalações do jornal, que era um sustentáculo da ditadura, o Conselho de Redacção nomeou José Manuel Pintasilgo, chefe de redacção de ex-Época, como director do jornal, que passa, a partir de hoje, a publicar-se com o nome de A Época.

Esta é a capa do nº1 do ano I de A Época.

Começam a surgir os primeiros sinais de camaleonismo.

Atente-se no final da sua declaração de princípios:


1.

É  manchete em todos os jornais, a chegada a Lisboa de Mário Soares, bem como a recepção entusiástica que milhares de pessoas prestaram à sua chegada à estação de Santa Apolónia, no regresso do exílio em Paris.

Pela primeira vez os jornais dão conta da pretensão de o 1º de Maio ser decretado feriado nacional. O pedido foi formulado pelo «leader» da C.D.E., Prof. Francisco Pereira de Moura, durante a reunião de ontem com a Junta de Salvação Nacional

Diário Popular noticia que, num avião militar, partem amanhã, com destino ao Funchal a esposa e a filha do ex-presidente da república Américo Tomás.

Desde o dia 25, mais de um milhão de exemplares do Diário Popular têm sido disputados aos ardinas. Ontem, o jornal colocou três tiragens nas bancas.

2.

Fotografia publicada na página 14 de A Capital que mostra o baptismo do novo nome da Ponte sobre o Tejo.

A acção foi levada a cabo por um movimento, espontaneamente formado, denominado 1º Comité de Acção Popular.

3.

Destaque na 1ª página de O Século para a prisão de Silva Pais, ex-director da PIDE-DGS.

4.


Mário Castrim dedica a sua crítica de televisão às imagens da libertação dos presos políticos em Caxias.

Este é o começo da crónica:


E PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


 Na Frenesi Loja está à venda Who Is Me Poeta das Cinzas, Pier Paolo Pasolini.

Vejam os detalhes e a propósito recordamos um poema de Eugénio de Andrade sobre o assassínio de Pasolini:

 

PIER PAOLO PASOLINI
trad. Ana Isabel Soares
posf. Rosa Maria Martelo
capa e desenhos do pintor João Jacinto
grafismo de Paulo da Costa Domingos

Lisboa, 2021
Barco Bêbado
1.ª edição
218 mm x 135 mm
56 págs.
ilustrado
cartonagem editorial
exemplar novo
20,00 eur (IVA e portes incluídos)

Do posfácio de Rosa Maria Martelo:

«Entre as mais impressionantes imagens das exéquias de Pier Paolo Pasolini, barbaramente assassinado a 2 de Novembro de 1975 em condições nunca inteiramente esclarecidas, estão por certo as que nos mostram o rosto emocionado de Alberto Moravia, ao fazer o elogio do amigo morto. Moravia recorda o homem bom, o homem civil, o romancista, o cineasta, o poeta. A dado momento levanta um pouco mais a voz para exclamar: “perdemos acima de tudo um poeta, e poetas não há muitos no mundo. Nascem três ou quatro em cada século”. E recordará ainda que Pasolini fundara algo de absolutamente novo: uma “poesia civil de esquerda”, num país em que a poesia civil fora sempre de direita.
O destaque dado por Moravia à condição de poeta, quando enumera as várias faces de Pasolini como escritor, cineasta e intelectual, sugere que esta palavra – poeta – é usada em sentido amplo e não se limita a designar o autor de livros de poemas.  Trata-se, em vez disso, de usá-la para descrever a acção de um criador transmedial e intensamente comprometido com a vida em todas as formas de expressão artística que escolheu. Enquanto cineasta, contador de histórias, poeta, argumentista, ensaísta, cronista, polemista, Pasolini fora sempre guiado pelo mesmo encantamento com o mundo físico, com a vida, com o que designou por “realidade”, essa realidade que a seu ver era muito simplesmente “o cinema em estado de natureza”. […]»

pedidos para:
pcd.frenesi@gmail.com
telemóvel: 919 746 089

 

REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI

 

 Eu pouco sei de ti mas este crime

torna a morte ainda mais insuportável.

Era novembro, devia fazer frio, mas tu

já nem o ar sentias, o próprio sexo

que sempre fora fonte agora apunhalado.

Um poeta, mesmo solar como tu, na terra

é pouca coisa: uma navalha, o rumor

de abril podem matá-lo – amanhece,

os primeiros autocarros já passaram,

as fábricas abrem os portões, os jornais

anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira

página, o sangue apodrece o brilhará

ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.

O assassino, esse seguirá dia após dia

a insultar o amargo coração da vida;

no tribunal insinuará que respondera apenas

a uma agressão (moral) com outra agressão,

como se alguém ignorasse, excepto claro

os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie

confundem moral com o próprio cu.

O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores

como móbil de um crime que os fascistas,

e não só os de Salò, não se importariam de assinar.

Seja qual for a razão, e muitas há,

que o Capital a Igreja e a Polícia

de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,

Pier Paolo Pasolini está morto.

A farsa, a nojenta farsa, essa continua.

 

Eugénio de Andrade em Escrita da Terra e Outros Epitáfios

OS RICOS NUNCA PERDEM A JOGADA


Os ricos nunca perdem a jogada

Nunca fazem um erro. Espiam

E esperam os erros dos outros

Administram os erros dos outros

São hábeis e sábios

Têm uma larga experiência do poder

E quando não podem usar a própria força

Usam a fraqueza dos outros

Apostam na fraqueza dos outros

E ganham

Tecem uma grande rede de estratagemas

Uma grande armadilha invisível

E devagar desviam o inimigo para o seu terreno

Para o sacrificar como um toiro na arena.

 

Sophia de Mello Breyner Andersen em Os Gracos I Acto II Cena

terça-feira, 27 de abril de 2021

É PRECISO DIZER ISTO


S. Martinho de Anta, 30 de Março de 1932

É preciso dizer isto. É preciso fazer esta confissão, mesmo que a posteridade depois desista da lápide. É preciso dizer que li hoje de enfiada dois romances policiais, dum tal Sr. Armstrong, e que gostei. E acrescentar que tinha ao lado, interrompida, A Luz de Agosto do Faulkner.

Miguel Torga em Diário I Volume

ALGUNS DIAS ATÉ MAIO


27 de Abril de 1974.

O terceiro dia da nossa vida em liberdade.

Todos os jornais dão conta das reuniões que vão ocorrendo, no Palácio da Cova da Moura, com a Junta de Salvação Nacional, das manifestações de apoio ao Movimento das Forças Armadas, que vão acontecendo por todo o País.

1.

Mas a ÚNICA notícia é apenas uma:

Após demoradas negociações são libertados os presos políticos que se encontravam no Forte de Peniche e em Caxias. Os presos tinham decidido que ou saiam todos ou não saia nenhum.

2.

Anuncia-se que está prevista para amanhã a chegada a Lisboa de Mário Soares e que os bancos reabrirão na segunda-feira dia 29.

 3.

No topo a 1ª página de A Capital que na sua página 4 noticia que o presidente da assembleia nacional, Engº Amaral Neto cancelou a reunião marcada para este dia e aguarda, apenas, que a Junta de Salvação Nacional decrete a dissolução da assembleia.


4.


Diário Popular dava conta que, em Beja, foi preso pela polícia, um homem que ostentava um cartaz a pedir a extinção da PIDE.


5.

Destaque na página 14 para a reunião que a Conferência Episcopal iniciou, no dia 23, em Fátima, ainda em tempo de ditadura, e que teve o encerramento ontem ao final da tarde.

Os senhores bispos mudaram de agulha e emitem um comunicado em que formulam votos para que os acontecimentos destes dias contribuam para o bem da sociedade portuguesa, na justiça, na reconciliação e no respeito

por todas as pessoas. Apelam para a virtudes cívicas dos católicos e demais portugueses de boa vontade. E rezam a Deus pelo povo de Portugal.

A conferência aproveita para se solidarizar com o Bispo de Nampula, expulso de Moçambique, nos primeiros dias de Abril, pela ditadura.


Essa solidariedade teria sido bem-vinda aquando dos acontecimentos, que também envolveram a expulsão de diversos missionários acusados de atentados e de se oporem à guerra colonial.

Mas apenas um beato silêncio.

Profundo foi também o silêncio que os senhores bispos mantiveram, durante quarenta e oito anos, com um regime que oprimia e perseguia um povo e mantinha em África uma guerra  que matou, estropiou milhares de portugueses e africanos.

6.

O República revelava que no Forte de Caxias estavam presos 228 membros da Ex-PIDE-DGS e que ainda continuavam à solta mais de dois mil agentes.


Oportuna a entrevista que na página 13, do República, o desembargador Rocha Cunha concedeu a Fernando Assis Pacheco.

 Está por fazer a história da participação dos juízes dos Tribunais Plenários.

 Pior ainda o sabermos que, após o 25 de Abril, esses mesmos juízos foram integrados no sistema judicial sem nunca terem sido responsabilizados e julgados. Eles foram protagonistas do aparelho repressivo da ditadura.

 Uma impunidade que há-de estender-se aos agentes da PIDE-DGS e outros servidores do Estado Novo.

 Não por uma questão de vingança, apenas por uma questão de justiça.

 Na sua página de espectáculos o jornal avisava que, por motivos óbvios, não era possível publicar a programação da RTP:


7.

Como os restantes jornais, O Século noticiava o assalto que populares fizeram ao edifício do jornal Época, que não se publicou neste dia, e que obrigou à intervenção de elementos das Forças Armadas.

Face a este incidente, e outros que iam acontecendo, como a invasão das instalações da A.N.P., a Junta de Salvação Nacional emitia um comunicado:


Na página 7,  publicava-se uma fotografia de Eduardo Gageiro  que registava o momento em que um membro da PIDE-DGS era preso.

Esta fotografia correrá mundo.


Também a notícia da morte do poeta Pedro Oom, fulminado por um ataque cardíaco. O poeta que tinha 47 anos, um pouco menos que o regime deposto, e não resistiu à emoção de ver cair a ditadura.



8.

Fotografia na última página do Diário de Lisboa.


No Largo da Misericórdia, o povo largou fogo a um automóvel da PIDE, ontem á tarde. Três agentes transportavam-se nele quando, cerca do meio-dia, foram identificados por populares arrastados para junto do pelourinho do largo e desramados pelo Exército. O povo queria linchá-los, tendo sido contido só a muito custo pelo capitão e pelos poucos soldados que os guardavam.

JOGOS INTERMINÁVEIS



Detemo-nos hoje no segundo episódio recortado do trabalho publicado por Patrícia Carvalho no Público.

Do que nesse trabalho se lê, ressalta sempre a solidão daqueles homens e a dura luta para a ultrapassar.

O grasnar sempre presente das gaivotas, entre outos sons ligados ao mar, permitia aos presos imaginar a paisagem que os rodeava.

António Borges Coelho, que também esteve preso em Peniche, tem um poema, Sou Barco em que diz:  ouço o fragor da vaga sempre a bater ao fundo, escrevo, leio, penso, passeio neste mundo de seis passos e o mar a bater ao fundo, poema para o qual Luís Cilia fez música, depois cantado pelo próprio Cilia e por Adriano Correia de Oliveira.

Adelino Pereira da Silva, o protagonista do episódio de hoje, foi condenado a 3 anos de prisão maior e medidas de segurança. Na cadeia de Peniche é colocado, isolado, na cela 4 do pavilhão B. É despojado de tudo, apenas tem a roupa que trazia vestida, mais os sapatos. Não tinha nada para escrever, nada para ler. Para se distrair, construiu dois jogos de xadrez com miolos de pão e jogava sozinho, horas a fio.

Jogos intermináveis.

DE OUTROS REZA A HISTÓRIA


De outros reza a história.

Dos que não se adaptaram.

Dos que lutaram.

Dos que sacrificaram tudo.

Dos que morreram e foram mutilados no combate.

Pela liberdade contra o fascismo.

Eles que não foram a maioria dos portugueses.

 

Eles não foram a maioria dos portugueses.

Fascistas fomos quase todos.

Ou ainda menos.

Como os alemães durante Hitler.

Como os italianos durante Mussolini.

Fascistas fomos quase todos.

Ou ainda menos.

 

António Rego Chaves

Legenda: tempos da «outra senhora», reunião no Coliseu de sindicatos apoiantes da ditadura.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

O RITMO DAS HORAS VULGARES DO DIA


13 de Julho de 1966

Hoje, às 8 da manhã, já eu estava debruçado da varanda da sala, a ver deslizar as gentes de carne de trabalho que se dirigiam para a escravatura diária nas fabriquetas próximas do Bairro Industrial de Alvalade, onde moro). Operários de ganga surrada, empregadotes de lancheiras (que reforçam a solidão) e raparigas, muitas raparigas a sacudirem as ancas para serem raparigas. Alguma bonitas, maior número de feias e quase todas graciosas nos seus vestidos de fazendas de miséria, comprados a prestações.

Aqui e ali pares de namorados a aproveitarem a frescura da manhã para as mãos torcidas dos idílios…

Perto das nove, porém, a paisagem humana foi-se alterando.

Começaram a dobrar as esquinas os burocratas da A.E.G. mais dormidos e calmos. Divisei até várias alemãs pernudas… E um ou outro director a fechar, solene, a porta do carro e a pisar a rua com a dignidade de naturalizá-la germânica…

Depois tudo adquiriu o ritmo das horas vulgares do dia… E sentei-me a devorar o pequeno-almoço, entristecido por não sei que sensação de existirem no mundo pessoas a mais que banalizavam até à mediocridade os sentimentos e as paixões, impossíveis de dividir por tanta gente.

Urgência de rebentar horários…

José Gomes Ferreira em Dias Comuns I Volume

Legenda: José Gomes Ferreira viveu desde 1956 na Avenida Rio de Janeiro no nº 33 2º andar esquerdo.

ALGUNS DIAS ATÉ MAIO


26 de Abril de 1974

O segundo dia da nossa vida em liberdade.

Aos poucos, a rotina do quotidiano vai entrando na normalidade.

Caminha-se para os empregos, para as escolas, para as fábricas, são os mesmos passos, os mesmos rostos, mas têm uma outra vivacidade, um outro fulgor.

Os jornais dão todo o destaque aos acontecimentos da data histórica.

Diário de Lisboa é o único que puxa para a primeira página a grande notícia dos dias que vão correndo: a libertação dos presos políticos, a rendição da PIDE/DGS.

No miolo da reportagem uma pergunta óbvia, uma resposta com o seu quê daquilo que, tristemente, mais tarde irá acontecer:

- O que vão fazer aos pides, pergunta o repórter ao comandante dos páras.

- Temos que ter compaixão e humanidade para com eles, respondeu-nos o capitão.

Mário Castrim coloca em título no seu Canal da Crítica: Televisão, alegria do povo.

Mas são de louvor à rádio, as suas primeiras palavras da crónica:


Na página 12, uma notícia que, de modo algum, a censura deixaria passar:

Na página 13, destaque para as primeiras posições dos movimentos de libertação, face aos acontecimentos ocorridos em Portugal:


Em Kinshasa, Holden Roberto recusou-se a fazer quaisquer comentários até que a situação em Portugal evolua.

Aguarda-se uma declaração formal do porta-voz oficial do MPLA.

Não foi possível contactar com responsáveis da Frelimo.

Desde Lusaka, os combatentes dos Movimentos de Libertação nos territórios africanos de Portugal, não se sentem seguros se o golpe militar em Lisboa virá ajudar a luta que travam pela independência total das colónias:


Na página 15 do República a reprodução de uma carta em que o Presidente da Comissão Central pedia explicações ao Director do jornal, Raul Rego, por ter publicado um artigo que fora alvo de cortes da censura:


Na mesma página, uma pequena, mas lamentável, notícia dá conta de que, apesar da intervenção dos militares, não foi possível salvar muitos arquivos e documentos da Censura que o povo lançou à rua e foram destruídos.

Aqueles documentos eram parte importante da nossa história.

Estava lá nesse momento, assisti ao crime, mas como se poderia tê-lo evitado?

Quarenta e oito anos de ódio e repressão sobre um povo, cegam, pesam muito:


Na primeira página do Diário Popular amplo destaque à apresentação da Junta de Salvação Nacional.

Com chamada para a página 12: O Almirante Américo Tomás e o Prof. Marcello Caetano Chegaram à Ilha da Madeira.

Na página 9 foco  para as cinco edições que o Diário Popular publicara no dia anterior.

Tanto o Diário de Notícias, como O Século dão amplo desenvolvimento a tudo o que foi acontecendo no dia em que ditadura caiu.

Em O Século realce para o relato da última sessão da Assembleia Nacional:


Em O Século, a primeira fotografia publicada na imprensa da prisão de três pides, passos iniciais do que vai ficar a ser conhecido como a «caça ao pide.» e durará alguns dias:

Por fim, três curiosos destaques  retirados da 1ª página da Época, jornal oficial do ex-regime, ainda com o nome do ultra Barradas de Oliveira como director:

- Um movimento Militar depõe o Governo.

- O Prof. Marcelo Caetano rendeu-se ao General António de Spínola.

Garantir a sobrevivência da nação como pátria soberana no seu todo  pluricontinental, é um dos compromissos da Junta de Salvação Nacional perante o país segundo a proclamação que o General António de Spínola leu à Nação.

HOMENS PRIVADOS DE PAISAGENS


Patrícia Carvalho, em Dezembro de 2018, juntamente com o fotógrafo Adriano Miranda, fez para o jornal Público uma série de reportagens onde entrevistou alguns presos políticos que, em tempo de ditadura, estiveram presos na cadeia de Peniche, que será um Museu dedicado à Resistência em vez de um hotel. 

Experiências de uma riqueza humana, tão simples mas tão dramáticas.

Recolhi dois apontamentos dessas reportagens.

O primeiro é-nos contado por Mário Araújo, hoje, com 83 anos:

«Há coisa difíceis de explicar como o que faz um homem ficar privado da paisagem e alimentar-se apenas de sons. À noite, as traineiras que iam para o mar faziam tac-tac-tac. Era comovente. E a chegada. Era como se estivéssemos lá e fizéssemos aquela viagem de ida e volta também na traineira. Isto para quem ouve esta narração parece uma coisa de somenos, mas eram momentos que nós guardamos ainda hoje. Aquilo era uma coisa que tocava. Criava em nós sensações de liberdade exterior que não tínhamos, não se via nada. O que víamos aqui era o céu e as paredes.

O DECRETO 353/73


Quando é que o 25 de Abril começou a desenhar-se?

O descontentamento entre os militares face à guerra colonial, estava em crescendo.

 Mas são os próprios militares que determinam que o Movimento dos Capitães

nasceu, numa reunião alargada,  em Évora, no dia 9 de Setembro de 1973.

A 23 de Fevereiro de 1974, o General António de Spínola, com chancela da Arcádia, publica o livro Portugal e o Futuro.

Alguns historiadores dizem que Marcelo Caetano quando acabou a leitura do livro, logo admitiu o que há muito suspeitava: o regime estava por um fio.

Ainda em Março há-de dizer a um dos seus colaboradores:

«Cuidado com os capitães, o perigo vem deles, pois não têm ainda idade suficiente para poderem ser comprados.

Dois dias depois do levantamento de 16 de Março de 1974, protagonizado pelas tropas do Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha, Vergílio Ferreira, no 1º volume do seu Conta-Corrente, escreve:

 «O livro de Spínola alastrou numa revolta militar frustrada. O livro? Há um clima de inquietação, um cansaço do provisório em que vivemos. O difícil da questão é que solução alguma coisa se nos impõe como boa. Há que escolher a menos má. Qual? A África é dos pretos que “exploramos” há quinhentos anos. Exploramos? Só? Mas como aguentar o embate da separação? O recurso seria retroactivo: termo-nos preparado para isso. Mas Salazar, como certos bichos, o que entregou foi pedra. Dizem-me: o Marcelo quer aguentar a guerra até estarmos preparados. Mas o desgaste não vai mais depressa que a preparação? Tentamos acumular de um lado, enquanto gastamos do outro Qual o saldo? Entretanto, ainda se recorre à retórica imperial. “Deus manda combater, não vencer, diz Marcelo. Mas Deus manda o que lhe mandamos mandar. Deus de paz, Deus carniceiro, Deus celeste ou terreno. O Deus de Marcelo não é muito inteligente. Ou estará simplesmente enrascado, sem saber o que fazer.»

O cansaço apoderara-se dos militares, um enorme cansaço.

Na noite em que Otelo diz à mulher que, por motivos óbvios, não podem ir ao Coliseu ver a Traviata, conversam também sobre o que poderá acontecer se as coisas não correrem bem. Otelo diz que não sabe o que poderá acontecer, mas uma coisa pode garantir; «nunca mais faço guerra nenhuma no Ultramar.»

Podemos, no entanto admitir que é o Decreto-Lei nº 353/73 de 13 de Julho, que se pode ler no topo do texto, que se transforma em pedra de toque desestabilizadora num conflito que estava latente entre os militares das armas de infantaria, artilharia e cavalaria.

25 DE ABRIL DE 1974


A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a crescer
e a desafiar os enigmas puríssimos da palavra liberdade - no auge da paisagem
a ave indócil a que não renunciámos
é um símbolo fortíssimo contra os símbolos precários, os malogros
antigos,
a fome a que nos querem condenados
sempre que a morte ronda e o exílio
dói
como um cravo recentemente apunhalado.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a enfrentar o medo
que durante tanto tempo nos manteve separados
sem que soubéssemos como e quando acabaria – na terra e no amor
brilham profundamente as lágrimas dos pobres
e o sangue é uma flor misteriosa
que floresce de súbito
quando um grito se ouve no deserto
e uma gaivota volta
para nos contactar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a distribuir o coração
e a partir nesse barco em busca de límpidas aventuras
onde enfeitássemos a vida com sonhos realizáveis
e a solidão fosse completamente impossível – o silêncio abria-se
num manancial de palavras profundamente comovidas
[que nos enchiam de ternura
e nos aproximavam
dos incontáveis registos da fraternidade, a noite
era expulsa para sempre
e os braços davam-se e ardiam.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a felicidade
é algo muito mais tangível do que o que nós pensávamos
se se constrói pedra a pedra e palmo e a palmo se conquista
quando uma vontade solar e a solidariedade
não deixam ninguém ficar desprevenido – o assombro
principia a exercer o seu poder admirável, chega como
uma chuva benigna com o perfil da paz, tem o odor
interminável
da alegria.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a conjugar um futuro
um pouco mais perfeito, a erguer
a cabeça, a defendermo-nos
das múltiplas armadilhas que o ódio arma –
[entrávamos pela manhã
ainda com maior vitalidade
e com um pouco do azul da primavera progredíamos
como um par de namorados:
a proliferante espontaneidade dos seus beijos
transformaria o mundo…

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a frescura
é um bem vertiginoso que é necessário preservar cada vez mais
e que não basta a um homem
o benefício das mãos limpas perante a enternecedora figura de esperança
quando os lobos são os mais acérrimos inimigos da exclusiva claridade que há nas praias
e com falsos dentes de oiro esperam um mínimo descuido
para que possam destruir de um só golpe os sonhos e a beleza
de quem abre as portas de par em par a bens muito
[maiores
para que a volúpia entre e alvorece o ar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a agir conclusivamente
sobre o passado, a prevenir
o mal do desencanto.

Amadeu Baptista em Poemabril 

domingo, 25 de abril de 2021

O DIA INICIAL INTEIRO E LIMPO


 José Cardoso Pires, no seu Alexandra Alpha, deixou as contas feitas:

Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias.

1.


A Assembleia Nacional ainda abriu para mais uma sessão que acabou por não se realizar por falta de quorom, o que levou o presidente Engº Amaral Neto, a marcar sessão para o dia seguinte, à hora regimental.

Durante anos e anos massacraram-nos com afirmações de alto patriotismo, que se alguém atentasse algo contra o regime, dariam o peito às balas, mostravam-se prontos a morrer, venderiam cara a vida. Alguém poderá ter acreditado, mas quando a hora chegou, não cumpriram uma palavra das promessas que nos atiraram à cara, o palavreado foi-se pela pia abaixo, uns fecharam-se em casa, outros fugiram do país.

2.

Num repente, ficaram sem tropas, sem carros de combate, sem barcos, sem aviões.

 Via rádio, mostraram a quem os ouviu, que não sabiam sequer dar um passo pequenino que fosse, altas-patentes-medalhadas, trocaram diálogos completamente patéticos:

- Urgente. Escuto!

- O Chiado está fechado por viaturas saídas do Terreiro do Paço. O Largo do Carmo está cheio de viaturas, canhões apontados para o quartel. A situação é esta: só tenho aqui com viaturas, dois pelotões da Guarda e o resto da tropa apeada, Infantaria 1 foi para o Rossio e levaram os carros e não tenho contacto com eles.

- E então o que é que se há-de fazer?


- Não sei. Escuto. Não vejo solução… talvez aguardar…

- A nossa aposição é um tanto ou quanto ridícula. Estamos todos juntos aqui no Largo da Misericórdia aparentemente divorciados do resto da guerra. Tenho a impressão, salvo melhor opinião, que seria conveniente regressar a quartéis.

- Creio que há um ultimato até às 2 horas para entregar o Presidente do Conselho. Não sei se é verdade. Escuto.


- Que possibilidade vê de prosseguir a acção, com que meios, porventura, pôr à sua disposição.


- Não vejo possibilidade porque está tudo atravancado. Consegui limpar aqui o largo mas há muita população aqui metida no meio que não nos hostiliza porque julga que estamos do outro lado. Situação um bocado delicada de forma que não vejo bem maneira, a não ser com meios aéreos que possa limpar um bocado aquilo, porque a infiltração não me perece viável. Escuto!

3.

Marcelo Caetano, os ministros Moreira Baptista, Silva Cunha, outras ratazanas, refugiaram-se no Quartel da GNR no Carmo que, num ápice, ficou rodeado pelas tropas do Capitão Salgueiro Maia, de todo um povo exultante de alegria.

Tempo de Marcelo perguntar ao comandante do quartel como estava a evoluir a situação. O silêncio do oficial mostrou-lhe que a situação era gravíssima. Ainda perguntou pela marinha, pela força aérea mas não obteve qualquer resposta.

 Mandou telefonar ao General Spínola para negociações de modo a que o poder não caísse na rua.

Entretanto, sabia-se que o venerando chefe de estado estava refugiado na sua residência particular no Restelo. Falou ao telefone com Marcelo e estava disposto a resistir às tropas do MFA. Não se sabe domo, com que meios, com que tropas, prova provadíssima que o homem sempre fora um perfeito ignorante do que quer que fosse, excepto cortar fitas na inauguração de uma qualquer chafariz perdido em nenhures, um realíssimo cabeça-de-nabo, tal como o povo lhe chamava.

Marcelo ter-lhe-á dito que nada havia a fazer e que preparasse a mala para no dia seguinte voar para a Madeira.

Marcelo Caetano e os ministros, depois de abandonarem, numa «chaimite», o quartel do Carmo, pernoitaram no quartel do Regimento de Engenharia 1 da Pintinha.

No dia seguinte, às 07,40 horas, descolou da Portela um avião que levou toda aquela tropa fandanga para o Funchal.

Alexandra Alpha há um tempo largo que andava às voltas do Largo do Carmo e imediações, para encontrar o seu mini-austin que sabia, de certeza absoluta, que deixara por ali pois, queria mesmo o carro porque, de modo algum, podia perder a libertação dos presos políticos em Caxias.

«Afinal acabou por descobri-lo em cima do passeio e junto à mesma árvore onde o deixara há quase uma eternidade. Tinha uma multa por estacionamento proibido, afixada no para-brisas.»

4.

Miguel Torga escreverá no seu Diário:

«Coimbra, 25 de Abril de 1974 – Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada…»

Vergílio Ferreira escreverá no seu Conta-Corrente:

«Vitória. Embrulha­‑se­‑me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir.»